RONALDOEVANGELISTA


Betina, Arranjo e Regência: Tom Zé, 1973









Um ano depois deu seu primeiro disco pela Continental (e terceiro de carreira), no mesmo ano em que gravaria o arrojado Todos Os Olhos, 1973, Tom Zé fez um frila para a Chantecler: arranjou e regeu duas músicas suas para a voz de Betina - possivelmente o único lançamento de uma cantora hoje completamente desconhecida. No lado A, pequena obra-prima com brilhante e esquecido arranjo de sopros no contraponto, a então inédita "Que bate calado" (regravada por Tom Zé três anos depois como "Dói", no Estudando o Samba). No lado B, versão mais lenta e levada pro romântico de sua recente "O anfitrião" (do álbum de 72, mesmo de "Se o caso é chorar" e "Edifício Itália"), com o autor puxando o coro no refrão.

Betina com vocal claro e natural, melancólico e forte, de especial expressão e especialmente mágica para interpretar a riqueza de sentidos das canções de Tom Zé, comprovando cedo que os experimentalismos do ex-tropicalista fazem camada para canções que soam bem com mais de uma leitura - de amor mas esperta, de tristeza mas humorada. (E vale notar recentemente o mesmo efeito em discos de Monica Salmaso, Adriana Maciel, Marcia Castro, Bárbara Eugênia.) Tom Zé ali ele próprio no olho do furacão de seu auge criativo, colocando todas as forças a favor de um novo artista se lançando com suas músicas, compondo, cantando junto, arranjando, liderando a banda. Banda, aliás, toda particularmente inspirada - o baterista é algo a se ouvir. Pouco mais de sete minutos de música perfeita, Compacto Simples Chantecler C 33.6445, 1973, filho único querido escavado (terá sido Eric ou Henrique?), invendável e inemprestável, até onde sei nunca relançado em nenhum formato. Nem Tom Zé tinha, me pediu e copiei. Aproveitei para registrar o que ele se lembrava sobre a gravação, Betina, a idiossincrasia da situação:

Alguém me pediu que fizesse arranjo pro disco de inauguração de Betina. Não sei se ela chegou a gravar um LP, eu escrevi só duas músicas pra um compacto simples. Ela era uma pessoa séria, uma artista que já nasce madura. Cantava na noite, uma moça muito importante, tenho pena de não ter conhecido ela direito. Me lembro que eu estava de férias em São Sebastião, escrevi o arranjo lá, marquei com os músicos e vim tocar. Quando eu acabei de gravar, o próprio produtor me falou que tinha defeitos. Claro que a linguagem dele era outra mesmo, mas eu fiquei com pena dela. Betina, me perdoe por você ter chamado um artista tão sofisticado. Se ouvir a gravação, eu acho bom. Mas botar ela pra concorrer no mundo da música popular com aquilo, não era perfeito. Rogério Duprat, quando fez seus primeiros arranjos, já tinha a força de tudo pronta. Eu estava ainda armando, começando a montar minha linguagem, com aqueles blocos de metais. Mas era muito incipiente ainda, não era acompanhado por uma percussão forte, pra poder dar uma coisa pra manter o artista cantando. Aquilo ia ser minha linguagem já formada em 1976, quando escrevi a música novamente.

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4 coisas que você não sabia sobre Tom Zé, 1972



1. O disco não se chama "Se o caso é chorar". Só levou esse nome numa reedição dos anos 80 e por conseqüência infeliz no dois-em-um em CD. O nome do álbum é simplesmente Tom Zé, como nos dois primeiros dele, 1968 e 1970.

2. "Sonho Colorido de um Pintor" não é de Tom Zé (e o CD não traz o nome dos autores). A música que fecha o LP de 1972 foi antes o samba-enredo de 1971 da escola Camisa Verde e Branco, composta pelo sambista carioca (ou fluminense?) radicado em São Paulo Talismã.

3. O desenho da capa é de Sergio Grecu, que nos anos 60 expunha suas telas na Praça da República e depois fundou (com Lothar Charoux e outros 11) o Grupo dos 13.

4. Nos primeiros segundos de "Senhor Cidadão", a voz que lê o poema "Cidade"? Na capa interna (não reproduzida no CD): "de Augusto de Campos, pelo autor".

