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"Em 2017, estamos em uma encruzilhada - tem muita atenção sendo roubada do ato de ir ao cinema, internet e a Netflix", analisa o cineasta Kleber Mendonça Filho, coordenador de cinema do IMS.
A frase reforça a importância de transformar a nova sala da cidade num lugar de encontro e debate. Com capacidade para 151 pessoas, o cineteatro projetará filmes digitais e, também, em película.
A programação promete ser variada, com mostras temáticas, exibição de clássicos e, também, lançamentos que possam ter ficado fora do circuito comercial. - Redação Divirta-se - 14/09/2017
Fotos da sala de cinema : Nathalia Elisa Machado Soriano
O cinema na sala
Por Kleber Mendonça Filho - Coordenador de cinema do IMS
Este é um momento e tanto para acompanhar a
abertura de uma nova sala de cinema. Em 2017, o mercado está nervoso, num
crescendo. Depois do medo da TV e do home video em décadas
passadas, surgem novas dúvidas sobre os hábitos do público com a internet, que
agora tem no Netflix uma sombra na tela grande. Ainda assim, salas de cinema
continuam sendo inauguradas.
Os americanos reclamam do pior verão em 20 anos nas
bilheterias. Ações na bolsa de empresas exibidoras caíram muito nos últimos
meses, e há rumores de que estúdios irão partir para o chamado Premium Video on
Demand, ou Premium VOD, ideia que vem sendo estudada já há anos. A ideia é
oferecer lançamentos simultâneos em casa, 17 ou 30 dias depois dos cinemas, com
“preços premium”.
Isso diminui (ou extingue) a exclusividade das
salas nos lançamentos. Hoje, leva em média três meses para que filmes
sejam vistos fora dos cinemas. O mercado sempre a postos para “matar ou morrer”
parece também pronto para correr atrás do próprio rabo e comê-lo. O mercado.
Enquanto isso, Game of Thrones e Twin Peaks The Return têm
tido o tipo de atenção na mídia cultural que muitos filmes de cinema não têm.
Ano passado, visitei o Metrograph, novo espaço em
Nova York, com salas de rua que misturam filmes com um restaurante, modelo de
negócio nos EUA e Europa. A ida ao cinema com comida no mesmo espaço. A
combinação pode soar deslocada no Brasil, onde o cinema migrou da rua quase
exclusivamente para o shopping, e onde a praça de alimentação já é
uma instituição nacional ha décadas.
Na mudança da rua para o shopping, a
ideia de “cinema popular” parece ter ficado pelo caminho, tendo sido retomada e
reconfigurada nos últimos anos com a renovação do parque exibidor (e
das classes C e D). Essa reconfiguração social/urbana do cinema nos
últimos 30-40 anos, totalmente tramada pelo mercado, ainda aguarda um estudo de
impacto nas nossas cidades.
E os multiplex, aqui e no mundo,
parecem tensos em 2017. Estão oferecendo uma quantidade notável de mimos, e por
eles cobrando “preços premium”. Com o 3D já dando sinais de
exaustão, agora temos poltronas que chacoalham o espectador com ventinho e
aguinha no rosto – em 4D. Há salas XD, 4K, Imax Digital. Tem o Dolby Atmos, com
som que sai do teto e cinemas com garçons servindo espumante em clima de classe
executiva em avião. Espera-se que os novos Avatar, de James
Cameron, lancem tecnologia 3D sem óculos, por um “preço premium”.
A ironia este ano é que o destaque de tecnologia
em exibição cinematográfica (com “preços premium”) não
veio de equipamentos digitais, mas de rolos de película Kodak que o mercado
havia declarado mortos. Dunkirk, de Christopher Nolan, teve rendas
grandes nas salas onde foi apresentado em Imax 70mm e Super Panavision 70mm,
formatos analógicos que salas brasileiras não projetam mais. Nosso país teve
uma longa e burocrática transição digital e, no processo, abandonou seu parque
analógico. Como o disco de vinil, a projeção em “filme” pode ainda render
dinheiro num nicho bom.
Enquanto isso, na Coreia do Sul, a Samsung
apresentou em abril a primeira tela de cinema que é uma TV gigante, sem
projetor. Curioso, pois o consumidor já tem o mesmo tipo de coisa em casa.
Ao borrar os limites da “qualidade técnica”, do
“conteúdo” e da “acessibilidade”, a discussão em torno do Netflix torna-se
interessante, e misteriosa. Com 104 milhões de assinantes no mundo (e
crescendo), seis bilhões de dólares para gastar anualmente e a ”certeza” de que
seu algoritmo de buscas “sabe o que o consumidor quer ver” (segundo
o vice-presidente de produtos da Netflix, Todd Yellin), o serviço de streaming transformou-se
numa presença na cultura.
Nas semanas de estreias nos cinemas de filmes
recentes como o americano Corra!, de Jordan Peele, ou Como
nossos pais, de Laís Bodansky, pessoas perguntavam naturalmente se os
filmes já estavam no Netflix. Ainda não. Até uns três anos atrás, a
pergunta mais comum era “Já tem pra baixar?” Isso é incrível.
Agora, toda essa conversa de mercado, o que ela
significa para um pequeno cinema que abre as portas hoje? Talvez
signifique entender este mercado para ter a liberdade de tentar outras coisas.
Observar o trabalho realizado ha anos por salas no entorno, por exemplo, só aumenta
a responsabilidade das escolhas da curadoria e da programação. Todas as salas
integram um circuito de cultura já bastante diverso. A incerteza (mais do que a
certeza) de não saber “o que o público quer ver” deve fazer
parte mais ou menos sempre, um processo de aprendizado constante.
Pode também significar que esta sala seja um
abrigo para filmes pequenos e grandes, e talvez discutir se de fato são
pequenos, ou se são filmes grandes, do passado ou contemporâneos, de
curta ou longa metragem. A sala de cinema pode ser um arquivo constante e
vivo, projetado em filme película e em digital moderno, e onde os laços do
cinema com outras formas de expressão seja uma conexão firme. E
que tudo isso seja feito com a melhor apresentação técnica de som e
imagem, sempre.
Finalmente, para cada nova ação criada para
revender o produto “sala de cinema”, é bom lembrar que ela mantém-se viva desde
1895 por detalhes analógicos que não são mais muito
discutidos: as poltronas em fileiras são viradas para uma tela, o
ambiente é escuro e o espaço coletivo é de interação, mas também de
individualidade respeitada. A sala como centro de imagem e ideias tem
papel importante num momento de pessimismo social e politico. E
é nesse espaço que o diálogo e o debate devem ser estimulados, a liberdade
de expressar-se com imagem e palavra como elemento de cidadania.
Texto publicado no Blog do cinema, do IMS -
14/09/2017