14.12.24
PELE DE PAREDE
Os painéis de madeira, nas salas da preciosa Vila Idalina,
Os antigos papeis de parede da Casa Vermelha,
Os mosaicos arte nova da Casa Verde,
Os fingidos dos mestres estucadores de Seixas,
O louceiro de canto no After Eight,
O resistente stencil do Variações no vetusto João Ratão,
E estes quadrados de choupo,
Também
Alminha, Caminha, 12 de Dezembro de 2024
4.10.23
O JOALHEIRO (The Jewller – Tom Rapp / Pearls Before Pigs – by This Mortal Coil)
30.12.22
O tempo é redondo e no entretanto move-se
17.12.21
FINGIDOS DO MAR / GALERIA BAR AFTER EIGHT / CAMINHA / DEZEMBRO 2021
Desde que abri a Oficina da Alminha em Caminha que todos os anos, em Dezembro, fazemos (eu e o Francisco Ramalhosa, feliz proprietário do After Eight - Galeria/Bar) uma exposição com trabalhos da “oficina da Alminha” [“oficina” porque foi sempre o que mais me interessou na pintura: a possibilidade do trabalho de artificie, da sua disciplina e da sua humildade no fazer, sabendo-se um mero instrumento, uma mera caixa ao vento soando, eventualmente bem, e aí: misteriosamente bem; “da”, porque sempre “assinei” os trabalhos feitos nessa oficina com o seu nome, na tradição medieval de não ser a criação coisa individual, mas do lugar; “Alminha” porque a primeira oficina aconteceu em Outubro de 2014, numa casa em Cerveira a que chamávamos “das Alminhas”, por ter um nicho do Senhor dos Passos na sua esquina.].
Todos os anos esta exposição tem-me dado um motivo para orientar a produção da Oficina para essa exposição; organizo o trabalho sistematizo-o e preparo a sua montagem.
Para este ano escolhi a terra dos meus trisavós paternos: Seixas - que é também o lugar que une tantos grandes artífices (com Vilar de Mouros e Lanhelas). Eram famosos os Ferreiros; Serralheiros; Estucadores; Canteiros; Arquitectos (Miguel Ventura Terra); Pintores (o avó do Cruzeiro Seixas era de Seixas; o Pai de António Pedro também era de Seixas, Guilherme Renda era de Seixas; Raul Pérez, meu querido amigo, também poderá ter antepassados em Seixas, o que ainda investigo).
É curiosa esta coincidência de serem de Seixas os supostos melhores “Pintores Fingidores” e depois serem também de Seixas aqueles referidos pintores e o próprio Arq.to Miguel Ventura Terra. Sem “bairrismo” é coisa que intriga. Invocar os “Pintores Fingidores” era - e é - a intenção desta exposição.
Invocar esses artistas que foram todos os outros artífices nas suas artes de aqui (ferreiros, serralheiros, canteiros, estucadores). Verdadeiros Artistas como o era o Tio Antonino Recaredo Cruz, que fez os estuques nos tectos da casa de Gondarém, casa para a qual sempre pintei, como era o avô de Francisco Ramalhosa, Eduardo Sousa, de quem é a autoria do fingido de madeira, executado sobre o louceiro, também de madeira, que está no lado direito da barra do After Eeight, como o foram todos aqueles cuja história e nome foi revelada nos notáveis livros do Prof. Paulo Bento: “Dos Caidores aos Estucadores e Maquetistas Vilamourenses” e “Ferreiros e Serralheiros de Vilar de Mouros”, ambos disponíveis na Biblioteca de Caminha.
Na anterior exposição procurei mostrar a possibilidade de se extrair do pigmento da “uva tinta” (uvas da casta tintureira Vinhão ou Sousão), um efeito cromático que supera o dos pigmentos que geralmente uso nas aguarelas. Nesta procuro mostrar como a repetição do gesto dos Pintores Fingidores, tem uma beleza que foi sempre o último reduto da minha esperança de não ter feito uma escolha desastrosa quando escolhi ser pintor e deixei de ser advogado: se nenhum valor tiver o que faço, ao menos que tenha o valor do trabalho que está no que faço. Porém, aos poucos fui aprendendo que esse seria o maior predicado a que o meu trabalho poderia aspirar: conter trabalho, conter em si tempo dedicado. Não seria assim: “no pior dos casos”, mas "no melhor dos cenários": O que faço procura conter essa dedicação, praticamente total, ao que me propus fazer a pintar; comunicar-me da melhor maneira que o sei fazer: por imagens. Imagens o mais próximas possível do ambiente marítimo que procuro Fingir, simulando no papel o que de verdade vejo de olhos fechados, como simulando a água com a água com que pinto, como no poema de Fernando Pessoa:
“O poeta é um fingidor
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.”
Os fingidos eram uma arte de simular materiais nas pinturas de paredes, tectos, portas, armários, etc.. Era a arte dos “Pintores Fingidores”, assim designados nas Bases para Orçamentos para as obras civis, os quais recebiam por jorna 1.500 reis, enquanto que o “vulgar” Pintor de Pincel recebia 700 reis (já o “Pintor Decorador”, nessa mesma Tabela de 1880, recebia à peça e não à jorna, tendo maior liberdade na execução dos trabalhos solicitados).
Terão sido os fingidos de madeira aplicados sobre uma porta também de madeira, em casa de um amigo de Fernando Pessoa, que o terão motivado o poema “Autopsicografia” _ e certamente ao próprio título (a história foi contada por Júlio Pomar e se não for verdade é, pelo menos, muito bem caçada), tal como os fingidos de madeira executados no louceiro do After Eight pelo avô de Francisco Ramalhosa, deram o “clique” para esta exposição.
