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sábado, 7 de julho de 2012

Aquiles lamenta a morte de Pátroclo


«Porquê lágrimas?» disse a mãe. «Fui até Deus.
E Ele fez o que pediste.
Foi a tua voz que Ele ouviu, suplicando-lhe “Senhor,
Até que sintam a minha falta, deixai os Gregos arder.”»
E ouviu-o, entre os soluços dele, dizer:
«Verdade. Mostrai-Lhe a minha gratidão.
Não esqueças de guardar para ti uma pequena parte.
Eu matei Pátroclo.
Eu matei-o. Matei-o. Matei-o.»
«Eee… eee… eee… eee… eee…» um som aterrador.
Algo como eu ou tu nunca ouvimos.
«Ele era o melhor. Melhor do que eu. Mais corajoso do que eu.
Mais honrado do que eu. Valia duas vezes a minha vida.
Ele escutava. Ele aconselhava. Para todos tinha tempo.
Para homens e mulheres em quem eu nem reparei.
E eu matei-o. Matei-o.»
Aquele som aterrador. Aquelas pancadas.
«Não estava lá para o ajudar quando morreu.
Não estava lá para o ajudar quando morreu.
Aquiles não estava lá. Ele não estava lá
para ajudar o seu próximo, o seu coração, o seu companheiro amado
quando Heitor o matou.
Sei que Deus disse que eu morrerei
pouco depois de matar Heitor – se for capaz.
E, mãe, podes estar certa de que sou capaz.»

‘Why tears?’ his mother said. ‘I went to God.
And He has done all that you asked.
It was your voice He heard, begging Him: ‘Lord,
Until they feel my lack, let the Greeks burn.’”
And heard him, in between his sobs, say:
‘True. Give Him my thanks.
Be sure to keep a little for yourself.
I have killed Patroclus.
I have killed him. I have killed him. I have killed him.’
‘Eee … eee … eee … eee … eee…’ a terrifying noise.
The like of which, the likes of you and me, have never heard.
‘He was my best. Better than me. Braver than me.
More honorable than me. Worth twice my life.
He listened. He advised. Had time for everyone.
For men and women that I failed to see.
And I have killed him. I have killed him.’
That terrifying noise. Those slaps.
‘I was not there to help him when he died.
Achilles was not there. He was not there
To help his next, his heart, his dear companion
When Hector killed him.
I know that God has said that I shall die
Soon after killing Hector – if I can.
And, mother, yes, be certain that I can.’

Christopher Logue, Logue’s Homer: War Music, Faber & Faber, 2001

sábado, 22 de outubro de 2011

Frag. 31 de Safo

Parece-me igual aos deuses
esse homem que diante de ti
se senta e de perto escuta o teu
conversar doce

e o teu riso amável, isso faz
o coração tremer-me no peito
porque quando te vejo, ainda que por um instante, não
me resta um fio de voz,

não: a língua paralisa-se, corre
um fogo ténue sob a pele,
nos olhos nenhuma imagem, um latejar
nos ouvidos,

apodera-se de mim o suor e transpiro, um tremor
toma-me completamente, torno-me mais verde
do que erva, morro ou assim
me parece.

Mas tudo deve ser ousado, porque †mesmo um homem pobre†
<...>

Versão minha, a partir da edição crítica do texto grego fixado por Eva-Maria Voigt (Amsterdão, 1971). Este poema foi, por diversas vezes, traduzido entre nós, as duas versões que mais destacaria são as de Eugénio de Andrade (que não é feita a partir do original) e de Frederico Lourenço.
Não as confrontei quando fiz a minha tradução, mas sei que coincidiremos em algumas das soluções. Os maiores desvios que tive de fazer em relação ao grego encontram-se nos dois últimos versos da segunda estrofe e no primeiro verso da penúltima estrofe. Não me apetece explicar como cometo estas duas pequenas infidelidades, acredito que à custa delas preservei o melhor que pude o espírito do texto.
A solução que Lobel & Page apresentam para o segundo dos versos em que cometo uma pequena traição parece-me muito elegante, mas o bom senso diz-me que a solução de Voigt, a mesma que segue Campbell, é a que Safo mais provavelmente poderá ter escrito e, para efeitos de tradução, é isso que me importa sobretudo.

