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quinta-feira, 31 de agosto de 2017

Review: Please Like Me - Temporada 1

Por Joaquim Silva.

"You know that I'm greedy for love."


A adolescência é difícil. A puberdade manifesta-se, as hormonas tomam conta do físico e, sem que nada possa ser feito, alteram para sempre o psicológico. Sim, o plano de existência superior, metafísico, transcendente, aquele que atribuímos à personalidade, à cognição, ao zodíaco, enfim, a tudo menos às hormonas, é inquestionavelmente moldado (também) por elas. Mas e depois, quando se entra na idade adulta? Temos tudo resolvido ou a vida cada vez se complica mais?

Please Like Me aborda a vida de Josh, um jovem de 20 anos, que, pelo que se percebe, não estuda nem trabalha, mantém uma relação com Claire, é o melhor amigo de Tom e não gosta da namorada deste, Niamh. Abruptamente, Claire tem a epifania que Josh é gay, acaba com ele e destrói o seu pequeno mundo de tudo simples.

Ancorada numa formula simples, mas (extremamente) eficaz de comédia moderna, sem faixas de riso e sem situações inconcebíveis ao comum mortal, Please Like Me explora a redescoberta de Josh da sua vida, do ambiente que o rodeia, dos seus sentimentos em relação ao divórcio dos pais e tentativas de suícidio da mãe, e mais que tudo, das suas próprias necessidades de aceitação. É uma insuportavelmente leve e adequada metáfora da condição humana mais elementar: a vida em grupo. Josh revela-se um jovem emocionalmente fragilizado, infantil por vezes, e ingénuo ao efeito que a sua frieza e distância criam nos que o rodeiam - insegurança e exclusão. Assim, na sua busca pelo seu lugar, Josh acaba por forçar todos a repensarem os seus, desde Tom (que não consegue terminar com Niamh), a Geoffrey (o "namorado" demasiado bem resolvido de Josh), até Rose e Adam.

Apesar da sua orientação cómica, Please Like Me também lida com temas sensiveis, como a depressão nos mais velhos, a redefinição da orientação sexual e o processo de coming out - uma das cenas mais despretensiosas é a de Geoffrey a verbalizar que Josh é gay para a sua família, algo que o próprio ainda não havia feito.

Assim, Please Like Me é mais uma série que lida com a descoberta do eu - em todas as vertentes - e da sua influência no ambiente que o rodeia. A expressão de liberdade em Please Like Me é audivelmente muda, pois os limites de cada um são a cada momento manobrados para encaixar o outro, sem que seja necessário denotá-lo - assume-se esse fenómeno como natural.


ABC 2 / Netflix

Temporada 1

quinta-feira, 29 de junho de 2017

Review: Rupaul's Drag Race - Temporada 9

Por Joaquim Silva.

"When Love Takes Over, You Know You Can't Deny"

Neste momento, já todos devem estar familiarizados com o fenómeno da cultura LGBT internacional RuPaul's Drag Race - um reality show em que um grupo de concorrentes, drag queens, atua numa série de desafios pelo direito ao título de America's Next Drag Superstar (relativamente aproximado do ainda mais popular America's Next Top Model).

Tipicamente, não me debruço sobre programas televisivos não roteirizados. Tecnicamente, RuPaul's Drag Race é um reality show, de natureza muito pouco scriptada (suspendamos a descrença, por uns momentos, e acreditemos). Assim, importa ressalvar: RuPaul's Drag Race é um fenómeno de popularidade, e isso sim justifica uma crónica de opinião.

Desde a sua estreia, em 2007, transmitida pela LogoTV (canal exclusivo dos EUA) que RuPaul's Drag Race apelou a um segmento específico de público. No entanto, a sua nona temporada foi transmitida pelo canal VH1, contou com o episódio mais visto de sempre (Oh My Gaga - episódio 1) e mais uma vez sofreu uma metamorfose artística e de storytelling. Os seus episódios consistiam numa fórmula mais ou menos constante: mini-challenge, main challenge, runway, lipsync for your life. Alguns desafios, como o Snatch Game, ou o Reading is Fundamental, são recorrentes em todas as temporadas e esperados ansiosamente pelos fãs do formato.

Mais do que um showcase de Drag Queens, o programa dá uma plataforma para a discussão de assuntos de interesse da comunidade LGBT, com uma leveza séria que só pessoas do meio artístico com maior expressão no mundo homossexual conseguem imprimir. Desde as pageant queens, às shady queens, às comic queens, até àquelas que ainda estão a descobrir a sua identidade (looking at you, Aja), o programa conta com um elemento chave que une todas estas personagens: a luta. Pela identidade, seja de género, de expressão, artística ou simplesmente o direito à existência.