Quem saberá ainda hoje replicar os fingidos de mármore ou azulejos sobre estuque, ou de madeira sobre madeira, executar os estuques trabalhados, românticos, ora barrocos, ora ingénuos, simples ou como se fossem filigrana, o serpentear do ferro, trabalhado, sem soldaduras, só com rebites? O saber destes Mestres merece mais do que uma homenagem, merece que se pense seriamente se não deveríamos dar-lhe futuro, a bem do presente. Para quando uma escola de Artes e Ofícios (em Caminha ou em Seixas, ou em Vilar de Mouros) que honre este saber que distinguiu durante anos os artistas deste concelho?
Gondarém, 17 de Dezembro de 2021
11.9.21
Y A TI, QUE TE GUSTA EN LA VIDA?
O tempo estava encoberto, todas as divisões da casa no Campo Santana onde então vivia davam para a varanda mais bonita da minha memória. Uma varanda com largura suficiente para ter uma mesa para quatro pessoas, poder estar a chover e poder-se comer confortavelmente “à” chuva. De manhã tomava ali o pequeno almoço.
Ouvia a Dolores O'Riordan dos The Cranberries. Era o DVD que ainda estava a dar em loop na televisão, porque no dia anterior a Carolina (então com 4 anos) pedira para pôr “aquele da senhora da música forte”.
A casa tinha aquela suspensão das sombras das folhas praticamente imóveis, a suavidade dos seus movimentos nos tectos e paredes permitiam saber a brisa que fazia, aquela brisa fria que antecede a chuva.
Tínha acabado de acordar para o dia “D”. Era o dia da viagem a Madrid. O dia em que seria entrevistado por vários sócios da Uria & Menéndez a quem Coloma Armero me recomendara para abrir o escritório que a U.M. acabara de abrir em Lisboa. A mim caberia dar início a um Departamento de Tribunal e, provisoriamente, Laboral (procesal como era assim chamado o Departamento em Espanha). Tinha 37 anos e era uma espécie de chegar ao sonho de trabalhar num escritório com um rigor, disciplina de trabalho, vocação para a excelência que pode existir na profissão de advogado.
Para mim era como passar a fazer parte da Fórmula 1.
Antes disso conhecera a possibilidade dessa nobreza na profissão ao trabalhar no gabinete ao lado de Francisco Sá Carneiro (filho do falecido Primeiro Ministro mais saudoso de Portugal) e que foi de longe o advogado mais exemplar dessa possibilidade de auto-superação que pode dar a advocacia quando exercida sob a sua máxima que corria no écran do seu do seu monitor [Try Hard to do it better]. Máxima que depressa inverti para “Try better to do it harder”, dadas as diferenças entre as nossas duas advocacia: a dos negócios e a dos Tribunais. Na dos tribunais a máxima invertida parecia-me mais aplicável, sobretudo na área a que me dediquei desde o estágio - O Direito Penal.
Há vinte anos, enquanto me preparava para o avião que seria - salvo erro, pelas 11:00 da manhã, vestia-me e poderia muito bem estar a dar o nó à gravata da sorte - uma gravata que tinha representada em pequenos desenhos de um corvo e de uma raposa a dita fábula de La Fontaine, “da sorte” porque era aquela que me fazia lembrar do defeito fatal [nos momentos decisivos] que é a vaidade]
Telefonaram-me a perguntar se estava a ver a televisão? Liguei e vi as primeiras imagens. Um avião a embater contra uma enorme torre, estilhaçando-se com o realismo das imagens da série de filmes com “Aeroporto” no título.
Ainda estávamos na incredibilidade das primeiras imagens quando a cena se repete na outra torre. Um silêncio após a exclamação do terror da surpresa: Outro avião… na outra torre. O que era então um pior cenário entre vários emergiu nítido. Notícias da possibilidade de existirem outros aviões com outros alvos. Notícias do eventual risco em que estariam outros alvos como o Pentágono ou a Casa Branca.
Fui para o aeroporto. Apanhei o avião. Sentei-me e olhei para as nuvens. Foi aí que tive uma imagem: estas nuvens não diziam nada do que estaria a acontecer em baixo, nem permitiam ver a superfície da terra, como aconteceria se estivesse numa capsula espacial.
O que é que estaria a acontecer lá em baixo? Será que quando o avião aterrar o mundo já não é o mesmo que eu conheço?
Foi um daqueles momentos “clarão” em que o pensamento se ilumina e aparece nas suas sete quintas de tão nítidas que são as perguntas que então se formulam, as hipóteses que se colocam, a vertigem das infinitas possibilidades que o pensamento começa então a desmultiplicar.
De repente consigo ver “terra”, é imediatamente antes daquela que seria a primeira de muitas aterragens no Aeroporto de Madrid.
Liguei o telemóvel, confirmei a hora da primeira entrevista, creio que ainda foi antes do almoço e terá sido com uma referência da magistratura Espanhola, entretanto tornado advogado, Carlos Bueren. Um penalista e um enorme pensador das questões centrais do Direito Penal, como a culpa ou a teoria “da culpa da formação da personalidade” para fundamentar a especial punição dos especialmente perigosos com menos livre arbítrio por terem crescido num meio crimonógeno. Questões que então se discutiam ainda num plano de teoria do direito penal, em que a culpa era a pedra angular de toda uma catedral do pensamento “jurídico” humano. Daí à relatividade dos conceitos, como o acabara de experimentar durante a viagem que tinha feito, em que pensara que quando aterrasse o mundo poderia já ser outro. Terá sido assim que terminou a nossa conversa.
Seguiu-se um almoço num restaurante que existia em frente do escritório, na Calle Jorge Juan. Um restaurante Tailandês (?) com uma decoração entre o filme Casa Blanca e um jardim de Alhandra. Recordo o excesso de verde, até na luz e de não haver entre esse excesso a luz que procurava, a luz de um écran que me dissesse o que teria mais acontecido, desde a última vez que me tinham dito que não acontecera mais nada.