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o telefon-



Quando fala "no meu descompasso o riso dela", falta um tempo no compasso. O samba é em 2/4 e ali na palavra descompasso tem um compasso em 1/4 - sem o tempo fraco, dois tempos fortes sucessivos. No "telefon...", a letra é suprimida pra a pessoa imaginativamente ouvir se o telefone está chamando ou não.

Porque quando a pessoa está sozinha, o telefone chamando é uma esperança. Não é uma recorrência - você fala "o telefon...", aí quando toca o telefone você pára pra ver se está tocando mesmo? A intenção era essa, o que tento fazer lá é que você veja o quadro de uma pessoa que faz isso.

O Adolphe Appia, que no princípio do século foi o primeiro teórico das artes, dessa parte das artes, disse que as artes plásticas são artes espaciais - você vê tudo num instante -, as artes do discurso e da música são artes temporais - precisam de um espaço de tempo -, e o teatro é uma arte espaço-temporal - porque depende também do gesto do ator, enquanto o discurso, que é o texto, está sendo apresentado.

"Solidão" foi o momento em que tentei botar o espaco dentro do tempo. É ótimo você botar pequenos segredinhos mais cabalísticos, mais esotéricos como esses, ou mais simples, como tantos outros, pra pessoa do outro lado descobrir, ver que tem lógica.




(Foto daqui.)

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nome cumprido xique-xique



Tom Zé sempre gostou da brincadeira de reescrever, recriar, recontextualizar, reciclar, remixar, mashupar, auto-plagiar, como quiser chamar. Vai vendo: "Jimmy Renda-se", 70, vira "Dor e dor" em 72. "Que bate calado", 73, vira "Dói" em 76, com o refrão de "Feitiço", 69. "O sândalo", 72, que já havia sido "Escolinha de robô" em 70, depois vira "Gene" em 98. Sem falar em "", 76, depois "Nave Maria" em 84.

"Xiquexique", de suas criações mais intensas e irresistíveis, sempre disse muito pelo uso da repetição do riff áspero e hipnótico sobre (ou sob?) o groove baião - que, aliás, é tão forte na raiz de Tom Zé, apesar de parecer diluído nos seus caminhos tropicalistas e pós-tropicalistas. Mais famosa na versão do disco Com Defeito de Fabricação, de 98 (dos melhores de Tom Zé da década), ela já havia sido concebida quase idêntica pra a trilha de Parabelo, aquele reco-reco vocoder analógico, letra de Zé Miguel Wisnik e vocal de Arnaldo Antunes, um ano antes. Em 2008 veio também no Danç-Êh-Sá Ao Vivo, cheia de onomatopéias e jogos de palavras. Faz todo o sentido: nos seus shows, é comum ao final de todo o fluxo de informações do discurso musical e verbal de Tom Zé a banda se entregar ao groove de Xique-Xique e toda a galera levantar e dançar.

Tudo isso pra mostrar as origens do loop que deu origem à série, maior hit. Odair Cabeça de Poeta e Grupo Capote, O Forró Vai Ser Doutor, Cid, possivelmente 1975. Entre 72 e 75, o Capote era a banda de apoio de Tom Zé em discos e shows, então foi natural: três faixas produzidas, texto de contracapa e cinco faixas co-compostas por Tom Zé (ou Tonzé, como assina), inclusive "Você inventa", em 76 refeita no Estudando o Samba.

E, é claro, "A dor é curta e o nome cumprido":



psiu
psiu

ô chamei
ô quem é
ô que dor
ô amor

psiu
psiu psiu

ô chamei
ô chamei
ô quem é
ô quem é
ô que dor
ô que dor
ô amor
ô amor

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um Oh! e um Ah!

Esse engajamento era muito forte e o espaço Tuca fervilhava à temperatura ambiente. A segunda montagem do grupo estreou em 1967, revelando esse clima. Intitulada O & A, carregava consigo a criatividade e a ousadia que eram a tônica nas universidades. Para Suster, que participou de ambas, esta, também de autoria de Roberto Freire e musicada por Chico Buarque com arranjos de Júlio Medaglia, foi tão ou mais importante que Morte e Vida Severina, dada a situação política em que foi encenada e a proposta de comunicação conseguida numa época de ditadura.
“Conseguiu-se fazer um espetáculo em uma linguagem que todo mundo entendeu, falando-se apenas as letras O (atores representando os repressores) e A (procurando manifestar-se, modificar a situação), dificultando a censura”, recordou. O envolvimento da universidade também foi intenso. Conforme relatado na edição comemorativa Tuca 20 anos, “a utilização de apenas dois fonemas era uma grande inovação e exigiu um profundo trabalho de estudos e pesquisa”.
Silnei lembra que foram precisos dez meses de ensaio. “Era um espetáculo de muita expressão corporal. Houve críticas estupendas sobre a peça. Eu acredito que ele tenha sido mais importante para o Tuca do que Morte e Vida Severina. Tivemos uma temporada do O & A no João Caetano com casa lotada no ano seguinte. Depois veio o AI-5...”