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Fragmento 22, princípio

...
...

se não, inverno
sem dor

...

[αἰ δ]ὲ μή, χείμων[
[ ].οισαναλγεα.[

Safo (versão e selecção minha) sobre edição de Eva-Maria Voigt (Amsterdão, 1971) e seguindo a reconstrução apresentada por David Campbell (Cambridge, Massachusetts, 1982), baseada nos frgs. 12, 15 do P. Oxy. 1231.

(Às vezes assim, uma réstia de sentido nas ruínas, ou um novo sentido criado a partir do que está em ruínas.)

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Fragmento 15B de Safo

...E que te encontre amarga, Cípris,
e que não se vanglorie nem diga,
Dorica, de como, segunda vez,
veio para um amor desejado...


Safo, tradução minha a partir da edição crítica de Eva-Maria Voigt (Amsterdão, 1971).

domingo, 25 de setembro de 2011

diz Electra

pois como um lobo de coração selvagem é o ódio
contra a nossa mãe, e não pode ser adulado.

Ésquilo, Coéforas, 421-2

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

a proa do coração

<Coro>

(cantando e dançando)

Possa eu entoar um †pungente†

grito de júbilo pelo homem

derrubado e pela mulher

que morre! Porquê esconder

o que, apesar de tudo, paira 390

diante da minha mente, onde da proa

do meu coração sopra furiosamente uma cólera

aguda, um ódio ressentido?


Ésquilo, Coéforas, vv. 386-393

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

Catulo (os poemas da Ítaca 1)


Dando continuidade à campanha catuliana, brilhantemente lançada aqui, e que culminará com a publicação dos Carmina na Cotovia (está para breve, está para breve), recuperamos a tradução de seis poemas inicialmente publicada na Ítaca 1 (Março de 2010).

Aquiles segundo Logue (ou uma coisa do cara***)

Levam-lhes os púcaros.

«Pai amigo?»

Rei Nestor (pela sua vida):

«Já sabes porque estamos aqui.
Espera-nos a morte.
A multidão escolheu a escravatura.
O Micenas* admitiu que se lixou ao lixar-te.
Em recompensa oferece-te
O maior benefício de que se tem notícia.
Aceita-o e luta. De outro modo, Heitor há-de deitar fogo às naus
E depois matar-nos aleatoriamente.
És capaz de te lembrar do que disse o teu Pai
No dia em que Ájax e eu fomos perguntar
Se podias vir connosco a Tróia?
Que devias permanecer entre as lâminas onde a honra desponta.
E que, em segundo lugar, devias dar asas à raiva.
Espírito e beleza e força perfizeram em ti
Um poder tão extraordinário
Um Céu deixado vago podia oferecer-te o seu trono.
Pensa no que dirão os que vierem depois de nós.
Salva-nos do deus de Heitor, de Heitor e da força de Heitor.
Ponho-me de joelhos diante de ti, Aquiles.»

« ...Por favor... deixa-te de ameaços.
É verdade, já não falamos há uns tempos.»

Uma pausa.

«Tenho de admitir que tens coragem, pai amigo,
Em tratar-me como a um palerma.
Com Heitor lidarei como me apetecer.
Tu e os teus compatriotas hão-de morrer
Por causa de como o vosso rei me tratou.