Seguiu-se outra conversa com o responsável do Departamento de Procesal, Jesus Penálver. Um advogado de mão cheia, com aquela humildade natural que os torna os mais temíveis, porque acrescentam à defesa do cliente o timbre do seu carácter humilde, sério e enormemente trabalhador. Departamento, gestão do conhecimento. Tecnologias. Era a minha praia preferida nas conversas sobre os escritórios. Sobre as enormes possibilidades dos grandes escritórios na utilização da sua própria experiência acumulada, num sucessivo refinamento dessa mesma experiência e bibliotecas e artigos e constante discussão interna. Tudo o que eu queria ouvir. Finalmente o momento. O momento mais aguardado. A “charla” com D. Rodrigo Uría.
Entrei e dou com um daqueles sorrisos que preenche todo o lugar, sobrepondo-se ao enquadramento. Um daqueles sorrisos que só tem quem já teve muito mundo humano. A um tempo caloroso e desarmante da tranquilidade melancólica de quem já não espera ser surpreendido.
Cumprimentamo-nos. Tinha os dois últimos botões dos três das mangas do casaco fora das respectivas casas. Detalhe dos fatos “à inglesa” feitos em alfaiate. Só me fez uma pergunta. Tirou os óculos olho-me nos olhos e disse: - “Y a ti que te gusta en la vida?”.
Uf. Podia estar à vontade, mas não à vontadinha (a gravata lembrava os limites). Respondi sem medos, como então se dizia no snooker do bairro alto, antes de uma bola difícil.
Acabámos a falar de arte e da dificuldade do conceito jurídico que supõe a “criação original do espírito humano” e como nem o original, nem - portanto - a criação (individual) pode ou não existir.
Pedi-lhe no fim e a propósito do lugar que dera à Mesa no meu enorme monólogo anterior, que me indicasse um restaurante. Disse-me:
- “Arce” vai ao Arce. Te va a gustar.
E lá fui. Primeiro para um Hotel NH, tomar um duche, mudar de roupa. Pedi para reservarem uma mesa no tal “Arce” e à hora marcada lá me receberam e sentaram numa mesa sólida com espaço. Toalhas brancas impecáveis.
Aparece o Chef do Acre.
Uma enorme pessoa, uma montanha afável e que interrompeu o que estava a fazer para perguntar: “Hambre o Apetito?”.Lembro-me da minha avó a dizer que “fome” era de três dias. Consigo responder só: “es mas apetite”. É então que o Chef atira com “Y a ti que te gusta en la vida”?.
Respondo. Nova torrente. Nova, tanto quanto possível para não me sentir a repetir a resposta que antes dera a D. Rodrigo. Com mais foco na mesa. Na maior arte de todas que deveria ser a mesa, porque é aquela que mais anos tem de continuado aperfeiçoamento (da culinária aos vinhos às próprias “regras”, etc.).
O Chef lá se conseguiu desembaraçar de mim e eu voltei ao branco da toalha, ao peso dos pratos, às cintilações dos talheres areados, dos copos terminados de lavar à mão, em água fria.
Como numca mais me trazem a carta, peço-a. O Chef desaparecera para os seus domínios. Vem o empregado à mesa e diz que não será necessário carta porque o Chef te vai preparar “la cena de tu vida." E foi, foi sem dúvida um dos melhores jantares da minha vida. Talvez um dos últimos jantares antes da vida ter mudado para sempre. Uma espécie de fim de ciclo. Para terminar o chef voltou à mesa e trouxe um café e a “bebida dos piratas”. Foi então que bebi Calvados pela primeira vez.
Cada vez que voltava a Madrid voltava ao Arce. Por essa razão, um dia, ao despedir-me do Chef lhe tenha dito: - “Ganhaste um cliente para a vida”. Ao que me respondeu “Un cliente no, un amigo. Un amigo desde que me contaste toda tu vida quando te perguntado si te gustava carne o pescado”. Protestei: "Que no! Me as perguntado que me gustava en la vida”. Respondeu-me: “Si. Eso es. Si te gustava carne o pescado. Asi se pergunta". Pensei que fazia todo o sentido. Em especial se perguntado depois de “Hambre o apetito?”.
Hoje, escrevo esta memória em Caminha, onde pinto, num lugar que fui construindo chamado Alminha. Hoje sei que é este o mundo em que aterrei naquele dia. Não é fácil, mas não deixa de ter aquela luz da incrível frase que Adelino Amaro da Costa citava de Mao Tze Tung: “Vai uma grande confusão em terra e no mar, mas a ocasião é excelente.” [frase que se encontra inscrita no chão em frente da actual sede do P.P., ao Largo do Caldas. Profética inscrição.
Caminha, 11 de Setembro de 2021
27.6.21
O RIO, A PONTE E O DIA DA AMIZADE GALAICO-MINHOTA
Vista da janela sobre o Rio Minho, desde a ante-câmara do Arquivo Diocesano de Tuy/Catedral de Tuy
A Pandemia trouxe para muitos a experiência do regresso das fronteiras. Em Caminha ficámos outra vez separados de Santa Tecla, ainda que o Monte Trega - como lhe chamam os nossos queridos vizinhos - continue a tutelar o nosso horizonte.
Um dos conselhos que repetidamente dou a quem nos visita é o de não deixarem de fazer a travessia do Rio Minho no Ferry Boat Santa Rita de Cássia e de subir ao cume do Monte Santa Tecla.
Só a subida da estrada do Monte, por si só, vale a viagem até àquele cume de onde se alcança uma das vistas mais perturbadoras (de beleza e intensidade) que conheço.