De um texto sobre o Tuca, aqui.

Tomzé em 1973, playar:

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Lulina canta Tom Zé



Lá vem a onda: quarta-feira Lulina canta canções de Tom Zé de graça, na Galeria Olido, de vitrine pra São João, no pé da cidade, onde começam Augusta, Angélica e Consolação.

Show às 19h em ponto, repertório com as mais bonitas, arranjos e interpretação de coração, Lulina acompanhada da Banda dos Contentes: Mauricio Fleury, piano elétrico; Pedro Falcão, bateria; Demétrius Carvalho, contrabaixo acústico.

Primeiro show do volume 2 do projeto CONEXÕES na Olido, que tem ainda Barbara Eugenia cantando Ney&Secos (dia 11), Bruno Morais cantando Novos Baianos (dia 18) e Duani cantando Tim Maia (dia 25).

Você gosta? Então derrame toda hora.

LULINA canta TOM ZÉ
Quarta, 4 de novembro
Galeria Olido, av São João 473
GRÁTIS

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batizado bom



Em 1976, Tom Zé abria um de seus melhores discos, Estudando o Samba, com "Mã", das principais experiências dentro da idéia de desconstruir o mais famoso ritmo brasileiro. A idéia toda nasceu de uma conversa com Duprat, me contou Tom Zé, na época do aniversário de 30 anos do disco: Em 1975 o samba estava muito denegrido, todo mundo dizia que estava repetitivo, estava mal. Aí um dia o Rogério Duprat me falou uma coisa que me iluminou, disse, "Tom Zé, você veja, o samba está esculhambado, mas, se você pegar aquela estrutura que faz o samba - o surdo, o tarol, a caixa, o tamborim, a cuíca - e analisar, isso é de uma sofisticação que não tem tamanho." E quando ele me disse isso, rapaz, eu fiquei num contentamento que me deu a idéia de fazer o Estudando o Samba.

Longe de um disco de samba, mas um riquíssimo disco de Tom Zé sobre e a partir do samba - crônica, paródia, pastiche, ironice; elementos da música de Tom Zé de 1955 a 2009 e além. "Mã", especificamente, com sua intro na percussão e riffs de cavaquinho e guitarra que entram em lugares inesperados, genuinamente entortando o samba, era tão emblemática que ainda acabou retrabalhada por Tom Zé como "Nave Maria", no disco homônimo, 1984.



Vinte anos depois do lançamento, o arame farpado em torno da capa com a enorme palavra SAMBA chamou a atenção de David Byrne em uma passagem pela Galeria do Rock, em São Paulo. Comprou, levou pra casa, ouviu, trincou e relançou por seu selo, Luaka Bop. Ponto de partida de toda uma nova fase na carreira de Tom Zé: ídolo cult pop experimentalista para mais de uma geração de americanos (e europeus e et ceteras) interessados em seu anti-pop engenhoso e deliciosamente anárquico. De Tortoise a Cake, passando por Amerie, rappers, indie-rockers e free-jazzistas...

Instintivamente, Tom Zé, com sua formação de músico erudito de vanguarda e sua sensibilidade pop ácida do sertão, atinge com suas construções sonoras totalmente particulares e constantemente únicas um centro nervoso de estímulo pulga-atrás-da-orelha que se comunica universalmente, de tão sensoriais.

Veja o Nomo, banda de Detroit, naquele universo recente de "afrobeat" pós-Pós-Rock. Saca a versão de "Mã" que a banda lançou há poucos meses, no álbum Invisible Cities - onde a voz vira naipe de sopros, a guitarra vira sax barítono, o cavaquinho vira guitarra e o intrincado arranjo de Tom Zé, construído sobre ostinatos em contraponto, se torna base de uma interessante interpretação, toda cerebral e hipnótica, girando sobre si mesma:

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música aleatória



Essa história do despedaçamento, como essa coisa pode surgir na cabeça da gente?