Contudo, o que de mais impressionante existiu na temporada 9 foram as concorrentes: Charlie Hides, a mais velha participante de sempre, com 52 anos; Trinity Taylor, a maior surpresa da herstory; Shea Coulée, dançarina exímia e sempre preparada; Aja e Valentina, duas front-runners simultaneamente amadas e odiadas pelo público, que protagonizaram os dois momentos mais memoráveis dos episódios regulares ("You're perfect, you're beautiful" | Untucked ep 2) e o momento mais tenso de sempre no lipsync for your life ("maskgate" | Episódio 7).

O episódio final, com a coroação, criou a sua própria controvérsia: através de um modelo de morte súbita por lipsync, RuPaul criou intriga, expectativa, interesse e surpresa. Sasha Velour, uma das concorrentes com o histórico mais consistente, acabaria por gravar para sempre o seu nome nas páginas da história com as suas performances impressionantes de duas músicas do ícone Whitney Houston.

Assim, concorde-se ou não, Sasha Velour mereceu indubitavelmente a vitória na corrida, e torna-se legitimamente America's Next Drag Superstar. Com uma fórmula renovada, com algumas falhas mas acima de tudo com passagens inesquecíveis, RuPaul's Drag Race é uma aposta ganha, tanto do criador, RuPaul Charles, como da VH1, como de todos que um dia duvidaram que a cultura LGBT pudesse ter tanta expressão, importância e relevância na sociedade como hoje a vemos.



VH1

Temporada 9

sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

Review: Schitt's Creek - Temporada 1

Por Joaquim da Silva.

«With your kiss my life began.»


Premissa: uma família rica vê-se envolvida num escândalo financeiro e perde tudo, sendo forçada a reajustar-se à vida numa cidade de classe baixa nos arredores de algum sítio inóspito. Sem luxos, sem dinheiro, têm de sobreviver. Em treze episódios de mais ou menos vinte minutos. Não deve haver assim tantos lugares-comuns de televisão mais usados do que este que acabo de descrever. Especialmente nos anos mais recentes, com o crescendo de escândalos financeiros reais. Então, pergunte-se, o que me leva a ver Schitt's Creek? Provavelmente, nada. Devo sublinhar que eu mesmo só descobri esta série num golpe de acaso, quando procurava o que ver, no meio do tédio dos interregnos dos programas que acompanho. A começar pelo pobre trocadilho do nome da série, e olhando para o elenco, onde destaco Eugene Levy (o eterno pai do Jim da tão imortal como infame American Pie), não há assim nada de especial.

Contudo, já devíamos ter aprendido: "Não julgue o livro pela capa". Schitt's Creek não é uma inovação, não tem um texto genial, não possui um elenco de luxo, não é nada mais que um filler. Talvez por isso, por não haver pressão, se conseguiu um bom produto. Estes treze episódios não fogem a usar todos e mais alguns estereótipos que a sociedade tem sobre os "ricos", os "pobres", os "jovens", os "rednecks". Existe, porém, uma nuance bastante peculiar: todas as personagens parecem em sintonia consigo mesmas. São fiéis à sua origem, sem ser demarcadamente exageradas na colagem ao estereótipo. São uma representação a cores de ideias a preto e branco. Revelam-se profundamente emocionais, capazes de se auto-analisar, de se reinventar, de se adaptar. Desenvolvem-se laços, criam-se confianças, exprimem-se emoções.

Mais, Schitt's Creek não se esconde na comédia para fugir a iluminar levemente temas mais importantes e presentes na sociedade: o colapso do sistema financeiro, o gasto desmedido e impensado, a arrogância dos poderosos (a família Rose é dona da cidade, que compraram como presente jocoso ao filho mais velho). Explora-se ainda, de forma mais continuada, a montanha russa emocional de Moira (Catherine O'Hara) ao ver a sua vida colapsar, a sexualidade de David (Dan Levy) - rotule-se de não convencional, por agora - o desespero de Johnny (Eugene Levy) por não ser mais o "dono e senhor". Alexis Rose (Annie Murphy), a filha mais nova do casal, a menina mimada, é a primeira a aceitar a nova vida, alheada do facto de que essa sua visão é turvada pelo sentimento que a une a Mutt (Tim Rozon).

Apesar de parecer mais uma comédia, Schitt's Creek tem todo o potencial para ser uma série memorável, desde que se mantenha fiel a si mesma, numa perfeita sintonia com aquilo que faz dela aquilo que é: leve, jovem, atrevida, mas acima de tudo, independente. Sem stress, sem pressa, sem correria. Vejam-se, e façam com que não queiramos deixar de vos ver.


P.S.: David Rose é, sem dúvida, a mais interessante das personagens e a sua história exige desenvolvimento, exige interesse, urge ser contada. Não se pode perder esta tão necessária luz sobre a diversidade do comportamento sexual humano, sobre o afecto, sobre a introspecção de cada um de nós, vista nele e por ele.