A presença humana antiquíssima emanada dos vários núcleos de Castros (construções circulares em pedra anteriores à era cristã e provavelmente contemporâneas do início desta), completa o insólito daquele lugar único: dominador, marítimo, solar, lunar, vegetal, granítico, enfim: o lugar do Atlântico.
Talvez por isso sinto que Caminha não está completa sem que exista a possibilidade de “dar um salto” a Santa Tecla e, com tempo, descer à Praia do Moinho, jantar no Perro Verde, ou - nos meses estivais - ir a um Furancho, ou - com ainda mais vagar – à Taberna O Lagar en Eiras, regressando então pela Ponte da Amizade, já que o Ferry geralmente apanha-se só para ir (até pela irregularidade dos horários, determinada pela impossibilidade da travessia durante a maré vaza, ou durante a hora do almoço, ou durante o período nocturno, porém, até essa “limitação” acaba por dar mais um encanto ao “programa” Ferry, ao obrigar-nos a estar a par do horário das marés).
Os nossos vizinhos, por sua vez, têm uma espécie de inveja bem-disposta e bem resolvida da beleza de Caminha, do bem cuidados que estão os centros das vilas da raia fluvial (Âncora, Caminha e Cerveira): os habitués das povoações galegas da outra margem, (Camposancos, A Guarda, Rosal, San Miguel de Tabagon) sabem também dos horários do Ferry e usam-no, quando podem, em especial quando o Ferry pode navegar nas manhãs de Quarta-Feira, dia de feira aqui.
O Ferry é o último sobrevivente de uma antiquíssima tradição de utilização do Rio Minho como eixo de comunicação, também entre as duas margens do Minho, ancestralmente unidas por um fundo comum (desde logo a língua, o Galaico-português), ainda que tantas vezes separadas por decreto.
Um dos períodos em que as margens estivaram reciprocamente interditas correspondeu à guerra que se seguiu à aclamação em Lisboa de D. João IV, como Rei de Portugal (guerra da Restauração para os portugueses, “da Aclamação” para os espanhóis, que durou vinte e oito anos)
Um dos primeiros decretos de D. João IV foi precisamente o de punir com pena de morte e confisco de bens aquele que tivesse negócio ou trato com os súbditos de Castela.
Como teriam reagido as populações de aqui a essa mudança radical, a essa limitação “contra a natura” do rio?
Terão alguns reagido fazendo jus à origem da expressão “contrabando”, que designa a atitude daqueles que estavam contra o Bando, sendo “Bando” a designação que se dava aos que em nome de El Rei percorriam os centros das populações apregoando as novas leis do reino. Alguns estariam contra aquela nova realidade que lhes ditava a proibição de qualquer contacto com o vizinho de rio, com o Colega de ofício, com o amigo de infância, com o amor de toda a vida.
Habituados a usar a rio para se comunicarem alguns dos habitantes de ambas as margens passaram a usar o rio “contra o Bando”.
Ora, durante essa guerra um dia houve em que ambas as margens se voltaram a unir unir, parando literalmente por um dia as pilhagens as mortes violentas e a destruição, para celebrar e festejar em conjunto aquilo que só pode ser explicado por uma antiquíssima amizade, entre os alto e os baixos minhotos (os do Alto Minho, para os de aqui e os do Baixo Miño para os de lá).
Esse dia aconteceu num Domingo, a 20 de Outubro de 1658, dia de São Francisco. Nesse Domingo a guerra parou e numa variação da música de Chico Buarque: o dia amanheceu em paz.
O sucedido ficou registado para a posteridade numa carta que o Reverendo Gonçalo da Rocha de Morais escreveu no ano de 1721 para a recém criada Academia Portuguesa de História que nessa ano fora fundada.
Nessa carta - cujo original se encontra guardado na sala dos manuscritos da Biblioteca Nacional, que fez o favor de a digitalizar e de nos enviar - aquele Pároco, nascido e criado em Caminha - narra o que presenciou naquele Domingo, 20 de Outubro de 1658.
Tinha então o futuro Padre 13 anos e coubera-lhe segurar o pequeno bota fumeiro de incenso, com que acompanhou aquela tão insólita quanto inesperada procissão. Sessenta anos depois do que aconteceu nesse memorável dia, o Padre Gonçalo de Rocha Morais, considerou dever relatar os factos vividos, como registo para memória futura.
Esse manuscrito, de muito difícil leitura, volvidos que estão precisamente três séculos desde que foi redigido (1721), foi decifrado e transcrito pelo historiador de Caminha Serra de Carvalho que, juntamente com a leitura de outro manuscrito do mesmo pároco, intitulado “Grandezas da Villa de Caminha & seu Termo”, reconstituiu aqueles acontecimentos num artigo publicado no nº. 6 da Revista Caminiana, Ano IV, Junho de 1982, pp. 11 a 30.
Tudo teria começado numa incursão nocturna dos soldados portugueses capitaneados por António de Azevedo (escrivão da Câmara de Caminha e Capitão dos terços de Seixas e Lanhelas).
Pelas três da madrugada, saídos de Lanhelas (provavelmente da ilha do Paço de Lanhelas - que é várias vezes mencionada nos relatos feitos pelos nossos vizinhos em episódios dessa guerra, como lugar em que se encontrariam várias embarcações utilizadas pelos portugueses para os ataques) desembarcaram na povoação que fica em frente a Seixas, San Miguel de Tabagon, onde terão incendiado diversas casas, palheiros e celeiros.
Reagiram os espanhóis atacando os barcos atacando os barcos em que se tinham feito transportar os poprtugueses, inutilizando uns e obrigando os restantes a fugir para evitar a mesma sorte.