O cinema, por exemplo, é uma experiência de despedaçamento - que é uma forma de arte. Pra nós, que só conseguíamos entender a vida num continuum que era um por um - como se fosse um mapa, 1X1 -, a vida só era vivida de uma maneira que cada dia passa com 24 horas. No cinema, um mês pode passar em 15 minutos. Os romances também, as histórias. A primeira experiência do despedaçamento é a primeira história que o mundo viu, a história do poeta cego grego, do ano 10 mil antes de Cristo, a história da guerra de Tróia, a história de Ulisses voltando pra Ítaca; a Odisséia, de Homero. Então, a idéia do despedaçamento já estava no hipotálamo do cérebro do homem. Mas não sei assim proximamente de onde me veio a idéia, me veio da eterna curiosidade. Milhões de outras idéias não deram certo - idéias aparecem milhões, uma ou outra você consegue que fique sintaticamente acompanhável. Quando ela sintaticamente não toma forma, não acontece nada.

Eu também já tinha passado por uma escola de musica pós-moderna, onde tudo era tentado. Então de uma hora lá qualquer eu pensei que a gente podia fazer um ritmo de samba que era despedaçado, os acontecimentos que formam o corpo de um samba esgarçados, como se fossem jogados por acaso os componentes de uma fisionomia que acabavam formando outra fisionomia. Digamos, sete instrumentos são sete fisionomias. Se você pega um pedaco de cada fisionomia e joga de vez em quando pedacos de três fisionomias diferentes, formam uma nova coisa, como os franceses chamam, Bricolages.

Pensei na seguinte explicação: vamos dizer que eu escreva vários pedaços de música num elástico, depois amarre o elástico na parede e vá estirando. Aquela música é isso. É um samba, mas tocado aos pedacinhos, como se a partitura tivesse sido estirada. Eu passava dias e dias explicando ao Grupo Capote como é que devia ser: "olha, você toca o agogô, mas toca só uma célula de uma batida de samba e cada hora em um tempo diferente, você nunca toque igual essa célula no mesmo tempo depois." Cada célula sempre em momentos diferentes, de forma que ninguém pudesse esperar. Então, sete pessoas improvisavam. Aquilo foi um inferno, eu passei dias, semanas, meses: "toque assim, toque assado". Eu tinha fitas de gravador de rolo com horas e horas e horas de tentativa. Horas de improviso, de luta, de sacrificio.

Aí, veja o que aconteceu: aquilo estava esquecido na ocasião do Estudando o Samba. Um dia, quando estava na véspera de fazer o disco, estava ouvindo essas fitas velhas, trechos e trechos daquela tentativa, e de repente um pedaço me pareceu perfeito, me pareceu o que eu queria. Achei bom, continuou bom, continuou bom: um minuto e meio perfeito do que eu sonhava. Exatamente como está no disco, esse trecho que eu tirei, copiei e fiz o "Toc". Muita coisa eu fazia cortando fita naquele tempo. Então marquei o lugar na fita, levei pro maestro Briamonte e falei: "Bria, daqui até aqui escreva pra músico tocar, não vou chamar gente pra improvisar que vai ser milhões de horas". O Bria escreveu e a gente acrescentou aqueles metais.


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Ah, meu deus do céu, vá ser sério assim no inferno



Domingo, sete da noite, auditório Ibirapuera, show do Tom Zé. Ele está cantando "Brigitte Bardot", música sua de 1973, do incrível álbum Todos os Olhos. A Brigitte Bardot está ficando velha. Será que algum rapaz de vinte anos vai telefonar na hora exata em que ela estiver com vontade de se suicidar? Quem conhece se diverte, quem não conhece simplesmente sente o susto planejado por Tom Zé: de repente a banda toda, que desde o começo da música se continha em sussurros, se transfere do piano ao mezzo forte, transliterando ao som a intensidade da tendência suicida da Bardot de Zé.

Quando a gente era pequeno pensava que quando crescesse ia ser namorado da Brigitte Bardot, continua a música. Mas a Brigitte Bardot está ficando velha, e de susto não morre mais: na repetição, onde antes havia o som abrupto, aqui há o fim tranqüilo. Tom Zé percebe o efeito do anticlímax: "Ah, vocês acharam que ia ser igual de novo? Aí não ia ter graça; a arte tem que surpreender."