CBC


Temporada 1

sábado, 21 de novembro de 2015

Review: Grace and Frankie - Temporada 1

Por Joaquim da Silva.

«Tears Dry on Their Own»

São muitos anos. É crescer e aprender. Mais vale tarde do que nunca. Quando crianças, todos queremos ser adolescentes. E depois temos pressa de ser adultos. E depois, temos saudades de ser adolescentes outra vez. Mas ninguém anseia ser velho. Idoso. Reformado. Há muito mais quem procure a juventude eterna do que a tranquilidade da velhice. Desde sempre se procura incessantemente a imortalidade. A persistência da luta contra o tempo, da falta de tempo, da resistência à passagem dos dias, dos meses, dos anos, o desespero do reflexo enrugado, da erosão da beleza jovial. Ninguém é velho - velhos são os trapos, a idade é um estado de espírito - ser velho é algo semi-repugnante, rejeitado por todos (inclusive os velhos). Pois cabe-me dizer: Caríssimos, todos envelhecemos. Todos os que tiverem a sorte de viver mais que o seu igual serão inevitavelmente velhos. E como tudo o que é inevitável, eis que vem o habituar. Habituemo-nos à ideia, conforme é esperado. E quando não mais se pode esperar?

Grace and Frankie parte da premissa simples de que em 2015 é relativamente bem aceite e bem mais fácil sair do armário. Ser-se quem se é, é uma condição bem mais alcançável hoje do que há alguns - nem assim tantos - anos. Pois então Robert (Martin Sheen) e Sol (Sam Waterston), cônjuges das respectivas personagens titulares, também o sabem. E decidem que é hora de dizer a verdade, romper com os seus casamentos heterossexuais e assumir a paixão que os leva a manter uma relação secreta. Pedem o divórcio e decidem juntar-se. Ora, todos os dias isto deve acontecer em qualquer lado, até que é mais comum haver divórcios do que casamentos. Detalhe: todos eles enquadram-se na faixa etária 65+. Essa idade em que tudo está já designado, a vida é feita de conformes e de hábitos, de um desenrolar de rotinas na lenta espera pela morte.

Na mais requintada ironia, Grace (Jane Fonda) e Frankie (Lily Tomlin) são duas personalidades opostas: uma conservadora, que segue altos padrões de moral, ética e etiqueta, frequentadora dos melhores e mais altos níveis sociais, filantrópica e empreendedora. A outra, liberal, libertina, professora de arte de ex-reclusos, que nega algumas das convenções sociais mais antigas, progressista à frente do seu tempo. Veja-se, Frankie é mãe adoptiva de dois homens de raças diferentes, tendo-o feito numa presumível época em que a raça negra ainda era fortemente discriminada nos Estados Unidos. Como se o destruir das suas vidas matrimoniais não fosse um evento suficientemente traumático, ambas se refugiam na partilhada casa de praia dos casais (Robert e Sol são sócios de trabalho, pelo que existe uma relação anterior ao início da série entre Grace e Frankie). E é aqui que se inicia o processo de superação de duas mulheres, que nada mais têm que a si mesmas, uma à outra, e aos filhos, para viver algo que se vive aos 30 ou 40 anos de idade. Grace and Frankie lida com os problemas dos "jovens" da perspectiva dos "séniores": orientação sexual, aceitação social, reconstrução da vida amorosa, luto pela relação falhada, (re)inserção no mercado laboral.


Grace and Frankie é uma comédia de relações, amores e desamores, absolutamente igual a tantas outras. Só que em vez de falar de jovens, ou de jovens adultos, fala de seres humanos. Porque os velhos são seres humanos também, e o amor não escolhe idades. Morrer é parar, seja isso em que idade for.

P.S.: Brianna (June Diane Raphael), hilariante em todas as linhas de diálogo que tem. Mais foco e desenvolvimento desta personagem precisa-se, aligeira os momentos dramáticos mas não desvia a atenção do espectador do foco da trama. Robert, pelo contrário, é desinteressante e acessório, não faz diferença quase nenhuma, só serve para que as personagens principais iniciem a sua jornada em igualdade de circunstâncias. 

Netflix

Temporada 1

domingo, 15 de novembro de 2015

Split Screen é nomeado a quatro categorias dos TCN Blog Awards 2015


Na sexta edição dos TCN Blog Awards 2015, o Split Screen foi nomeado em quatro categorias. Os prémios, organizados por Miguel Reis do blogue Cinema Notebook, visam premiar anualmente o que de melhor se faz na blogosfera portuguesa de cinema e televisão. Os vencedores serão conhecidos a 9 de Janeiro de 2016.