Impedidos de regressar, entrincheiraram-se os soldados portugueses no adro da Igreja de San Miguel de Tabagon (cujo campanário se vê ainda hoje da nossa margem, desde o cais de Seixas). Aí entrincheirados procuraram esperar até ao momento em que os viessem resgatar no local previamente combinado, com o seu Capitão.
Durante os confrontos um dos nossos soldados terá arrombado a sacristia da Igreja, apoderando-se de um “vaso de prata onde estavam 2 partículas e 8 hóstias consagradas” .
Regressados a Lanhelas, o soldado que havia roubado o “Vaso Sagrado”, informa o seu Capitão do sucedido, procurando entregar-lhe o “espólio” de guerra.
Ao aperceber-se do que se tratava o Capitão “não quis sequer pôr-lhe as mãos”, pedindo de imediato que fosse chamado o Padre de Lanhelas, que era então o Reverendo João Alves Soutelo, de forma a que este se pronunciasse sobre o destino a dar àquele cálice da Eucaristia, um dos Santos Sacramentos da Santa Madre Igreja.
À chegada do Padre, ordenou o Capitão que todos os homens se descobrissem e que o autor do roubo, também de cabeça descoberta, se ajoelhasse e relatasse ao Padre de Lanhelas o que ocorrera.
Ouvida a confissão do soldado ajoelhado, tomou o Padre em suas mãos o Cálice, guardando-o na Igreja de São Martinho de Lanhelas, ficando a aguardar pelas instruções do Cabido da Sé de Braga, a quem de imediato mandara participar o sucedido.
Poucos dias após chegaram as esperadas instruções.
Determinou o Cabido de Braga que o Padre de Lanhelas deveria levar secretamente o cálice à Vila de Caminha para que desde aí fosse restituído à igreja de onde tinha sido retirado, levando-o com a maior pompa e solenidade possível, “obrigando todos os clérigos da vila e termo de Caminha, uma légoa ao redor, sob pena de excomunhão, a acompanhar o Divino Sacramento até à Galiza, tal como se costuma fazer na procissão de Corpus Christi.” Designou então para o efeito o próximo Domingo, dia de São Francisco, 20 de Outubro.
É assim que no dia 20 de Outubro comparecem em Caminha, não só os clérigos obrigados a tal, sob pena de excomunhão, como muitos dos nobres da região, assim como o próprio Conde de Castello Melhor e seu filho Luís Vasconcelos e Sousa , bem como o 1º Alcaide-Mór de Caminha, o já referido, Rodrigo Pereira de Sotto Mayor.
A estes juntam-se milhares de pessoas que acorrem nesse dia a Caminha.
Nos dois cais e na praia se acumulavam centenas de barcos que em breve seguiriam em procissão fluvial e com a recomendada solenidade e pompa de verdadeira procissão do Corpo de Cristo, até San Miguel de Tabagon, procurando assim devolver o que para ambas as margens era sagrado e - como tal - deveria estar acima das guerras, a ponto de todos terem aceite como natural aquela suspensão por um dia, dos confrontos sangrentos e devastadores (os quais continuariam logo no dia seguinte e por mais dez anos, a título de mera curiosidade, o Capitão da incursão em que se deu o roubo do Cálice Sagrado, terá falecido exactamente um ano após essa mesma incursão no Forte de São Pedro da Torre, onde ficou prisioneiro dos espanhóis).
O relato da procissão realizada naquele dia merece ser transcrito, tal a riqueza dos detalhes e o seu implícito significado de hino à amizade entre estes dois povos vizinhos, unidos há milhares de anos por um rio.
“No momento do embarque das sagradas partículas, um Batalhão de Infantaria da guarnição da vila, fez uma descarga de mosqueteiro, salvando das muralhas do novo revelam de São João, em frente à Matriz, a artilharia da praça com estrondoso fragor.
Seguindo rio acima, lá se dirigiu para Espanha o enorme cortejo fluvial da reparação ao sacrílego acto, tendo sido saudado já no meio do rio, pela artilharia da Fortaleza de Nossa Senhora da Ínsua. Chegados que foram à margem contrária, aguardavam a grande procissão fluvial, impecavelmente formados, os soldados de um batalhão de ordenanças do comando do sargento-mór de La Guardia, os quais fizeram, por sua vez, uma grande descarga de mosquetes.
Chegada a barca que levava o Santíssimo, ajoelharam todos de cabeças descobertas junto das águas do Rio Minho, onde se encontrava o abade da freguesia de San Miguel de Tabagón, Francisco Perez Pintelos, com capa de asperges, acompanhado por doze clérigos.
Aguardavam esta procissão, mas de vinte cruzes alçadas com pendões e pálio, a cujas varas seguravam seis nobres da Galiza, tudo ao redor de duas charolas, em que figuravam as imagens de Nosso Senhor e de São Miguel, padroeiro da igreja, assim como muito povo da freguesia.
Parando a nossa barca onde ia o Santíssimo Sacramento, chamou o abade Pintelos para que desembarcassem, o que logo executaram os nossos, fazendo sair o nosso Pálio que era sustentado por oito varas de prata seguras por outros tantos clérigos, sob o qual seguia o eleito Bispo de Angra com o Sagrado Vaso, desviando-se o Pálio dos espanhóis.
Seguiram à frente do nosso Pálio as cruzes dos espanhóis, encorporando-se as nossas depois deste.
Já todos desembarcados, rogou muito o Padre Perez Pintelos ao Bispo de Angra que quisesse levar o Santíssimo até à igreja, ficando ele junto do Pálio, seguindo diante dos sacerdotes portugueses os espanhóis cantando louvores Deus.
