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14/03/13

O fascismo de Perón - 1ª parte

O casal Perón: pais políticos de Chavez?

«A face de Perón voltada para os trabalhadores tinha um nome — Evita. «[…] iria ser precisamente a plenitude do poder o que impediria o Líder de se manter em contacto directo com o povo», escreveu ela. «Resolvi ser “Evita” para que, por meu intermédio, tivesse o povo, e especialmente os trabalhadores, desimpedido o caminho que levava ao Líder» [45]. O historiador não deve ter aqui medo de cair na petite histoire, porque Eva Perón pertence à verdadeira história. Não foi apenas uma mulher bonita. A tenacidade que demonstrara para subsistir como actriz de terceira ordem sem resvalar para outra profissão manifestou-a também para construir um aparelho político próprio [46], assente em dois pilares: a Fundação de Ajuda Social, criada em 1948, e o Partido Peronista Feminino, fundado no ano seguinte. Este partido assinalou a entrada oficial da mulher na política organizada, mas era um estranho feminismo, que desejava manter a mulher nas funções tradicionais, e para fixá-la ao lar Eva Perón concebeu o projecto, jamais realizado, de o Estado pagar a todas as mães de família um salário pelas lides domésticas [47]. «O feminismo não é incongénere com a natureza da mulher», escreveu Eva Perón, mas que «natureza» seria essa? Considerando que «o natural na mulher é a entrega de si mesma, a entrega por amor», ela concluiu que «o melhor movimento feminista do mundo […] seria […] aquele que se entregasse por amor à causa e à doutrina de um homem», e que outro senão o general Perón? Para ser ainda mais clara, ela insistiu que «nenhum movimento feminista alcançará no mundo glória e eternidade se não se devotar à causa de um homem» [48]. Era a política transposta para o nível sentimental dos folhetins radiofónicos em que Eva fizera carreira. Parece que a população confundia o Partido e a Ajuda Social, porque Eva Perón observou que «os “descamisados” não distinguem ainda a diferença que vai entre a organização política a que presido e a minha Fundação» [49]. As obras de benemerência estatal foram multiplicadas pela propaganda que as difundia, e a importância política da relação entre Perón e Evita apenas se explica pela utilização das novas técnicas radiofónicas[50]. Evita foi um Goebbels muito mais eficaz. Ela foi uma voz que mobilizou os sem voz, as mulheres e os trabalhadores, os mais humildes de todos, os descamisados. Na figura de Evita projectaram-se anseios sociais não formalizados pela consciência política, tal como em qualquer vedeta de nascimento modesto se corporalizam as aspirações de muita gente.»

Excerto da primeira parte de um valioso artigo do João Bernardo. O texto integral pode ser lido aqui.

07/01/13

Algumas notas muito breves sobre o sistema financeiro – II

As empresas capitalistas só funcionam recorrendo ao crédito como modo de financiamento das suas actividades quotidianas. Isso sempre aconteceu neste modo de produção e muito mais do que um antagonismo entre o sector financeiro e o sector industrial existe, de fato, uma complementaridade. Claro que existem oposições e certamente rivalidades. Mas essas rivalidades também ocorrem entre empresas industriais do mesmo ramo económico ou entre o capital industrial e o comercial, etc.

A questão fundamental das teses que defendem esse pretenso antagonismo entre a finança e a produção é que a economia produtiva não cresceria fruto do garrote que a primeira colocaria sobre a segunda. Ora, a verdade é que os investimentos produtivos transnacionais necessitam de um volume maciço de capital-dinheiro que só pode ser colocado através do sistema financeiro. Na realidade o sistema financeiro existe em função da aplicação e da expansão dos negócios e dos investimentos produtivos, mobilizando a uma escala realmente transnacional enormes volumes de capital-dinheiro. Considerar que a financeirização teria impedido o crescimento da economia produtiva nas últimas décadas é esquecer que esta cresceu de um valor aproximado de 15 para quase 70 triliões [na escala longa] de dólares, isto em apenas 30 anos.

