Espertos

terça-feira, 6 de junho de 2017

Pode ser que não aconteça com todo mundo, sei lá, mas comigo acontece. Mesmo que eu não queira, vivo num mundo digital. Tenho o meu mundo real - e o que é a realidade? Kant, ajude-me -, mas, vez em quando, tenho que tirar este indivíduo de sob os escombros digitais. Bom, a questão é que tenho 5.000 livros sob o braço. Sim, 5.000, talvez um pouco mais, porém, sinto-me sem nenhum deles. Sim, eu os leio, todos os dias, mas me coça sempre o desejo de virar as páginas. E me pego, de tempos em tempos - após fazer um café e sentir o cheirinho bom - cheirando o ipad na tentativa de associar o cheiro do livro novo ao cheiro do café. E tenho uma mania de pegar no livro como quem desliza a mão pela cintura da namorada, sabe? Não quero piorar ainda mais as coisas, é certo, mas quando a leitura está muito boa, muito boa mesmo, e sinto aquela necessidade de trancar lá dentro do livro - por um tempinho que seja - o desenfreado afã de lê-lo de uma só vez, vejo-me pegando um marcador para toscamente enfiá-lo no ipad. 

Tenho 3.000 livros no formato tradicional. Sim, 3.000, talvez um pouco mais, porém não tenho mais lugar para guardá-los. E todos os dias até reclamo, e piso sobre eles logo ao acordar. Eles vão subindo pela parede feito uma babel estropiada, uma torre de Pisa ameaçando cair sobre mim. Lidar com muitos livros é como lidar com bilhões de recém-nascidos. Mas sinto que os tenho e sinto que eles sabem disso, e sei que isso é recíproco. E eu os amo. Num domingo, ouvindo um daqueles discos de jazz que há tempo não escutava, aboleto-me e limpo livro por livro, um por um, feito um serial killer, com um sorrisinho prazeroso no canto da boca, sonhando vítimas. Sei lá, cada mania com o seu louco. Agora com essa moda de namorar pela internet. Sei lá (é moda é?). Falam muito por ai. Vai saber. Pode até funcionar, mas preciso do toque, preciso da temperatura da outra pessoa pra ter a certeza de que ela está mesmo ao meu lado. Preciso do estalo do beijo vez em quando como quem acende uma luz para clarear o meu caminho. Sei, as palavras são fortes. Ora, elas me sustentam. Se eu tenho pão e manteiga, todos os dias, sobre minha mesa no café é porque tenho as palavras. Mas, nesse caso, gosto das palavras que possuem hálito, sopro, daquelas que toda vez que se desprendem dos lábios parecem delicados Fiat Lux. Gosto quando um monte delas brincam com os meus cílios. No começo era a Palavra, não? Enfim, gosto quando elas são sussurradas no ouvido fazendo-me consciente de toda a extensão e existência do meu corpo. Assim, como uma borboleta pousando num lago e disparando inúmeras ondas por todo ele. Gosto de depois do fim, que logo será novamente começo, de olhar o teto e ver estrelas despontando. Não sei. Acho que me falta um parafuso nesse mundo digital. Alguma peça não veio nesse meu kit touch. 

No mundo digital, se a coisa não funciona, é simples, há uma tecla: delete. Um simples gesto e toda uma vida vai para o espaço, assim como Hiroshimas e Nagasakis dos bits. Um gesto pequenino e lá se vai uma pessoa e toda a sua história. Quando todas as células se sedimentam lá no fundo do meu ser, e diante da pessoa - um dia amada - cochilam e bocejam feito um cansado vigia noturno, eu gosto de sentar-me cara a cara com ela e dizer-lhe tudo o que está se passando ou mesmo o que não está se passando. Tenho essa necessidade, quando a coisa não vai bem, de dizer o que sinto e ponto. Sei, há todos aqueles trejeitos, e há demasiado remexer de cabelos, e há um fincar de unhas na pele da indiferença que honestamente não quer ser indiferença. E há, sim, oh, deus, muitas, muitas lágrimas: num relacionamento, um fim pode tornar-se um dilúvio e cobrir toda terra. Mas, apesar de tudo isso, de todo o vazio do depois, do tempo que não anda ou se arrasta. Apesar de tudo parecer mesmo errado, eu sei, que no fundo está tudo certo, tudo bem, e que as coisas são assim mesmo. E principalmente, sinto-me um humano real. Ou, realmente um humano. Sei lá mais.

(Reynaldo Bessa)

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