Chegados à Igreja de San Miguel de Tabagon, pediu o abade Pintelos a D. Pedro de Sousa (Bispo de Angra) e aos sacerdotes portugueses que cantassem a missa, o que fizeram com muita solenidade, estando galegos e portugueses todos juntos, com muita compostura, vendo-se nos olhos de todos muitas lágrimas de contentamento, pois havia dezoito anos que as lutas tinham começado entre Portugal e Castela.
Antes do embarque, nas margens do rio, divertiam-se e folgavam os novos com moças de sua idade, bailando e cantando ao som de gaita de foles e outros instrumentos, sendo para todos um dia de muito gosto e alegria, despedindo-se todos com muitas saudades.”
Assim termina o relato feito pelo Padre Gonçalo à Academia Portuguesa de História, o relato daquele dia que bem poderia ser o dia da amizade galaico-minhota, testemunhada e unida por um rio há milhares de anos.
Curiosamente, no precioso Arquivo Diocesano de Tuy (que ainda hoje funciona na Catedral de Tuy), até onde nos deslocámos para recolher mais informação sobre estes acontecimentos, agradecendo-se ao Sr. Padre D. Avelino Bouzon toda a ajuda que nos prestou - existe uma janela que poderia ilustrar esta história (ver foto). É uma enorme janela aberta em par sobre o Rio Minho que nos une!
28.3.21
O Caso da Princesa Arménia, peregrina no Século XI (Artigo publicado na Edição de 26/03/2021 do Jornal "O Caminhense")
Igreja de Vaspurakan (c. 921, mandada edificar por Gagik I, Arquitecto: Bispo Manuel, Ilha de Aghtamar, actual Turquia, antiga Arménia)
Mosteiro de São Salvador de Castro de Avelãs, data de construão desconhecida, lugar onde se teria dado o caso da Princesa Arménia e do Cavaleiro Mendo Alam
A protecção da condição de peregrino foi (e procura continuar a ser) uma das razões do actual crescente sucesso dos “Caminhos de Santiago”. Talvez por isso uma das histórias mais antigas sobre peregrinos seja justamente a da flagrante violação desse dever de protecção que desde os tempos mais remotos da Idade Média se procura assegurar
Neste ano Santo, de Jacobeo provavelmente não assistiremos ao regresso em massa dos peregrinos que a partir desta altura começávamos a ver a calcorrear troços do caminho de Santiago ou a aguardar a próxima travessia do Ferry. Entretanto o Papa Francisco, decidiu prorrogar por mais um ano “os benefícios rituais concedidos aos fieis que visitem a Basílica Catedral Metropolitana de Santiago durante o ano em que o dia da celebração memória litúrgica do Santo - 25 de Julho - se celebra a um Domingo, como acontece neste ano de 2021.
Na sua mensagem, o Papa Francisco convida ao caminho, sugerindo que nos desliguemos das coisas que nos pesam, tendo presente que na vida não caminhamos sozinhos e que devemos confiar nos nossos companheiros sem suspeitas e desconfianças.
O código de solidariedade que acompanha a peregrinação a Santiago encontra-se em muitos dos seus sinais, práticas e costumes - a título de exemplo a antiga prática de oferecer ao peregrino da comida que ele conseguisse retirar com a sua vieira, o dever de hospitalidade.
A protecção da condição de peregrino foi (e procura continuar a ser) uma das razões do actual crescente sucesso dos “Caminhos de Santiago”. Talvez por isso uma das histórias mais antigas sobre peregrinos seja justamente a da flagrante violação desse dever de protecção que desde os tempos mais remotos da Idade Média se procura assegurar. Refiro-me à história do “Conde Preso”, contando em romanças de tradição oral e que Almeida Garret, no seu Romanceiro, transcreveu da seguinte forma:
“Preso vai o conde, preso,
preso vai a bom recado;
Não vai preso por ladrão,
Nem por homem ter matado,
Mas por violar a donzela
Que vinha de San Tiago:
Não bastou dormir com ela,
Senão dá-la ao seu criado!
Acometeu-a na serra,
Mui longe do povoado:
Por morta ali a deixara
Sem mais dó, sem mais cuidado
Chorou três dias, três noites,
E mais teria chorado,
Senão que Deus sempre acode
A amparar o desgraçado.
Passou por ali um velho,
Um pobre velho soldado,
Suas barbas brancas de neve,
Em sua espada abordoado;
Vieiras traz na esclavina,
O chapéu delas cercado;
Chegou-se à pobre romeira
Com muito amor, muito agrado:
«Não chores mais, filha minha,
Filha, demais tens chorado;
Que esse vilão cavaleiro
Preso vai a bom recado.»
Levou consigo a donzela
O bom velho do soldado;
Vão à presença del-rei,
Onde o conde era levado:
– «Eu te requeiro, bom rei,
Pelo Apóstolo sagrado,
Que nesta sua romeira
O foro seja guardado.
Da lei divina é casar-se,
Da humana ser degolado:
Que não valem fidalguias
Onde Deus é o agravado.
Disse el-rei aos do conselho
Com semblante carregado:
– «Sem mais detença, este feito
Quero já desembargado.»
– «Visto está o feito, visto,
Julgado está, bem julgado:
Ou há-de casar com ela,
Ou se não... ser degolado.»
– «Pois que me praz» disse o rei:
O algoz que seja chamado:
Ou já casar, co a romeira
Ou aqui ser degolado.»
– «Venham algoz e cutelo.
Respondeu o acusado:
Mas antes morrer mil vezes
Que viver envergonhado»
Agora ouvireis o velho,
O bom velho do soldado:
– «Fazeis, bom rei, má justiça,
Mau feito tendes julgado:
Primeiro casar com ela,
E depois ser degolado.