«Durante cinco anos eu combati pelo vosso Rei
O meu registo: dez cidades costeiras e dez cidades do interior
Incendiadas até às fundações. Os seus homens, massacrados.
O seu gado e as suas mulheres foram-lhe dados.
Entre o que restou, Briseida a Bela, a minha ela rédea.
Não que eu o tivesse privado da cortesia dela.
Ela juntou-se à minha estirpe em reconhecimento da
Minha força, da minha coragem, da minha superioridade.
Cortesia vossa, meus senhores.
Não lutarei por ele.
Ele quer personalizar a minha perda.
Briseida tirada a Aquiles – prática standard:
Helena a Menelau – guerra.
Senhor Ocupado Ocupado, a construir a sua paliçada, a montar a minha ela,
A mulher que eu podia ter escolhido para administrar a minha casa,
Elevando-a ao estatuto de minha mulher.
Se o odeio? Sim, eu odeio-o. Odeio-o.
E se ele devia ter medo de mim? Devia.
Quero destruí-lo. Quero que ele sinta dor.
No corpo e entre as orelhas.
Tenho de admitir,
Algumas das coisas que disseste são verdade.
Mas vê o que ele me fez a mim. A mim!
O rei de quem a reidade dele depende!
Não lutarei por ele.
Escutando os vossos passos, pensei: até que enfim,
Os meus amigos vieram visitar-me.
Levaram o seu tempo, verdade –
Depois de ele ter levado a minha ela nenhum de vocês apareceu –
Agora, no entanto – evidentemente porque estão em sarilhos,
Sarilhos a sério – chegam como amigos,
E por vontade própria.
Mas não viestes aqui como amigos.
E não viestes por vontade própria.
Viestes porque o vosso rei vos disse para vir.
Viestes porque eu sou a sua última saída.
E, acidentalmente, a vossa última saída.

Finalmente ele oferece-me cenas.
E todos vós me oferecem os conselhos dele:
“Tem calma...
Tem cuidado com a língua...
Pensa no que o mundo vai dizer...”
Nenhuma menção ao modo como o vosso rei me tratou.
Nenhum sinal de amor por mim por trás das vossas lágrimas.
Não lutarei por ele.
Sou capaz de me lembrar mesmo muito bem
Do dia em que vocês, o par de grandes senhores, visitaram a casa do meu pai,
De como corri para vos acolher, de como tomei as vossas mãos –
Os homens mais grandiosos que alguma vez tinha visto:
Ájax, o meu primo combatente, forte, corajoso, sem medo de morrer;
Nestor, o rei da arenosa Pilos, a espada da sabedoria,
E naquele instante, quando todos já tinham comido e bebido à saciedade
E estava confirmado de que eu devia vir para Tróia,
Então o meu pai disse que sua senhoria sabe
Não só quando lutar, e quando ter tento na língua,
Mas também a diferença entre uma criança encolerizada
E senhores unidos pela honra.
Não lutarei por ele.
Há um rei para ser mantido. Vós sois os senhores que lhe pertencem.
Os meus poderes de combate provam a minha inferioridade.
O que quer que ele, por intermédio vosso, possa conceder
Eu tenho de o receber como um favor, não como um direito,
Voltai para ele com olhares de desalento, um tom suplicante,
Reconhecei as minhas transgressões – eu não
Aplaudi os dedos gordurosos dele na carne dócil da minha ela.
A minha mãe diz que eu tenho escolha:
Viver feliz como rei da terrinha pela aprovação;
Ou dar ao mundo um rumor duradouro do meu nome,
E morrer.
Acordem amanhã cedinho
Para me verem sacrificar ao Senhor Poseídon e levantar âncora.
Oh, sim, as oferendas dele:
“O maior benefício de que se tem notícia.”
Se ele pusesse o Céu na minha mão eu não o queria.
As suas oferendas exaltam-no a ele.
Também à sua criança.
Eu não quero deitar fora a rapariga, como se fosse lixo.
Ela é como eu. Má sorte ter amigos pobres.
Má sorte ter sua realeza como vossa majestade.
O meu pai há-de escolher a minha esposa.
A cada primavera uma dúzia dos reis locais visita-nos
E desfila as suas filhas nuas em redor do nosso pátio.
Alguma rapariga decente lá da terra. O valor do meu pai
É toda a riqueza que exigiremos.
Vós, gregos, não havereis de conquistar Tróia.
Estais desintegrados como força de combate.
Tróia é o vosso cemitério. Culpai o vosso Rei.
O homem que vós dizeis que fez tudo o que pôde.
O homem que admitiu que estava errado.
Mas ele não fez tudo o que podia.
E ele não admitiu que estava errado.
Ou não a mim.
Eu quero-o aqui, ao vosso Rei.
As suas armas tombadas de cada lado, os seus ombros para trás,
A anunciar, alto e a bom som, que errou ao levar a minha ela.
Pedindo desculpa por esse erro, a mim, o filho de Peleu.
Perante os meus seguidores, convosco, Pilos e Salamina**,
Creta. Esparta. Tirinte. Argos. Cálidon. As Ilhas, aqui,
em sentido, de cada lado dele.
Esta é a minha oferta. Aceitem-na ou morram.