Por outro lado, na sequência de um longo artigo que estou a preparar para publicação noutro espaço, a consulta que tenho vindo a levar a cabo de material do FMI, do Banco Mundial, do BCE, do BIS (Bank for International Settlements), etc. sobre o modo como a classe dominante perspectiva os instrumentos financeiros e como ela perspectiva a relação entre finança e produção demonstra totalmente o contrário do que as teses produtivistas preconizam. Com efeito, o que os relatórios existentes e que já compilei demonstram é precisamente o inverso do que a esquerda nacionalista apregoa. Por um lado, os instrumentos financeiros são vistos como uma forma essencial de alocação de capital-dinheiro para incrementar os investimentos e, por sua vez, a produtividade do trabalho. Por outro lado, como uma forma de regulação (ou tentativa de regulação) do grau de incerteza inerente ao processo económico, daí a multiplicação de instrumentos de securitização e de cobertura dos investimentos. Ou seja, as críticas que os capitalistas fazem a instrumentos financeiros são sempre à opacidade com que se desenrolaram alguns dos negócios antes da crise e não à sua utilização e sua oportunidade. Ora, o que os economistas chefes e economistas principais de todos os organismos transnacionais de organização institucional apontam é que tem de haver uma maior regulação de instrumentos que, por si só, já são destinados a regulação financeira. E aqui há dados muito interessantes do modo como os gestores percepcionam os derivados. Onde a esquerda histérica vê neles meros objectos de especulação e de jogo de casino, os capitalistas e os gestores vêem-nos (e aplicam-nos) como instrumentos de regulação e de tentativa de controlo da incerteza relativamente às flutuações económicas.

Ora, esta parece-me ser uma ideia fundamental para desmontar as teses fantasiosas do juro como categoria pretensamente arbitrária e ditada pela "vontade e maldade" dos bancos. Pelo contrário, o mundo da finança repercute uma intenção clara de tentativa de controlo e de coordenação global (dentro de cada empresa e a nível nacional e transnacional) dos mecanismos económicos. Onde a esquerda nacionalista tem visto nos mercados financeiros um conjunto de Shyllock’s desejosos de carne e sangue da "economia produtiva", a realidade parece apontar para os instrumentos financeiros como tentativas de redução do risco económico, logo, como instrumentos complexos de aumento dos ganhos de eficiência na aplicação de investimentos produtivos. Claro que como tudo numa economia movida a crédito existe um risco associado. Senão não existiriam crises económicas... Todavia, os derivados e afins existem, pelo contrário, para controlar o risco inerente.

Em resumo, "produtos" financeiros que aparentam ser exclusivamente especulativos são, na verdade, instrumentos muito parecidos com os seguros. (Têm diferenças técnicas importantes, mas para o que nos importa penso que a parecença pode ser elucidativa). São, portanto, instrumentos que ajudam os capitalistas a regularem as oscilações dos mercados e a garantirem que os capitais aplicados em investimentos não se percam na sua totalidade, no caso de falência. Claro que esses derivados levantam problemas. Mas a questão da sua relação com a reprodução alargada do capitalismo e da sua dinâmica produtiva coloca-se novamente. Por cada dois anos de crise financeira, eles permitiram um crescimento económico de outros 30. Evidentemente à custa da exploração da força de trabalho, exploração que tem ficado completamente de lado pela esquerda nacionalista ou, igualmente pernicioso do ponto de vista político, concebida como um mero saque dos bancos sobre os “produtivos”.

Em suma, a finança interliga-se profundamente com a produção e não a obstaculiza. Ao invés é o que permite gerir o sistema capitalista de produção num plano territorial e sectorial muitíssimo mais vasto e com uma tentativa de controlo das expectativas de negócio. O que se entende regularmente por especulação é uma ninharia comparado com o papel muito mais importante de regulação global do sistema financeiro que permite a expansão da produção (e da exploração económica). Assim, o sistema financeiro existe não apenas em função da produção capitalista mas opera muito mais como tentativa de coordenação e de alocação global do que como espaço de especulação (que também o é).

Por conseguinte, a crítica da finança não pode deixar de lado a crítica às relações de trabalho no capitalismo sob pena de os críticos da agiotagem o reconstruírem em novos moldes, independentemente das cores das bandeiras ou das palavras de ordem. Quando tal remodelação do capitalismo ocorreu não se tratou de um novo governo ou de um simples ajuste das políticas económicas. O nome político dessa remodelação assente numa aliança nacionalista entre trabalhadores e sectores industrialistas das classes dominantes foi um: fascismo.