Ironicamente, o mise en scène que gerou todo o imbroglio virtual começou com Tom Zé ironizando a onipresença de Caetano. "Você vai me entrevistar amanhã", começou ele ao microfone, ao comentar a presença de Pedro Alexandre Sanches na audiência. "Se for pra perguntar de Caetano, nem vá." Todo mundo riu e quase ficou por isso mesmo. Mas papo vai, papo vem, foi.

Caetano, todos sacam, é condescendente com todos e em especial com Tom Zé. Tom Zé, todos sacam, tem um certo orgulho ferido pelo carão de 30 anos do Caetano. Mas, convenhamos, ninguém tem culpa do ostracismo de ninguém. Cá de meu lado, acho Tom Zé um artista muito mais interessante quando totalmente independente de todo o Tropicalismo (salvo Duprat). Seus melhores discos soam tropicalistas apenas na medida em que Tom Zé é tropicalista avant la lettre: as fusões e experimentações e ironias e senso pop de manchete de jornal são naturais a ele e por ele foram emprestadas ao movimento.

Uma vez, conversando com Tom Zé justamente sobre uma "exclusão" sua do grupo tropicalista de elite, ele me dise: "minha obrigação é gostar e minha melhor estratégia é amar." Desde sempre essencialmente um inventor, Tom Zé se justifica na sua criatividade, não em qualquer carteira de associado de clube de ex-tropicalistas ou compositores malditos ou ídolos cult de descolados gringos. Daí, às vezes temo ele cair na armadilha de abusar do ostracismo, de um antagonismo com Caetano, de tanta excentricidade ou qualquer de suas criações tão interessantes como matéria-prima. Porque, afinal, a arte tem que surpreender.

Em pleno 1973, Tom Zé surpreendia quem ouvia "Complexo de Épico", música que abre e fecha Todos os Olhos. Sobre uma base gravada, recortada e colada - um loop analógico, portanto -, ele canta (bem, "canta"):

Todo compositor brasileiro é um complexado

Porque então essa mania danada
Essa preocupação de falar tão sério
De parecer tão sério
De ser tão sério
De se sorrir tão sério
De se chorar tão sério
De brincar tão sério
De amar tão sério?

Ah, meu Deus do céu
Vá ser sério assim no inferno

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1972 na música brasileira


Chico Buarque * Quando o carnaval chegar [dl aqui]
Ironias com o rock, arranjos de coreto, clima de carnaval de filme do Nelson Pereira dos Santos, canções rebuscadas e aquela delicadeza e melancolia que ganham a ala feminina: é o disco que inventa não só Marcelo Camelo, mas também toda a cena de samba universitário da Vila Madalena em São Paulo.


Caetano Veloso * Transa [dl aqui]
O disco favorito de todo fã do Caetano, o disco "mas esse é bom" de todo detrator do Caetano, o disco favorito do próprio Caetano e boa dose de inspiração pra atual "fase roqueira" dele. Gravado em Londres, com Caetano deprimido e inspirado e com a banda liderada por Jards Macalé tocando ao vivo no estúdio, criando camadas de sons, canções, emoções.


Elis Regina * Elis [dl aqui]
Elis Regina não era cantora de bossa nova nem de jazz, não era hippie nem tropicalista. Era tão idiossincraticamente pessoal que tiveram que inventar um rótulo o mais genérico possível - simplesmente "música popular brasileira" - pra dar conta de generalizar discos como esse. Muito por culpa de Cesar Camargo Mariano, recém-vindo da banda de Wilson Simonal.


Tom Zé * Tom Zé [dl aqui]
Foi ali, por volta de 1972, que Tom Zé teve que encarar de vez a dura realidade: ele não fazia parte da elite da música brasileira. Provavelmente não era nem tropicalista. Livre da responsabilidade e encarando sua própria genialidade, criou seu primeiro grande clássico - de uma série que ao mesmo tempo o jogou no esquecimento e o tirou de lá 20 anos depois.