‘Nestor pode passar cá a noite.
Tu, Ájax, querido primo, vai dizer ao teu rei o que eu disse.
De preferência, em frente de toda a gente.’»
Que respondeu,
Enquanto o meu Aquiles pegava na guitarra:

«Senhor, não era tão esmurrado com palavras
Desde que pela primeira vez chamei ao meu pai papá.»

Logue's Homer, Cold Calls: War Music Continued, Faber & Faber, 2005 (tradução minha).

* Agamémnon, rei de Micenas, aqui designado pelo seu topónimo.
**Pilos designa Nestor, terra de que o ancião era rei, Salamina designa Ájax - trata-se evidentemente de Ájax filho de Telamon, Creta Idomeneu, Esparta Menelau, Argos será uma alusão a Diomedes, os restantes topónimos designam outros tantos heróis.

quinta-feira, 21 de julho de 2011

27.

Os admiradores de Tolstói os escravos afro-americanos
sabiam-no: podias ser morto
por ensinar alguém a ler e escrever
eu costumava pensar que a pior aflição
era ser-se proibido de usar lápis e papel
bom, Ding Ling recitava poemas a paredes de prisão
durante os anos da Revolução Cultural
e, de verdade, a magia dos caracteres escritos
eleva-se e diminui encolhe-se ao mínimo estica-se ao máximo
dependendo de onde estás
e do que está na tua mão
e de quem lê e porquê
penso agora que a pior aflição
não é não saber quem és ou onde estiveste
aprendi isto em parte
com escritores Ler e escrever
não são sagrados ainda assim tem-se matado gente
como se fossem

Adrienne Rich, Your Native Land, Your Life, Norton, 1993.

Versão minha.

terça-feira, 19 de julho de 2011

16.

É verdade, nestes últimos anos tenho vivido
vendo-me a mim mesma no acto de perder - a arte de perder,
chamava-lhe Elizabeth Bishop, mas para mim não é arte
apenas exercícios mal resolvidos
actos do coração forçados a questionar
as suas presunções neste mundo os seus entusiasmos simples
actos do corpo forçados a medir
todos os instintos contra a dor
actos de separação tentando abdicar
sem desistir sim Elizabeth aqui uma cidade
ali uma vila uma irmã, companheiro, gato
e mais nenhuma arte nisto apenas raiva

Adrienne Rich, Your Native Land, Your Life, Norton, 1993.

Versão minha.

segunda-feira, 18 de julho de 2011

XVII

Havia também o outro Judeu. Aquele que mais temias, o do shtetl, de Brooklyn, do lado errado da história, com o sotaque errado, da classe social errada. Aquele por que te deixei. Aquele que ao mesmo tempo era parecido contigo e não era parecido contigo, que ao longo dos anos te foi revelando perante mim, e que não se podia revelar a si próprio. Aquele que disse, como se tivesse memorizado a fórmula, Agora nada já nada resta, exceptuando a comida e o humor. Aquele que, como tu, acabou isolado, que se tentara mover no mundo flutuante dos assimilados, que sabem e negam que serão sempre estrangeiros. Que num carro alugado conduziu até Vermont e deu um tiro a si próprio. Durante tantos anos tinha pensado que tu e ele eram opostos. Por essa altura precisava da vossa dissemelhança; agora é a vossa semelhança que me olha no rosto fixamente. Existo algo mais para lá da comida, do humor, uma mudança na frase, um gesto das mãos: existe algo mais.

Adrienne Rich, Your Native Land, Your Life, Norton, 1993.