Lava-se a honra com sangue,
Mas não se lava o pecado»
Palavras não eram ditas,
A espada tinha arrojado,
Despe insígnias de romeiro,
Despe as armas de soldado,
Nos trajos de um santo bispo
Aparece transformado;
Sua mitra de pedras finas,
De oiro puro o seu cajado:
Tomou a mão da romeira,
A mão do conde há tomado,
Por palavras de presente
Ali os tem desposado.
Choravam todos que o viam,
Chorava mais o culpado;
Chorando, pedia a morte
Por não ficar desonrado.
O santo bispo o absolvia
Contrito de seu pecado:
Dali o levam por morto
Que nem o algoz foi chamado,
Justiça de Deus foi nele,
Antes de uma hora é finado!
Mas acudiu àquela alma
O Apóstolo sagrado,
Que outro não era o romeiro,
O bispo nem o soldado.
No primeiro livro de linhagens de Portugal que se conhece, o chamado Livro Velho das Linhagens, que se supõe escrito no Século XIII, aparece uma referência a um “afilhamento forçado”, cometido por um Cavaleiro/Abade, Conde Mendo Alam (ou Alanis ou Alam), que no Mosteiro de São Salvador de Castro de Avelãs, teria hospedado uma princesa Arménia que iria de peregrinação a Santiago de Compostela.
Lê-se naquele livro, na parte dedicada à linhagem dos Braganções (uma das cinco principais linhagens existentes no Século anterior à fundação do reino) que “D. Mendo Alão de Bragança filhou por força uma filha do Rey da Arménia que hia em romaria a Santiago e fez nela D. Fernão Mendes, o Velho e D. Ouriana Mendes”. Noutro apontamento de linhagens, conhecido por Fragmento , encontra-se notícia do mesmo acontecimento: “D. Alam foi clérigo e filho-dalgo (fidalgo) , e filhou a filha d’El Rey da Arménia, quando ia em oração a Santiago e foi sa hospedada em São Salvador de Castro de Avelãs.” Já no Nobiliário do Conde de D. Pedro de Barcelos (Século XIV), a parte dedicada à linhagem dos Braganções (Título 38) começa justamente com o referido Mendo Alão, que dá como casado com Dona Francisca (sem mais), ambos pais de Fernão Mendes de Bragança, o Velho e de Ourana Mendes de Bragança. De referir - a talhe de foice - que neste mesmo Título 38 do Nobiliário do Conde de Barcelos surge a referência a Álvaro Pires de Castro, filho de Aldonça Lourenço (Valadares) e de Pedro de Castro (o da Guerra), ou seja: Álvaro Pires de Castro, o único irmão inteiro de Inês de Castro - e 1º Conde de Caminha - é referido naquele nobiliário, como sendo descendente directo daquele mesmo Mendo Alão e de sua mulher, o que faz de Inês de Castro, provável descendente directa da princesa Arménia, a ser verdade a história/lenda do “rapto da princesa da Arménia”.
Diversos estudos ou comentários foram-se sucedendo quanto à probabilidade de ser verdadeiro esse episódio “fundador” de uma linhagem que o tempo acabaria por revelar impar na nossa História (se percorrermos os vários descendentes desse episódio encontramos: Santo António de Lisboa, Inês de Castro, D. Lara de Castro - que casou com o Infante D. Duarte, irmão de D. João IV e que faleceu encarcerado na Torre de Milão - Duque de Caminha (1º e 2º Duques de Caminha), Fernando Pessoa…
Um desses estudos foi feito na Argentina por um genealogista e jornalista do jornal “La Nacion” de Buenos Aires, Narciso Binayan Carmona. O estudo, publicado em 1978, intitula-se “Uma princesa Arménia en Compostela en el siglo XI. Su Genealogia”.
A partir desse e de outros estudos anteriores, é proposta a identificação da princesa Arménia como sendo a Princesa Joana Ardruzni, que seria filha do Rei Senekerin do Reino de Vaspurakan , neta de Gagik I (também nomeado por Cacício I) e que terá sido um dos primeiros reinos cristãos. Aquele reino tinha a sua sede e paláciona ilha do Lago Van chamada Aghtamar. Aí mandou Cagik I edificar uma das mais notáveis igrejas da história do cristianismo: a igreja de Aghtamar, na ilha com o mesmo nome. A essa mesma família real Ardruzni (ou Ardzuni, ou Arzerúni, como também é designada), pertence um dos primeiros historiadores Arménios, Tomás Ardzuni e que no Século X deixou escrita a “História da Casa Arzerúnio”, traduzida para Francês no Século XIX por Marie-Félicité Brosset.
Ora, o curioso é que o próprio mosteiro de Castro de Avelãs acaba por ser mais semelhante (na parte que resta da sua construção primitiva) com a igreja de Aghtamar (cuja data de construção se situa entre 915 a 921) do que com qualquer outra igreja em Portugal, sendo aliás um dos únicos exemplares em Portugal da chamada arquitectura Romano-Mudejar. Ao contrário do que acontece com a Igreja de Aghtamar ainda hoje ignoramos a data em que terá sido edificado a Igreja de Castro de Avelãs, pese embora serem conhecidas referências à sua existência enquanto lugar de acolhimento de peregrinos, pelo menos desde o Século XII.
A ter ocorrido o episódio narrado no Livro Velho, no Fragmento e nas Romanças de tradição oral, o mesmo terá acontecido imediatamente após o fim do reino da Vaspurância, o que ocorreu a 1021, com a sua passagem para o Império Bizantino, na sequência de acordo de paz feito pelo seu último Rei, Serekin, pai da Princesa Arménia.