Tim Maia * Tim Maia [dl aqui]
Tim Maia era movido a emoções fortes. E deve ter tido poucas mais fortes que a fossa e dor de corno que sentia quanto compôs e gravou esse disco, esbanjando conhecimento de causa em funksoul e transbordando despeito e desamor. Pelo menos em termos de à-flor-da-pele, o grande disco do recente biografado pela assinatura Nelson Motta.


Erasmo Carlos * Sonhos e Memórias [dl aqui]
Depois de ir gradativamente ampliando seus horizontes a cada disco desde fins dos anos 60, foi em 1972 que Erasmo assumiu que queria mesmo era ser hippie. Esqueceu aquele papo de jovem guarda, trocou de gravadora, casou e foi pro mato. Nessas, renasceu um grande compositor: agora a inspiração vinha em sambinhas, baladas folk, soul, desabafos e declarações.


Jards Macalé * Jards Macalé [dl aqui]
Animado como compositor pelo Vapor Barato da Gal e como bandleader pelo Transa do Caetano, em 1972 Jards respirou fundo e colocou tudo no seu primeiro disco: sua voz, seu violão, sua excentricidade, sua sensibilidade, a poesia de Waly Salomão e o som de Lanny Gordin e Tutty Moreno.


Gilberto Gil * Expresso 2222 [dl link]
Gil, eufórico de alegria de estar de volta ao Brasil depois de dois anos no exílio, faz um disco mais brasileiro que nunca - mas, sob a influência do primeiromundismo roqueiro britânico, também mais roqueiro do que nunca, com a pegada de Lanny e Tutty já virando assinatura.


Maria Bethânia * Drama - Anjo Exterminado [dl aqui]
Caminhando a passos largos em direção ao desbunde baiano sem limites da década de 70, mas ainda com a criatividade aguçada, Bethânia estava ligada nas coisas: chamou o irmão recém-chegado de Londres com aquelas idéias novas pra produzir um disco dela. Long story short, Drama está pra Bethânia como Transa pro Caetano.


Roberto Carlos * Roberto Carlos [dl aqui]
Em 1972 Roberto não precisava provar mais nada a ninguém. Já era há tempos o maior popstar do Brasil, já tinha sido justificado pela intelectualidade através do tropicalismo, já tinha superado tudo isso e entrado no olimpo popular com Detalhes. Então, fez a única coisa que lhe restava: inventou todo um estilo musical, hoje conhecido como "brega".


Novos Baianos * Acabou Chorare [dl aqui]
Depois de uma estréia subtropicalista, os Novos Baianos tiveram um intensivão direto na fonte de todas as revoluções: João Gilberto, que apareceu na comunidade hippie deles, dividiu o banza e os ensinou a graça de Assis Valente. Some à epifania cool de Moraes, Baby e Paulinho o virtuosismo empírico dos jovens gênios Pepeu, Dadi e Jorginho e pronto: obra-prima.


Wanderlea * Maravilhosa [dl aqui]
Entediada com a música e com a persona em que a haviam metido nos anos 60 - música e persona que ajudaram a libertar em público o inconsciente de incontáveis adolescentes brasileiras, mas já pareciam a essa altura coisa da década passada -, em 1972 Wanderlea desbundou maravilhosa: de black power loiro na capa, cantava o feminismo, Hyldon, Gil e Jorge Mautner (com direito a trejeitos bicha e tudo).


Leno e Lilian * Leno e Lilian [dl aqui]
Dois discos, sucesso, Devolva-me & Pobre Menina e quatro anos de carreiras solo depois, Leno e Lilian reencontraram-se para reinventarem-se de jovemguardistas naif a roqueiros-folkeiros setentistas melancólicos e semibregas, sob a batuta do então produtor Raul Seixas. E não é que as vozes sacarinas em uníssono funcionam na nova roupagem e o disco se torna um clássico esquecido do folk-pop brasileiro?


Arthur Verocai * Arthur Verocai [dl aqui]
Garoto prodígio da turma dos festivais que vinha se transformando em um dos arranjadores de ouro de sua geração, em 1972 Verocai ganhou passe livre da gravadora Continental para fazer um disco todo só seu, do jeito que quisesse. Com a experiência de diretor musical de um Ivan Lins imitando Tim Maia em começo de carreira e sob a influência de suas amizades mineiras, pirou total: solos jazzísticos, pegada funk, letras hippie de tom contemplativo e o primeiro sintetizador usado em um disco brasileiro. Demorou só 30 anos para as pessoas entenderem.

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