sábado, 2 de junho de 2012

Em Busca do Tempo Perdido - Marcel Proust

Botticelli, A Virgem


«Deixou de apreciar o rosto de Odette segundo a melhor ou pior qualidade das suas faces e a doçura de pura cor de carne que supunha dever encontrar-lhe ao tocá-las com os lábios se alguma vez ousasse beijá-la, mas como uma meada de linhas subtis e belas que os seus olhares dobaram, continuando a curva do seu enrolamento, juntando a cadência da nuca à efusão dos cabelos e à flexão das pálpebras, como num retrato dela em que o seu tipo se tornava inteligível e claro.
Contemplava-a; um fragmento do fresco aparecia no seu rosto e no seu corpo, e desde então procurou sempre encontrá-lo lá quer estivesse junto de Odette, quer estivesse apenas a pensar nela; e embora não tivesse apego à obra-prima florentina a não ser, sem dúvida, porque a encontrava nela, contudo aquela semelhança conferia-lhe, também a ela, uma certa beleza, tornava-a mais preciosa. Swann censurou-se gostos de arte mais refinados. Esquecia-se de que Odette já não era por isso uma mulher conforme ao seu desejo, já que precisamente o seu desejo sempre fora orientado num sentido oposto aos seus gostos estéticos. A expressão «obra florentina» prestou um grande serviço a Swann. Permitiu-lhe, como um título, fazer penetrar a imagem de Odette num mundo de sonhos a que ela não tivera acesso até então e onde se impregnou de nobreza. E ao passo que a visão apenas carnal que tivera daquela mulher, renovando constantemente as suas dúvidas sobre a qualidade do seu rosto, do seu corpo, de toda a sua beleza, enfraquecia o seu amor, essas dúvidas foram destruídas, e esse amor garantido, quando, em vez disso, teve como base os dados de uma estética indiscutível; sem contar que o beijo e a posse, que pareciam naturais e medíocres se lhe fossem concedidos por uma carne arruinada, ao virem coroar a adoração de uma peça de museu pareceram-lhe ser sobrenaturais e deliciosos.
E quando era tentado a lamentar que havia meses nada mais fizesse além de se encontrar com Odette, dizia para consigo mesmo que era razoável dar muito do seu tempo a uma obra-prima inestimável, moldada de uma vez por todas numa matéria diferente e particularmente saborosa, num exemplar raríssimo que contemplava ora com a humildade, a espiritualidade e o desinteresse de um artista, ora com o orgulho, o egoísmo e a sensualidade de um coleccionador.»

in Do Lado de Swann

1 comentário:

Anabela disse...

....ohhhhhhhhhhhhh, doçura querida! Que encanto este "naco" de ternura que me deixas! ADOREI!!!!! Afinal é sempre possível encontrar beleza naquilo que à primeira vista nos repugna....tanto ensinamento a tirar, amiga querida!
Beijo taõ grande