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Marina Colasanti

Já não contamos histórias

Como é que foi o teu dia? Correu tudo bem na escola? As respostas a estas perguntas também são histórias. Mas já não as contamos em casa. Mergulhamos no Facebook, partilhamos o que outros disseram ou fizeram e pouco sabemos de quem está por perto.

Sempre se contaram histórias em família. Não apenas as que estão escritas, mas as que decorrem do dia-a-dia. “A casa é um fulcro de narrativas vindas do exterior. Você chega da rua e traz a história da vizinha, que te contou que o cachorro dela foi roubado por um ladrão”, exemplifica a escritora brasileira Marina Colasanti. “Ou então, falando sobre como foi o seu dia, diz: ‘O meu chefe isto e aquilo…’ São histórias que você está contando na sua casa”, prossegue a (também) contadora de histórias, que veio a Portugal para participar na XII edição das Palavras Andarilhas.

Mas este ritual familiar, muito associado aos momentos de refeição, está a perder-se: “As histórias são trazidas por cada um e emitidas por cada um para fora: no Twitter, Facebook ou blogue. As histórias que se ouvem são jogadas para fora outra vez. Em vez de serem compartilhadas com o conjunto familiar.”

Marina Colasanti descreve então o quotidiano de uma família brasileira: “Cada um come à hora que chega. Os garotos fazem um prato, carregam no colo, vão para o quarto e ligam a televisão. Todo o mundo tem televisão no quarto.”

O tempo de convivência em redor de uma mesa ou num espaço que facilite o diálogo entre os membros da família diminuiu enormemente nos últimos anos. Basta olhar para a disposição do mobiliário das casas, que se organiza quase sempre em função de ecrãs, seja o da televisão ou o do computador. A casa já não é um agregador das histórias de quem lá mora.

 “Ainda não sabemos no que isso vai dar. É um fenómeno absolutamente do presente”, diz a autora, muito premiada e que já assinou vários ensaios sobre escrita e criação literária.

Não vivemos sem narrativas

“Temos a ilusão de estar recebendo mais histórias dos outros porque acedemos às redes sociais, mas elas não servem mais como tessitura familiar. Dantes, serviam para aumentar a ligação entre os membros da família: eu dou-te a minha história, tu dás-me a tua. E estamos fazendo uma tessitura de afectos, de conhecimentos e de experiências. Você, que é minha mãe, vai comentar a minha história. Eu, seu filho, também comento e lembro a história de caçador do meu avô, por exemplo.”

E observa que, por essa troca “diminuir drasticamente”, há “um património enriquecedor que se dilui”. Ou seja, “vamos perder isso”. Mas acrescenta um “talvez”. Em contraposição, lembra que há outras narrativas que crescem: “Cinema, novela, televisão, livros, narradores de histórias. O ser humano não vive sem narrativas, sem o imaginário. Existem povos sem escrita, não existem povos sem narrativas.” E, como estudiosa atenta, aguarda pelo futuro, sem certezas ou fatalismos: “Vamos ver onde [o ser humano] as localiza, como as opera, mas está a ocorrer uma modificação nessa área, como em tantas outras.”

Antes de Freud

Noutros tempos, Idade Média e Renascença, havia uma “narração mais formal, em que as pessoas se juntavam para contar histórias”, discorre Marina Colasanti. “Eram histórias transmitidas oralmente, de voz em voz. Era uma maneira de se ocupar o tempo (não havia televisão), manter viva a tradição, alimentar o imaginário”, continua, realçando que então se vivia “uma realidade muito árdua, muito ameaçadora”. Além disso, diz, com ironia e boa disposição, “as pessoas não faziam [psic]análise, Freud não havia nascido”.

De origem etíope (n. 1937), com parte da infância passada em Roma (“quando a guerra estoirou, fomos para Itália”), rumou ao Brasil em 1948. E assumiu a nacionalidade brasileira. “Eu escrevo histórias porque é a minha profissão, porque é o meu prazer, porque as histórias me chegam ou eu as busco, elas estão por toda a parte. E eu adoro fazer isso. Escrevo muitas outras coisas além de histórias. Sou jornalista, trabalhei em publicidade, em televisão, fiz guiões. E continuo trabalhando em imprensa, tenho 50 anos de imprensa.”

Marina explica como os contos de fadas são uma parte do seu trabalho, os livros para crianças são outra e as histórias para adultos ainda outra. “As histórias que eu conto são só as que eu escrevo, não conto histórias alheias, só conto as minhas. Talvez por achar que seria um outro tipo de profissão (contar as histórias de outros). Contar as minhas próprias histórias parece uma decorrência natural, uma vez que eu sou a história.” É a sua voz que ali está, inteira.