Versão minha.

domingo, 17 de julho de 2011

De "Tempo Norte-Americano"

I

Quando os meus sonhos deram sinais
de se estarem a tornar
politicamente correctos
nada de imagens insubordinadas
escapando para lá de fronteiras
quando ao andar na rua encontrei os meus
temas cortados à minha medida
soube o que não chegaria a dizer
por medo de que disso fizessem uso inimigos
então comecei a pensar

II

Tudo o que escrevemos
será usado contra nós
ou contra aqueles que amamos.
São estas as condições
aceita-as ou desiste.
A poesia nunca teve hipótese
de prevalecer fora da história.
Uma linha dactilografada há vinte anos atrás
pode ser ateada numa parede a tinta de spray
para glorificar a arte como distanciamento
ou para torturar aqueles que
não amaram mas também não
quiseram matar

Nós progredimos mas as nossas palavras permanecem
tornam-se responsáveis
por mais do que aquilo que esperávamos

e isto é privilégio verbal

III

Tenta sentar-te a uma máquina de escrever
numa noite tranquila de verão
numa mesa junto a uma janela
na província, tenta fingir que
o teu tempo não existe
que tu és tu simplesmente
que a imagem se limita simplesmente a vaguear
como uma imensa mariposa, sem intenção
tenta dizer a ti próprio
que não és responsável
pela vida da tua tribo
o fôlego do teu planeta

IV

O que pensas não importa.
Prova-se que as palavras são responsáveis
tudo o que podes fazer é escolhê-las
ou escolher
ficar calado. Ou, nunca tiveste escolha,
e é por isso que as palavras que prevalecem
são responsáveis

e isto é privilégio verbal

Adrienne Rich, Your Native Land, Your Life, Norton, 1993.

Versão minha.

sexta-feira, 15 de julho de 2011

II

Recuso tornar-me alguém que busca curas.
Tudo o que alguma vez
me ajudou emergiu do que já
estava em mim depositado. Velhas coisas, difusas, inominadas, permaneceram fortes
através do meu coração.
É daqui
que a minha força vem, mesmo quando a minha força me falha
mesmo quando contra mim se vira
como um amo violento.

Adrienne Rich, Your Native Land, Your Life, Norton, 1993.

Versão minha.

segunda-feira, 27 de junho de 2011

Este poema é é (escreve-o!)

Uma arte

A arte de perder não é difícil de dominar;
tantas coisas parecem repletas da intenção
de serem perdidas que a sua perda não é desastre.

Perde alguma coisa a cada dia. Aceita a agitação
de chaves de casa perdidas, a hora mal gasta.
A arte de perder não é árdua de dominar.

Pratica em seguida perder mais longe, perder mais rápido;
lugares, e nomes, e o sítio para onde tencionavas
viajar. Nada disto será desastre.

Perdi o relógio de minha mãe. E olha! a última, ou
quase última, de três moradas amadas que me pertenceram perdeu-se.
A arte de perder não é árdua de dominar.

Perdi duas cidades, cidades amáveis. E, mais vasto,
alguns países que foram meus, dois rios, um continente.
Sinto-lhes a falta. Mas não foi um desastre.

- Mesmo ao perder-te (a voz que graceja, um gesto
que amo) não devo mentir. É evidente
que a arte de perder não é muito árdua de dominar
ainda que possa parecer um (escreve-o!) um desastre.

Elizabeth Bishop, Geography III, 1976. Tradução minha.

quinta-feira, 23 de junho de 2011

Coplas

i
"Ninguém pode perder o que não possui"
Que se lixe essa gema abrasiva.
Eu posso perder o que quero. Eu quero-te.

ii

Minha querida, hei-de lamentar-te
para o resto da vida com ligeira
variação de cadência, minha querida.

iii

Meio-escarnecendo a meia-verdade, noto
«A brevidade feroz do amor sensual»
Sinto-me abalado, até por isso.

iv

É para ele que escrevo, para ela
que falo em contido silêncio. Entre eles
Serão tocados pela paixão que não lhes é familiar?


Geoffrey Hill, Selected Poems, Penguin Books, 2006. Versão Minha

quarta-feira, 22 de junho de 2011

4.

Deixa a mente ser mais preciosa do que a alma; não
Perdurará. A alma compreende o seu preço, implora a própria paz,
Resolve-se em lágrimas e suor, é possivelmente
Indestructível. Posso acreditar nisso.
Ainda que desprezasse o simples instinto de fé,
O expediente da concórdia, se me atrevesse,
Aquilo a que não me atrevo é um desperdício de história
ou governo vazio. Averróis, velho pagão,
Se ao menos tivesses acertado, se por si só Intelecto
Fosse lei absoluta, graça que bastasse,
As nossas vidas podiam ser um mito de cativeiro
Em que podíamos entrar: despovoada região
De neve sempre de novo caída, palácio brilhando
De perpétuo silêncio como de tochas.

Geoffrey Hill, Selected Poems, Penguin Books, 2006. Versão minha.

domingo, 17 de abril de 2011

Monograma


















Hei-de lamentar-te sempre – ouves-me – a ti
apenas, no Paraíso

O destino, como agulheiro, em outra direcção
há-de virar as linhas das palmas das mãos
O tempo há-de conceder um momento

De que outro modo, desde que os homens amaram

O céu simularia nossas entranhas
A inocência golpearia o mundo
Com a foice do negrume da morte

II

Lamento o sol e lamento o tempo que vem
Sem nós e canto todos os que passaram
Se isto é verdade

Os corpos falados e os barcos que docemente deslizam
As guitarras que tremeluzem debaixo de água
O «acredita em mim» e o «não»
Um no ar e outro em música
Ambos pequenos animais, as nossas mãos
Que tentaram tocar-se em segredo
Os vasos de flor na sombra dos portões abertos do jardim
E as partes do mar que se uniram
Para lá dos muros de pedra, para lá das vedações
A anémona que permaneceu na tua mão
E a sua púrpura por três vezes por três dias tremeu acima
da queda de água

Se isto é verdade canto
A trave de madeira a imaginada tapeçaria quadrada
Na parede, a sereia de soltos cabelos
O gato que nos estudou na penumbra
A criança com incenso e com vermelha cruz
A hora em que anoitece sobre as rochas inacessíveis
Lamento a veste que me toca e o mundo que me alcançou

III

Falo também de mim e de ti
Porque te amo e por amor sei
Entrar como a lua cheia
De toda a parte, em torno do teu pequeno pé nos lençóis inacabáveis
Como colher o jasmim – e eu tenho o poder
De fazer soprar o vento e levar-te adormecida
Através das passagens da lua e das secretas colunas do mar
Hipnotizada árvore de prateadas aranhas
Ouviram falar de ti as ondas
Como acaricias, como beijas
Em redor do pescoço na enseada
Como sussurras o «quê» e o «eh»
Sempre nós a luz e a sombra
Sempre tu a pequena estrela e sempre eu a escura nau
Sempre tu o porto e sempre eu a lanterna à direita
O cais molhado e o brilho incidindo nos remos
Alto na casa de muitas vinhas
As rosas amarradas e a água que refresca
Sempre tu a estátua de pedra e sempre eu a sombra que cresce
Tu a persiana pendente eu o vento que a abre
Porque te amo e te amo
Sempre tu a moeda e eu a devoção que lhe dá valor

Tanta a noite, tanto o clamor do vento
Tanta a neblina do ar, tanta a quietude
Em torno do mar déspota
Arca celeste plena de estrelas
Tanta a tua respiração mínima

Que já nada mais me resta
Entre estas quatro paredes, o tecto, o chão,
Excepto chamar-te e acertar-me a minha própria voz
Sentir o teu odor e os homens temerem
Porque os homens temem
o que não foi tentado e o estrangeiro e é cedo, ouves-me
É ainda cedo neste mundo meu amor

Para falar de ti e de mim

IV

É ainda cedo neste mundo, ouves-me
Ainda não amansaram as feras, ouves-me
O meu sangue desperdiçado e aguçado, ouves-me, faca
Como carneiro correndo através dos céus
Quebrando o rasto de cometas
Sou eu, ouves-me
Amo-te, ouves-me
Abraço-te e levo-te e visto-te
O branco vestido de Ofélia,
Onde me abandonas e onde vais e quem, ouves-me,