Entre as nomeações alcançadas na edição de 2015 constam Melhor Blogue Colectivo, Melhor Iniciativa (Círculo de Críticos Online Portugueses), Melhor Artigo de Televisão (Procurando por uma despedida: Um adeus forçado a "Looking", por Walter Neto) e Melhor Crítica de Televisão ("Togetherness": O distanciamento da proximidade, por Joaquim da Silva).

Num ano particularmente pobre para este blogue, não deixa de ser um motivo de orgulho estas nomeações, sobretudo as alcançadas por dois dos autores convidados que colaboram frequentemente connosco. Parabéns a eles e sobretudo um obrigado ao Miguel Reis por todo o trabalho que fez durante estes anos, contra todas as dificuldades, como agregador da blogosfera portuguesa de cinema e televisão, por puro amor ao que faz.

sábado, 7 de novembro de 2015

Review: Mr. Robot - Temporada 1

Por Joaquim da Silva.

«Do You Want The Truth or Something Beautiful?»

Século XXI. Evolução, tecnologia, comodidade. Computador, smartphone, robot de cozinha, redes sociais, plataformas digitais, interacções irreais. "Faz-me um like" : longe se vai o momento em que esta frase era uma simples paródia, para ser cada vez mais uma necessidade do ser humano. Escravos da reality TV, ligados nas hashtags e recebendo likes como se de vida se tratasse, enveredamos num mundo fabricado, ilusório, de realidade distorcida e do qual conhecemos muito pouco. O que será realmente que existe? Poderá um hacker salvar o mundo? E se sim, que mundo? O meu, o dele, o nosso?

Mr. Robot é uma ode à proeza heróica clássica, na sua forma mais primitiva, em contraste absolutamente directo com o ambiente da série. Elliot (Rami Malek) é um humano comum. Seja lá o que isso for. É uma pessoa que vive num bairro médio de Nova Iorque, tem um emprego medianamente remunerado numa empresa de segurança informática. E é aqui que se abre a porta para o desenrolar da história. Elliot vive perseguido por si mesmo, enrolado numa densa névoa de ansiedade social, paranóia e alguma loucura utópica, ao mesmo tempo que parece o mais lúcido e iluminado de todos nós, pois vê aquilo que realmente precisa ser visto: somos escravos de nós mesmos, e precisamos de ser libertos. Na sua cruzada por destruir E(vil) Corp, Elliot depara-se com a sua própria destruição: a morte do pai, que era a sua figura mais próxima, o isolamento afectivo, a descrença emocional e a fuga infrutífera ao sentimento que nutre por Angela (Portia Doubleday).

Quando tudo parece perdido, Elliot é recrutado por Mr. Robot, um homem cujo sonho é exterminar a dívida mundial e lançar o mundo num caos descontrolado, de forma a reorganizar a sociedade e mudar inevitavelmente o paradigma da experiência social e humana de todos aqueles que se propõe afectar. Dentro da organização de Mr. Robot, surge também Darlene (Carly Chaikin), uma figura igualmente perturbada, mas mais controlada que Elliot ou Mr. Robot

À medida que a narrativa segue o seu curso, vai-se desvendando a névoa que tolhe o pensamento de Elliot. Sempre que uma nova personagem é introduzida vivemos um aprofundar da dimensão do problema: no início pensa-se que o destino do mundo é circunscrito ao poder da E Corp. Contudo, torna-se perfeitamente claro que isso é só a ponta do metafórico iceberg de relações de poder e de dominação a que está sujeita a sociedade mundial. Alusões e referências agressivas à desmedida e  incontrolável influência do dinheiro, à proclamada força do sistema financeiro -  tão ou mais frágil que o próprio Elliot - são um dos pilares da história. Assim se desenha uma antítese metafórica fortíssima entre a necessidade emergente da acção e a nossa própria inércia enquanto agentes de mudança de uma sociedade desconstruída e em implosão anunciada.

Mr. Robot brinca seriamente com paralelos entre a ficção e a realidade: o crescendo das doenças psiquiátricas, na forma das perturbações de Darlene e de Elliot, com graus de seriedade crescentes entre um e outro, assim como a corrupção mundialmente aceite no tratamento dos dados informáticos, biométricos, financeiros, privados, secretos, intrínsecos de cada um de nós. É a invasão total do nosso ser. É a devassa das nossas ideias do que é o mundo, de que aquilo que se vê não corresponde ao que existe de facto. Numa última reviravolta, Elliot descobre qual a relação entre si e Mr. Robot, e porque foi escolhido especificamente como a peça fulcral no ataque ao mundo. Aquele humano comum que será afinal o super-herói. Ou será super-vilão? Mr. Robot, em busca da verdade. Mas qual delas?

«I am happy to deceive you».