“Escrevo por projecto. Eu estou escrevendo crónicas, não estou escrevendo contos de fadas. Eu estou empenhada em um livro de poesia, não escrevo contos adultos. Estabeleço um projecto, em geral um livro leva dois anos. Se for um livro de poesia, bem mais do que isso: quatro, cinco, depende. A poesia é muito exigente.”

Há algum género que a faça mais feliz? “O conjunto me faz feliz. Se eu fizesse só um, me faltariam coisas. Porque certas coisas você só pode contar com determinadas palavras, com determinadas estruturas. E talvez eu seja voraz.”

(Affonso Romano de Sant’ Anna, marido, que esteve ali connosco ali desde o início, interrompe e diz: “Tem de acrescentar uma coisa. Ela escreve ensaios, o que é muito raro para quem tem a profissão dela. É uma pessoa que desenvolve teoricamente a escrita, a criação literária. Até ganhou uma placa.”

Explicação do poeta que foi director da Biblioteca Nacional do Brasil entre 1990 e 1996: “Quando você faz um golo no Maracanã, e toda a gente aplaude, é uma placa. Ela ganhou uma placa numa cidade do Nordeste porque foi aplaudida durante 20 minutos, de pé, depois de uma conferência. Portanto, é uma conferencista de placa”, conclui divertido e orgulhoso.)

Marina prossegue: “São coisas diferentes. Você precisa organizar o seu pensamento e a sua sensibilidade com uma diferença de bocadura [boquilha]. Não se toca um sax com a mesma bocadura que se toca com uma flauta transversa[l]. Então, você tem de encaminhar a sua cabeça. São processos de criação diferentes.”

Peremptória, diz nunca se cansar das palavras. “Não! Como me cansaria das palavras? Eu preciso de falar. Além de pensar, eu sonho. Mesmo que me cansasse, eu sonharia e encheria a minha noite de palavras.” Explica em seguida a sua utilidade: “As palavras me servem para tentar entender o mundo onde eu vivo. Possivelmente, não entenderei quase nada, porque ele é muito difícil, mas se eu não tivesse algum elemento que me permitisse a penetração nesse mundo, eu acharia muito atemorizante. Estaria à deriva.”

(Affonso, de novo: “Nos anos 1970, ela era conhecida em Portugal através da revista Nova. Toda a hora, ela encontra uma leitora, como Inês Pedrosa, por exemplo. Por essa altura, Marina andava fazendo a cabeça das mulheres em Portugal.”)

Marina conta: “Dentro da possibilidade daquele momento, foi uma revista de cunho intensamente feminista. O que é surpreendente porque a Nova era uma revista gerada a partir de Cosmopolitan, que é sexista, sinistra. Mas devido ao momento que se vivia no Brasil, que estava debaixo de uma ditadura, no qual não seria possível fazer uma revista sexista porque os militares sempre foram (no mundo inteiro) muito conservadores, a revista deslizou para uma postura em busca de uma mulher jovem nova e acabou por se tornar num veículo de ideias feministas.”

Como editora de comportamento daquela publicação, teve um papel importante na mudança de mentalidades: “No Brasil e em Portugal, andei fazendo a cabeça das mulheres, como ele [Affonso Romano de Sant’ Anna] diz. Durante 20 anos, trabalhei muito com isso. Foi muito intenso na minha vida. Uma responsabilidade muito grande. Foi, muito muito bom.”

Contar a guerra por dentro

Há um livro da sua autoria que ambos gostariam de ver editado em Portugal, chama-se Minha Guerra Alheia e mostra como Marina, enquanto adolescente em Roma, viu a II Guerra Mundial. “O que me interessava não era contar as infantilidades, mas sim uma visão da guerra por quem está dentro dela e como criança. Porque a criança vê de uma outra maneira. Percebe coisas soltas e depois tenta costurar tudo aquilo.”

Para terminar, contam ambos em poucas palavras (e em família) a sua história de amor. Conheceram-se na redacção do Jornal do Brasil, inicialmente “sem grandes aproximamentos”. Mas, quando Affonso voltou de dar aulas numa universidade dos Estados Unidos, a primeira pessoa que encontrou foi Marina. “No elevador”, recorda ele. “E fomos tomar café, juntos”, acrescenta. “Estamos tomando café juntos até agora”, completa ela. “Há 41 anos”, especifica. Têm duas filhas. “Uma é tradutora, outra é actriz, dramaturga, multimédia.” Continuam a amar-se? “É”, diz ela. “Perdidamente”, diz ele. E escutam-se duas gargalhadas cúmplices e felizes. Uma bela história.

Marina Colasanti aceitou contar para nós (e para os leitores do Life&Style) um dos seus contos de fadas. Foi em Lisboa, no Hotel D. Pedro, sala Ceará. Título: Do seu coração partido: