Não era minha intenção retomar a minha participação neste blog com um texto sobre ecologia, mas confeso que o post do Diogo me deixou ligeiramente desconcertado. Não pretendo sair em defesa dos textos do João Bernardo, que passa muito bem sem ela, mas como já tive oportunidade debater noutras paragens o assunto com o Diogo, aproveito o embalo.
Evidentemente que as variações no campo do pensamento ecologista são virtualmente infinitas e que, a essa luz, toda e qualquer generalização se apresenta precipitada e potencialmente abusiva. Mas trata-se aqui de identificar um núcleo de assunções e pressupostos comum à maioria das posições expressas nesse campo e não de as apresentar a todas na sua singularidade. Parece-me incontornável que esse núcleo existe e que corresponde, grosso modo, ao retrato que dele faz o João Bernardo.
«Ecologista» não quer aqui dizer «vagamente preocupado com o impacto do modo de produção capitalista no planeta» ou «ligeiramente consciente de que o lixo que produzimos é cada vez maior e importa fazer qualquer coisa a esse respeito». Penso que este debate só tem a ganhar com a assunção de que falamos em «ecologia» quando nos referimos a uma concepção do mundo assente na centralidade da interacção entre os seres humanos e o meio ambiente, enquanto critério para aferir e interpretar as relações sociais entre esses seres humanos. As conclusões a que se pode chegar a partir dessa concepção são inúmeras e variadas, as posições possíveis diversas, mas o que está aqui em causa é a centralidade e é precisamente isso que se procura refutar na crítica da ecologia (sem aspas).
Não vou enfastiar o leitor com exemplos concretos de discursos que partem dessa centralidade para conclusões tendencialmente reacionárias, como a de que devemos «reduzir o consumo», ou ligeiramente obscurantistas, como a de que «atingimos o limite da Terra consumindo recursos numa velocidade 50% maior do que a sua capacidade de se recompor». Tão pouco pretendo sugerir que por vezes emerge de preocupações ambientais perfeitamente estimáveis uma certa tendência para sacralizar árvores ou animais ou a natureza nos seu conjunto.
Chamo apenas a atenção para o facto de uma perspectiva de classe, que tenha em conta as desigualdades que fazem mover o capitalismo, se ver quase sempre ausente e sempre menosprezada em semelhantes raciocínios. Quem é o «nós» que deve reduzir o consumo e que é responsável pela ultrapassagem do suposto limite das capacidades do planeta? Evidentemente, todos e todas... O que poderia ser mais conveniente para quem conduz os seus negócios do que esta diluição das responsabilidades pelo conjunto da humanidade?
Chamo apenas a atenção para o facto de uma perspectiva de classe, que tenha em conta as desigualdades que fazem mover o capitalismo, se ver quase sempre ausente e sempre menosprezada em semelhantes raciocínios. Quem é o «nós» que deve reduzir o consumo e que é responsável pela ultrapassagem do suposto limite das capacidades do planeta? Evidentemente, todos e todas... O que poderia ser mais conveniente para quem conduz os seus negócios do que esta diluição das responsabilidades pelo conjunto da humanidade?
E vale a pena sublinhar que mesmo lutas justas em si mesmas, como é o caso do combate ao monopólio das sementes pelas grandes empresas do agro-negócio, se vêm frequentemente canalizadas para formas de «resistência» duvidosas, como é o caso aqui:
Não podemos deixar que a indústria química e biotecnológica assuma os meios de produção de alimentos como está a tentar fazer. Eles não estão interessados em fornecer um benefício para o mercado. Eles estão interessados apenas em controlar o mercado. Resiste à tirania da comida cultivando o teu próprio jardim, guardando sementes vivas na terra, ou pelo menos, apoiando o teu agricultor orgânico local.
Ou como se aponta para um capitalismo verde enquanto horizonte privilegiado da acção política, aqui:
Individualmente podemos pressionar nossos governantes a adotarem posturas que fortaleçam a sustentabilidade em seus processos produtivos e também calcular como nosso estilo de vida impacta negativamente a capacidade da oferta de serviços ambientais pelos ecossistemas.
Ou como se projecta um futuro em forma de harmonia e simplicidade voluntária:
Vida Verde é um Encontro exclusivamente dedicado à partilha de práticas ecológicas, em que uma das finalidades é informar, sensibilizar e proporcionar a todos os participantes os conhecimentos e a sabedoria para viver uma vida mais Simples, Natural e Sustentável, que esteja em harmonia com a Natureza e com as pessoas. [...] Acreditamos que para a construção e desenvolvimento de uma comunidade verdadeiramente sustentável, devem ser prioridades a adopção e implementação de critérios e práticas que respeitem o Planeta, a Humanidade, os Animais não-humanos e a Mãe Natureza como um todo.
O que interessa não é tanto partilharmos umas gargalhadas a propósito das formulações mais ou menos místicas e extravagantes relacionadas com o tema, mas interrogarmo-nos se não existirá algo que o atravessa, que está no seu âmago e não corresponde a uma caricatura ou a um momento infeliz, que explique a multiplicação de afirmações deste género.
Porque é que palavras como «soberania», «desenvolvimento», «sustentabilidade», «regeneração» ou «equilíbrio» surgem com semelhante facilidade nesse contexto? Porque é que se pretende, com tanta insistência, «criar paradigmas de pensamento sócio-culturais biocêntricos em oposição ao especicismo e antropocentrismo», ao ponto de fazer disso um dos projectos em destaque numa das mais activas organizações ambientalistas em Portugal? E porque é que haveríamos de ir em busca de um «ecologismo» outro para criticar e polemizar, se aquele que se exprime de forma mais visível e prática, aqui mesmo paredes meias connosco, corresponde precisamente à descrição que serviu de ponto de partida para tudo isto? Não corresponderia semelhante exercício, esse sim, a uma «selectividade arbitária»?