P.S.: Mr. Robot tem cenas fortes, tocantes, chocantes, que desconstroem tudo o que estamos confortáveis que seja. Cada episódio é uma obra de arte visual, auditiva, sensitiva. Textos inteligentes, abertos. Fotografia impecável. Só é pena ter de se esperar por mais.

Mr. Robot (2015)
USA Network

Temporada 1

terça-feira, 13 de outubro de 2015

30 Minute Love Affair - Arrested Development

Por Joaquim da Silva.

Arrested Development é uma das mais progressistas comédias de sempre. Esta série, que contou com três temporadas entre 2003 e 2006, revelou uma nova forma de ver e fazer comédia. Sem a quase omnipresente e profundamente insuportável laugh track, assentou preferencialmente na escrita de diálogo inteligente, subtil, de interpretação dúbia. E é essencialmente nesta última que reside a genialidade da série, que se apresenta ao espectador no início de cada episódio («Now the story of a wealthy family who lost everything, and the one son who had no choice but to keep them all together».) Desengane-se quem acha que vai ser mais uma série de lugares-comuns acerca de ex-ricos a passarem por "situações dos pobres". Apesar de terem perdido tudo, ninguém está disposto a admiti-lo, sendo que se comportam de forma bastante alheada da sua realidade. É esse o ponto de partida de Arrested Development. Contudo, a série é muito mais que uma infindável sucessão de paródias. Oferece uma luz séria sobre a dificuldade de aceitar a mudança, seja essa de estado social, estado civil - Lindsay (Portia de Rossi) e Tobias (David Cross), presos num casamento infeliz, que tentam tudo para fugir ao divórcio - ou apenas o estado de estar. Arrested Development não faz só piadas fáceis. Desde as frases sexualmente dúbias de Tobias, aos delírios de Lucille (Jessica Walter) e ao comportamento infantilizado de Buster (Tony Hale), todos os personagens experimentam situações quase sempre plausíveis, não forçando o comic relief em casos inusitados e com consequências imprevisíveis.

Considere-se por exemplo o desempenho de Portia de Rossi, que dá vida a Lindsay Bluth. Aparentemente fútil e vazia menina rica, que ao longo dos episódios e do desenrolar da trama vai evidenciando uma pluralidade de traços pessoais, como sejam o desligamento emocional do casamento, a busca de um novo amor (tentativas frustradas, típicas da peripécia de uma comédia), a ligação profunda que sente com o irmão gémeo ao mesmo tempo que quase não interage com o irmão mais novo.

Em última instância, Lindsay não é unidimensional, característica comum a todos os personagens principais, que neste ou naquele momento se descolam da sua imagem e revelam uma outra face. Lucille, ácida e distante, que é também uma mãe preocupada; G.O.B. (Will Arnett), o mulherengo inconsequente, é também um irmão disponível, ajudando Michael (Jason Bateman) diversas vezes, em esquemas mais ou menos mirabolantes; Buster, a criança-adulta, que é o mais sensato dos irmãos, que presta atenção real às palavras de Michael. Verifica-se assim profundidade narrativa, essencial para o espectador encadeie os acontecimentos que não são vistos, mas que são necessários inferir quando se analisa o porquê de a situação não piorar drasticamente com cada asneira de cada um.

Quando se abre a janela da piada à interpretação das personagens, forçando-as a tecer comentários e considerações sobre a sua própria condição, consegue-se um tipo de humor inteligente, direccionado a quem gosta de ler nas entrelinhas, de esmiuçar motivações e de encontrar respostas no silêncio, na linguagem corporal, nos elementos cénicos.

Arrested Development é assim uma série à frente do seu tempo, que desbravou horizontes e caminhos, e que deu origem a uma nova face do humor. Arrisco dizer que séries aclamadas como The Office, Parks and Recreation, Modern Family, Veep, e algumas novidades como The Last Man on Earth, partilham desta característica de humor inteligente, focado em acontecimentos plausíveis na vida de personagens com ligação não aleatória - famílias, colegas de trabalho - como mote de narrativa.


Por isso mesmo, é com regozijo que escrevo, com doze anos de atraso: Parabéns, Arrested Development. Michael, Lindsay, G.O.B., Buster, Tobias, George-Michael, Maeby, George Sr., e sem dúvida a minha preferida, Lucille Bluth, e bem-vindos de novo à nossa vida.

domingo, 22 de março de 2015

"Togetherness": O distanciamento da proximidade

Por Joaquim da Silva.

Nunca a vida foi tão difícil.