Considerando a devoção patente na Igreja de Aghtamar, a circunstância daquela dinastia ser a única cristã das várias casas reais arménias, faz sentido não só a ideia da peregrinação a Santiago de Compostela, como não deixa aliás de ser intrigante que o arquitecto da Igreja de Aghtamar surja identificado (no excelente site dedicado
àquela igreja – e vale mesmo a pena ver as imagens do seu interior) como sendo o “Monge, Bispo Manuel” (sem, porém, se esclarecer qual a sua origem, bem como a de um nome próprio como “Manuel” no reino de Vaspurakan).
A ter ocorrido essa peregrinação faz também sentido a hospedagem no Convento de Castro de Avelãs, assim como a sua ligação ao referido Conde Francês, que como outros cavaleiros integravam a Ordem Beneditina, vocacionada desde a sua fundação a servir os pobres, os peregrinos
O lugar de Castro de Avelãs estava no mapa dos principais itinerários romanos que ligavam Roma, França, Portugal e Espanha, constituindo paragem obrigatória da via XVII do Itinerário de Antonino nas peregrinações a Santiago de Compostela.
Mil anos depois a dúvida sobre este episódio subsiste. Entretanto, nos principais sites de genealogia, a princesa Ardzuni é confirmada como mulher de Mendo Alão e mãe de Fernão Mendes de Bragança, o Velho, e Ourana Mendes de Bragança. Se foi “filhada à força”, como diz o Livro Velho, poderá ser a outra parte do mistério que jamais se poderá desvendar, quanto à origem arménia, em breve o ADN o poderá demonstrar, já que é hoje possível saber onde estão os supostos descendentes desse mesmo episódio.
Uma coisa é certa: gravita em torno das mulheres que antecederam e sucederam àquela princesa, uma aura de mistério, beleza e fado que não deixa de surpreender.
Desde logo a própria origem do nome da Ilha Aghtamar. Segundo a lenda, o lago deveria o seu nome uma história de amor entre um Nobre Arménio e uma princesa, de nome Tâmara, que vivia na Ilha do Lago de Van (então Arménia, hoje Turquia). Todas as noites, em segredo, a princesa acendia uma fogueira numa das escarpas da ilha. O seu amado mergulhava então no lago e guiado por aquela luz, nadava o nobre Arménio ao encontro da Princesa Tâmara, que o aguardava, junto ao fogo. Numa noite, o Rei terá sido informado do segredo. Aguardou que a princesa fosse ao local onde acendia a sua fogueira, esperou que ela repetisse o fogo, aguardou que o mesmo pudesse ser visto do outro lado da margem da ilha, aguardou um pouco mais e dirigiu-se então à fogueira, apagando-a. Segundo a lenda uma tempestade abateu-se então sobre o lago negro de Van. Segundo a mesma lenda, desde então que nesse lago se ouve o grito do amante da princesa arménia Tâmara: “Ak Tâmar!”, “Ak Tâmar!” (aqui Tâmara, aqui Tâmara!), perdido no meio da tempestade, sem a luz da fogueira que lhe servia de orientação (em homenagem a esta história os Arménios fizeram uma estátua de uma mulher que acena com um braço erguido para o lago, estátua que se encontra no Lago de Sevan).
Seria a Princesa Tâmara do lago a que deu nome (Aktamar ou, actualmente, Aghtamar) avó da Princesa Joana Ardzuni?
Seria a Princesa Joana Ardzuni: 4ª avó de Santo António de Pádua (nascido em Lisboa em 1190, falecido em Pádua em 1231); 7ª avó da Castelhana Maria de Molina, rainha consorte, mulher de Sancho IV de Leão e Castela e Rainha Regente nos reinados de Fernando IV e do seu neto Afonso XI, ambos de Leão e Castela?; 8ª avó da Portuguesa Aldonça Lourenço Valadares por quem se enamorou, o Galego (de Monforte de Lemos) D. Pedro Fernandes de Castro, o da Guerra, bisneto de Sancho IV de Castela e com quem teve pelo menos dois filhos: Álvaro Pires de Castro (1º Conde de Arraiolos e de Viana da Foz do Lima, onde D. Fernando fez incluir o Condado de Caminha e 1º Condestável de Portugal)?; 9ª avó dos irmãos Inês de Castro e Álvaro Pires de Castro?; 10ª Avó de Beatriz Infanta de Portugal, filha de D. Pedro I e D. Inês de Castro?; 11ª Avó de Isabel de Portugal, dada como filha de Beatriz Infanta de Portugal - e de seu meio irmão, o futuro Rei D. Fernando - que casou com Afonso, Duque de Noroña e Gijon, avós do primeiro Marquês de Vila Real (casa do futuro Ducado de Caminha)?; 16ª Avó de Beatriz de Meneses, que casou com Pedro de Médicis 17ª Avó de Maria de Lara e Meneses, curiosamente denominada por “A Peregrina”, irmã do 1º Duque de Caminha e que em segredo casou com o Infante D. Duarte, irmão de D. João IV, o mesmo que mandou executar o seu sobrinho D. Miguel Luís de Noronha,e que viu o seu irmão partir de Vila Viçosa, por não se entender com a sua mulher, D. Luíza de Guzman, que lhe censurava o indiscreto interesse por uma das suas aias, provavelmente aquela com quem o mesmo Infante D. Duarte viria a casar em Vienna, no ano de 1635, antes de ser preso, tendo falecido em Milão, no ano de 1649?; Toda esta descendência consta hoje acessível e comprovável nos sítios de genealogia. Outras certamente poderão estabelecer-se ou revelar-se. Não deixa, porém, de ser notável como a partir de um episódio novelesco encontramos na vida dos seus descendentes, uma espécie de marca de tragédia amorosa que parece fazer parte do ADN dos Braganções e seus sucessores.
Como diz um amigo alentejano (numa variante do dito Italiano com o mesmo sentido): se não é verdade é bem caçado (si non e vero e ben trovato).
Gondarém, 16 de Março de 2021