Segura a tua mão acima da destruição

Das chamas enormes e da lava vulcânica
E virá o dia, ouves-me,
Em que nos hão-de sepultar, e um milhão de anos mais tarde
Quando formos fósseis reluzentes, ouves-me
Para serem polidos pela indiferença, ouves-me,
Dos homens
E quando ela nos lançar em milhares de pedaços
Nas águas um por um, ouves-me
Eu conto meus amargos seixos, ouves-me
E o tempo é uma grande igreja, ouves-me
Onde outrora as imagens
Dos santos
Choraram verdadeiramente, ouves-me
Os sinos dobram alto, ouves-me
Atravesso um vau profundo
Anjos esperam com velas e fúnebres salmos
Eu não vou a lugar nenhum, ouves-me
Um de nós apenas ou ambos, ouves-me
Esta flor da tempestade e, ouves-me
Do amor
De uma vez por todas a apanharemos
E não tornará a ser flor em parte nenhuma, ouves-me
Noutra terra, noutra estrela, ouves-me
Não existe chão, não existe ar
Que tenhamos tocado, o mesmo, ouves-me

E nunca nenhum jardineiro foi tão afortunado

Que tivesse gerado de semelhante inverno e de semelhantes ventos de norte, ouves-me
Semelhante flor, só nós, ouves-me,
No meio do mar,
Apenas pelo desejo do amor, ouves-me
Erigimos uma ilha inteira, ouves-me
Com grutas e cabos e fragas em flor
Ouve, ouve
Aquele que fala no meio das águas e aquele que grita – ouves?
Sou eu que chamo e sou eu que grito, ouves-me
Amo-te, amo-te, ouves-me

V

De ti falei em tempos antigos
Com sábias amas e rebeldes veteranos
De onde vem a tua tristeza feroz
O brilho da água que no teu rosto cintila
E porque, diz-se, tenho de vir até ti
Eu que não quero o amor mas quero o vento
Mas quero do descoberto e vertical mar o galope

E ainda ninguém tinha ouvido falar de ti
Nem o ditamno nem o cogumelo selvagem
Nas terras altas de Creta, ninguém
Só deus concede e conduz minha mão para ti

Aqui, ali, cuidadosamente a toda a volta
Da margem do rosto, da enseada, do cabelo
Na colina que ondula para a esquerda

O teu corpo na atitude de um solitário pinheiro
Olhos de orgulho e diáfana
Profundidade, na casa com uma velha cristaleira
De amarelas rendas e madeira de cipreste
Sozinho espero para ver onde primeiro surgirás
Ao alto na varanda ou sob as pedras do jardim
Com o cavalo do santo e o ovo da páscoa

Como um mural destruído
Grande como te quis a pequena vida
Para conter numa pequena vela o efervescente brilho vulcânico

Assim nunca ninguém terá visto ou ouvido
Nada acerca de ti na devastação de casas delapidadas
Nem o antepassado sepultado no extremo do jardim
De ti, nem a velha com todas as suas ervas

De ti, só eu e talvez a música
Que em mim se esconde mas que regressará mais forte
De ti, o não crescido peito de doze anos
Virado para o futuro e para a vermelha cratera
De ti, um odor acre encontra o corpo
E como um alfinete perfura a memória
E aqui o solo, aqui as pombas, aqui a nossa terra antiga


VI

Vi muitas coisas e à minha mente a terra parece mais bela
Mais bela na respiração de ouro
A aguçada pedra, mais bela
O escuro azul dos istmos e os telhados que pontuam as ondas
Mais belos os raios onde passas sem pisar
Invicta como a deusa de Samotrácia sobre os cumes do mar

Assim eu te vi e isso basta
Porque tudo e o tempo serão exonerados
No rasto da tua passagem
A minha alma como golfinho verde prossegue

E brinca com o branco e com o azul

Vitória, vitória onde fui vencido
Antes do amor e próximos
No hibisco, na flor-de-maracujá
Vai, vai e deixa-me perder-me

Só, e deixa o sol ser como recém-nascido que seguras
Só, e deixa-me ser como pátria que se lamenta
Como a palavra que enviei para por ti segurar a folha do loureiro
Só o vento forte e só o perfeito
Seixo sob a pálpebra da profunda penumbra
O pescador que pescou e de novo lançou ao tempo o Paraíso

VII

No Paraíso assinalei uma ilha
Semelhante a ti e uma casa junto ao mar
Com uma cama larga e uma porta estreita
À profundidade lancei um eco
Para que a cada manhã me veja quando acordo