Paradoxalmente ao esperado, quanto mais avançamos, parece que mais obstáculos aparecem. Togetherness é a história de quatro adultos, com mais de 30 anos, ligados pela ligeireza com que procuram arrumar as suas cabeças. Brett (Mark Duplass) e Michelle (Melanie Lynskey), um casal com dois filhos, que luta pelo reencontro da chama que já não arde e que os manteria juntos. Tina (Amanda Peet), a irmã de Michelle, sem futuro, que salta de relacionamento em relacionamento e de emprego em emprego na esperança de encontrar o talento que a estabilizará. E Alex (Steve Zissis), o melhor amigo - actor cronicamente desempregado - de Brett, que se vê despejado e obrigado a viver no seu sofá. 

Uma história ao estilo Friends, que narra a luta pela sanidade mental e pelo sucesso de um grupo de adultos, no entanto, com uma nuance que a diferencia de muito do que já se tem feito: é plausível. É fácil de acreditar. Quase todos nós já partilhamos das emoções de Brett, que se sente frustrado profissionalmente e se sente a perder o controlo do seu casamento. Ou de Michelle, cansada de ser uma mãe a tempo inteiro que só quer sentir-se jovem, viva e resplandecente de novo. Tina e Alex fornecem o apoio à narrativa do casal, dando um alívio cómico às situações, pelas suas personalidades mais livres e desinibidas. Aliás, Tina é o epíteto da desinibição.

A aproximação é inevitável. Para além do laço do matrimónio, surgem o laço sanguíneo e o laço da amizade, que acaba por ser de todos o mais forte: a capacidade do ser humano em sacrificar-se pela amizade a outro, sendo essa capacidade personificada ao máximo por Alex, seja em relação a Brett, como a Tina (note-se que se verifica uma aproximação romântica, semi-correspondida neste último exemplo). Dos episódios já exibidos, é possível perceber que existe uma linha de pensamento comum a Mark Duplass e Jay Duplass, que permite reconhecer em Togetherness um dos mais fortes e positivos traços da série Transparent (Jay Duplass é Josh, o filho do meio): o realismo e o respeito pela condição. A acção, em ambas as séries, desenrola-se de uma forma tão natural e ligeira, que apesar de tratar de sentimentos e relações humanas dá ao espectador algo tão desesperadamente necessário neste mundo frenético - o tempo. Tempo de viver. Tempo de sorrir. Tempo de perceber que aquelas pessoas, aquele texto, aquele mundo, é tão deles como nosso. 

Aquelas frases podem e possivelmente já foram ditas, sentidas, pensadas, por cada um e por todos nós. A peripécia da tenacidade do jogo da lata, a disputa intergeracional, o regresso à infância, o choro, o riso, o incómodo, o embaraço. Quem nunca sentiu? Por tudo isto, Togetherness é um must-see. E leia-se "ver" no sentido mais abrangente. Sentir, pensar, conhecer, aprender.

Porque Togetherness ensina que não é preciso estar perto para estar próximo, mas é preciso muito ser muito próximo para conseguir viver perto.


P.S.: Melanie Lynskey descola-se indubitavelmente de Rose (Two and a Half Men). É a prova mais que provada que uma atriz, digna de ser chamada atriz, pode desempenhar um mesmo papel durante anos e mesmo assim conseguir desempenhar outros com perfeição. Choose a job you love, and you'll never have to work a day in your life.

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

"Looking": Desconstruir o futuro, revisitando o passado

Por Joaquim da Silva.

Todos procuramos alguma coisa. No fundo da nossa alma, no lugar mais recôndito do nosso ser mora a essência da nossa busca. Looking é a história de três amigos. Homens, homossexuais, entre os 30 e os 40 anos, que vivem em São Francisco. Patrick, o protagonista da série, é um video game developer; Agustín é um aspirante a artista e Dom um empreendedor que sonha abrir o seu próprio restaurante.

Depois de uma aclamada primeira temporada, em que vemos as personagens desenvolverem o seu lado mais emocional, mais pessoal, mais profundo, com uma brilhante desconstrução de estereótipos e preconceitos, o espectador é brindado com uma das mais desapontantes continuações de que há memória. A segunda temporada, pelo menos os três episódios já exibidos, traz uma série de lugares comuns, tão tristes quanto desnecessários, àquilo que poderia um dos mais progressistas e modernos retratos dum segmento social já tão historicamente perseguido como são os homossexuais. Ora vejamos: Agustín (Frankie J. Álvarez), que apesar de ser a personagem mais unidimensional e emocionalmente perturbada, mantinha uma relação estável com Frank (O. T. Fagbenle), mas pela sua "arte sexual", essa mesma relação terminou, e em termos desfavoráveis à convivência dos ex-parceiros. E se o terminar de uma relação é sempre algo destruidor, Agustín certamente esquece rápido, pois não se faz nem se ouve mais alguma menção à dor ou ao desalento. Frank simplesmente desaparece e Agustín torna-se ainda mais um estereotipado gay dos anos 90 - promíscuo, abusador de substâncias, desempregado, sem rumo, sem ambição. Se já havia algum desinteresse por ele, então cada vez mais a personagem se torna aborrecida e previsível.

Na mesma linha de regresso ao cliché, existe agora Patrick (Jonathan Groff). Depois de no final da primeira temporada se envolver com o seu patrão Kevin (how Lewinski of him), vemo-lo agora a fazer o papel de cego e apaixonado amante, a ter de ocultar, esconder e mascarar aquilo que sente aos olhos do mundo, pois vive uma relação clandestina com um homem comprometido. Assiste-se ainda a uma das cenas mais ridiculamente estereotípicas e marcadas de qualquer bom filme de adolescentes americano: o beijo roubado debaixo da bancada de um jogo de rugby, poucos minutos depois de Kevin (Russell Tovey) desprezar qualquer ligação entre eles e falar apaixonadamente do seu namorado Jon (Joseph Williamson). No meio desta espiral descendente aparece Dom (Murray Bartlett), o único que parece coerente consigo próprio, que continua a lutar pelo seu objectivo de abrir o seu negócio enquanto lida simultaneamente com a definição dos seus sentimentos e da sua relação com Lynn (Scott Bakula). Doris (Lauren Weedman) continua a fornecer o alívio cómico situacional esporádico, e aqui acaba a acção. Richie (Raúl Castillo), que é a ponta solta na vida de Patrick volta a aparecer na história, e só nos resta esperar que seja ele o elemento que acabe com o marasmo que se assiste neste momento na trama.

Em suma, Looking tinha tudo para ser um sucesso. E ainda tem. Basta que se consiga voltar a escrever fora do quadrado. Basta que a equipa de argumentistas queira voltar a tratar com seriedade um tema que nada menos que isso merece: a afectividade entre seres humanos, independentemente do sexo, e a eterna busca. Seja pelo que for. O melhor da viagem não é o destino, mas sim a peripécia que aparece no caminho.


P.S.: Parabéns a Murray Bartlett, não só pela incrível forma física, mas também pelo surpreendentemente desempenho, pela profundidade, pela vida, pela energia, pelo carisma que dá a Dom, sem dúvida a melhor personagem da série.

segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

Review: Transparent - Temporada 1

Por Joaquim da Silva.

Einstein dizia que tudo é relativo. Lavoisier dizia que nada se cria, nada se perde, tudo se transforma. E quando se relativiza a transformação ou se transforma a relatividade? Transparent é toda uma nova visão do mundo. Uma perspectiva vigorosamente refrescante e seriamente ligeira. É a mais poética e perfeita interpretação da essência do ser humano no mundo, da intrínseca simbiose ser/estar, é a personificação da ambiguidade existir/viver. Sinto, logo existo. E se sinto que não pertenço à existência?

Transparent levanta o véu ao complexíssimo plano da condição. Interroga o espectador sobre o que é ser, o que é viver, o que é preciso ser para existir, ao mesmo tempo que incide de forma acutilante nas relações familiares convencionalmente modernas. É como se de repente fosse possível reescrever a história, sem medo, sem tabus, sem preconceitos. 

Transparent  é de uma genialidade quase perfeita, uma obra quase prima. Da desconstrução da única palavra que dá o nome à série, surge logo o tema central, que muito dará que ver: Trans-parent, a história de um progenitor transexual. Transparent, aquilo que nenhum de nós gosta de assumir que gostaria de poder ser, numa representação a muitas cores do que almejamos que seja a preto e branco, simples e claro: nós. A infindável procura do eu é o mote para um conjunto de peripécias e leves dramas, que trarão à superfície tudo aquilo que, na verdade, nos impede de sermos transparentes.

Mort (Jeffrey Tambor), o pai sempre presente, o marido não tão perfeito, o homem por detrás do núcleo familiar central da trama, deixa de fingir ser o que não acha que é, e assume-se Maura, a sua verdadeira e há muito reprimida identidade, cujo maior desejo é poder ser transparente. Sarah (Amy Landecker) é a filha mais velha, heterossexualmente casada, mãe de dois filhos, que deixa o marido por Tammy, antiga paixão de faculdade. Sarah é também a primeira personagem principal a saber da decisão de Maura, e parece apoiar incondicionalmente, no entanto, transparece que é apenas uma forma de desviar a sua própria atenção da culpa e algum arrependimento que sente de si mesma, por ter destruído o seu lar. Josh (Jay Duplass), o filho bem sucedido e mulherengo, com uma vida cheia de sucessos e balões de aplausos, é no entanto um homem que vide num constante medo da solidão, que mascara com a sua colecção de conquistas fáceis, e é também o último a saber da transição na vida de Maura, e o que descobre da pior forma, pois é a irmã Ali (Gaby Hoffmann), que não consegue conter-se. Aliás, Ali é a hipérbole dos excessos, desde a sua fácil associação a vícios, como a dificuldade de relacionamento com os outros, o seu crónico desemprego e consequente dependência financeira do pai, culminando nos seus extravagantes e explícitos devaneios sexuais. No elenco principal figura ainda a sempre excepcional Judith Light, que dá vida a Shelly, a ex-esposa de Maura e mãe de Sarah, Josh e Ali.