Em parte para te ver passar através das águas
Em parte para te chorar no Paraíso

Odysséas Elytis

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A versão que aqui apresento é minha, feita a partir do original grego. Importa avisar que o meu conhecimento do grego moderno é ainda incipiente, e que é muito provável que em alguns pontos existam imprecisões ou mesmo erros. Onde a minha dúvida persistiu, comparei a minha versão com traduções inglesas. O original grego pode ser lido aqui. Monograma foi originalmente publicado em 1972.

quarta-feira, 6 de abril de 2011

Ésquilo estava errado

Estr. 2

Certa vez um homem criou

___em sua casa um pequeno leão privado do leite materno

______[mas ainda desejoso de mamar,

no prelúdio da sua vida 720

era dócil, amigo dos pequenos,

e causa de alegria para os anciãos.

Muitas vezes o segurava nos braços

como a um filho recém-nascido

e ele, de olhos brilhando postos na mão, abanava a cauda

______[com a necessidade do ventre. 725


Ant. 2

Com o passar do tempo mostrou

___a natureza herdada de seus pais: em agradecimento aos que o criaram,

juntamente com uma horrenda matança de gado, 730

preparou, sem ser convidado, um festim,

a casa ficou manchada de sangue,

uma dor inelutável para os seus habitantes,

imensa desgraça de muitas mortes –

por desejo de um deus um sacerdote da Ruína foi criado na casa. 735


Ésquilo, Agamémnon, 717-736 (a tradução é minha a partir do texto grego fixado por M.L. West)


segunda-feira, 21 de março de 2011

Pequena prece

Para Yiannis Ritsos

Pedi-te que partilhasses
pão
e sal comigo.
Assim aos domingos jamais tornaria a temer
o salgado.

Tu porém cantaste na tua solidão
obscuras incompreensíveis
notas.

Apenas te ouvia dizer
o corpo,
o corpo
(da alma casa).

(mais ou menos) Marigo Alexopoulou, New European Poets, Wayne Miller, Kevin Pruffer (eds.), Graywolf Press, 2008

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Dois poemas da Antologia Palatina

1. de Estratão de Sardes*

«Comecemos com Zeus», dizia Arato;
mas, Musas, hoje não vos aborreço.
Se amo rapazes e com eles me meto,
as Musas do Hélicon, que têm com isso?

2. de  Estratão de Sardes

Nestas minhas tabuinhas não busques o piedoso Príamo,
nem os sofrimentos de Medeia e Níobe,
nem Ítis nos seus aposentos, nem nas pétalas os rouxinóis,
sobre tudo isso tagarelavam em abundância os meus predecessores;
Mas o aprazível Amor de alegres Graças rodeado
e Baco rumoroso? Esses aos sisudos nunca se mostram.

*O texto grego que serviu de base a esta tradução é o que foi fixado por R. Aubreton, F. Buffière e J. Irigoin no Tomo XI (Livro XII) da edição da Anthologie Grecque preparada para as Belles Lettres. Os poemas são os da Musa Paedika. A edição de que me servi  é a de 2002. Sobre Estratão de Sardes cf. wikipedia.

Texto grego de 1
Ἐκ Διὸς αρχώμεστα, καϑὼς εἴρηκεν Ἄρατος·
ὑμῖν δ᾿, ὦ Μοῦσαι, σήμερον οὐκ ἐνοχλῶ.
εἰ γὰρ εγὼ παῖδὰς τε ϕιλῶ καὶ παισὶν ὁμιλῶ,
τοῦτο τί πρὸς Μούσας τὰς Ἑλικωνιάδας;

Texto grego de 2

Μὴ ζήτει δέλτοισιν ἐμαῖς Πρίαμον παρὰ βωμοῖς,
μηδὲ τὰ Μηδείης πένϑεα καὶ Νιόβης,
μηδ᾿ Ἴτυν ἐν ϑαλάμοις καὶ ἀηδόνας ἐν πετάλοισιν·
ταῦτα γὰρ οἱ πρότεροι πάντα χύδην ἔγραϕον·
ἀλλ᾿ ἱλαραῖς Χαρίτεσσι μεμιγμένον ἡδὺν  Ἔρωτα
καὶ Βρόμιον τούτοις δ' ὀϕρύες οὐκ ἔπρεπον