Transparent é uma mistura de personalidades, de atitudes e de visões. A perspectiva de cada um funde-se com a do espectador, numa tentativa de ligação emocional entre o drama das personagens e o mundo real, através da construção de um paralelismo absorvente e fascinante entre eles, os Pfefferman, e nós, os humanos que todos somos. Trata ainda de desmistificar a transexualidade, de dar uma nova abordagem a um dos mais quentes temas políticos do momento, os direitos LGBT. Contudo, Transparent evita a associação a qualquer estereótipo LGBT e prefere dar a sua opinião sobre um tema muito mais importante e globalizante, o mais básico e imprescindível direito humano: a liberdade. De género, de expressão, de religião. E o choque entre o direito à liberdade individual e a não interferência na liberdade alheia. É essa fina linha que define a série: até que ponto somos realmente livres de sermos transparentes? Em suma, é sem dúvida uma das melhores séries do momento. Inovadora, refrescante, inteligente, que certamente irá expandir horizontes e desmarcar fronteiras, que belisca os limites e a própria concepção de limite. É inclusiva, vincadamente focada nos contornos do crescimento da mentalidade e na destruição de tabus, está certamente destinada a ser vista e vivida como um dos pontos altos da indústria em 2014.

P.S.: Apesar de todo o elenco desempenhar os seus papéis de forma brilhante, destaque enorme para Judith Light e Gaby Hoffmann. A primeira pelo extraordinário uso que faz da expressividade da linguagem corporal e a segunda pela imensa profundidade e genuinidade que imprime à sociopatia de Ali, que quase faz acreditar que não é encenado. Parabéns.


Transparent (2014)
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Temporada 1

Review: American Horror Story: Freak Show

Por Joaquim da Silva.

Insuficiente. É, de longe, o melhor adjectivo que caracteriza a 4.ª temporada da série antológica de Ryan Murphy. Simplesmente insuficiente. Desde cedo se percebe que os episódios sofrem de graves problemas de coesão.  As histórias são inacabadas, flutuantes, e muitas vezes nem sequer são adequadas à personagem que lhes dá vida.Verifica-se, ademais, um enorme e quase inexplicável sub-aproveitamento dos protagonistas, Elsa Mars (Jessica Lange), Bette/Dot Tattler (Sarah Paulson) e Jimmy Darling (Evan Peters). O principal vilão desaparece demasiado cedo (Twisty) e é substituído por alguém que faria muito mais sentido em American Horror Story: Asylum (o rico mimado tornado psicopata Dandy, interpretado por Finn Wittrock) do que em American Horror Story: Freak Show.

O destino dado aos personagens secundários é absurdamente discordante, com uns a terem mortes brutalmente gráficas e horrendas enquanto outros desaparecem apenas na névoa da noite, exemplo de Maggie (Emma Roberts) - serrada ao meio - ou Ma Petite (Jyoti Amge) - abafada sem ruído - respectivamente. Kathy Bates, que desempenhou brilhantemente a mais negra das personagens de American Horror Story: Coven, é relegada para um papel ridículo de ajudante subserviente de Elsa, posteriormente assassinada a sangue frio pela mesma, sem qualquer desconfiança por parte dos outros.

Destino idêntico é dado a Angela Bassett, da imortal rainha do voodoo Marie Laveau para a apagada esposa "hermafrodita" de Michael Chiklis, o homem forte e másculo do espetáculo, que acaba por se revelar homossexual ao se apaixonar pela personagem de Matt Bomer. (Really, Ryan Murphy? - Apesar de grande parte do público concordar que Matt Bomer é realmente um bom actor, o cliché do homem da caverna secretamente gay é demasiado óbvio para ser usado dessa forma numa suposta trama de terror).

Em suma, apesar do objectivo da temporada ser abrir uma nova perspectiva sobre o universo da série, e a ligação entre temporadas, assim como deixar pontas soltas que possam eventualmente vir a ser concluídas em temporadas posteriores, à semelhança da prolepse usada na história de Pepper (Naomi Grossman), American Horror Story: Freak Show deixa imenso a desejar. Só não se deseja que não acabe.

P.S.: Apesar da storyline, Dandy é talvez o personagem mais complexo e multifacetado da história, e o desempenho de Finn Wittrock é o mais brilhante e inteligente de todos os elementos do elenco. Parabéns.

American Horror Story: Freak Show (2014)
De Brad Falchuk, Ryan Murphy
FX

Temporada 4