terça-feira, 15 de julho de 2014
Dai-me a casa vazia e simples onde a luz é preciosa. Dai-me a beleza intensa e nua do que é frugal. Quero comer devagar e gravemente como aquele que sabe o contorno carnudo e o peso grave das coisas.
Não quero possuir a terra mas ser um com ela. Não quero possuir nem dominar porque quero ser: esta é a necessidade.
Com veemência e fúria defendo a fidelidade ao estar terrestre. O mundo do ter perturba e paralisa e desvia em seus circuitos o estar, o viver, o ser. Dai-me a claridade daquilo que é exatamente o necessário. Dai-me a limpeza de que não haja lucro. Que a vida seja limpa de todo o luxo e de todo o lixo. Chegou o tempo da nova aliança com a vida.
- Sophia de Mello Breyner Andresen,
"inédito" - sem data.
“A poesia é das raras atividades humanas que, no tempo atual,
tentam salvar uma certa espiritualidade. A poesia não é uma espécie de
religião, mas não há poeta, crente ou descrente, que não escreva para a
salvação da sua alma – quer a essa alma se chame amor, liberdade,
dignidade ou beleza.”
- Sophia de Mello Breyner Andresen,
em “JL 709” de 17/12/97.
- Sophia de Mello Breyner Andresen,
em “JL 709” de 17/12/97.
sábado, 31 de maio de 2014
Esta Gente
Esta gente cujo rosto
Às vezes luminoso
E outras vezes tosco
Ora me lembra escravos
Ora me lembra reis
Faz renascer meu gosto
De luta e de combate
Contra o abutre e a cobra
O porco e o milhafre
Pois a gente que tem
O rosto desenhado
Por paciência e fome
É a gente em quem
Um país ocupado
Escreve o seu nome
E em frente desta gente
Ignorada e pisada
Como a pedra do chão
E mais do que a pedra
Humilhada e calcada
Meu canto se renova
E recomeço a busca
De um país liberto
De uma vida limpa
E de um tempo justo
Sophia de Mello Breyner Andresen,
in "Geografia",
sexta-feira, 30 de maio de 2014
Primavera
As heras de outras eras água pedra
E passa devagar memória antiga
Com brisa madressilva e primavera
E o desejo da jovem noite nua
Música passando pelas veias
E a sombra da folhagem nas paredes
Descalço o passo sobre os musgos verdes
E a noite transparente e distraída
Com seu sabor de rosa densa e breve
Onde me lembro amor de ter morrido
- Sangue feroz do tempo possuído
Sophia de Mello Breyner Andresen
in:Livro Sexto II (1962)
INSTANTE
Deixai-me limpo
O ar dos quartos
E liso
O branco das paredes
Deixai-me com as coisas
Fundadas no silêncio
Sophia de Mello Breyner Andresen
in:Livro Sexto II (1962)
Felicidade
Pela flor pelo vento pelo fogo
Pela estrela da noite tão límpida e serena
Pelo nácar do tempo pelo cipreste agudo
Pelo amor sem ironia por tudo
Que atentamente esperamos
Reconheci tua presença incerta
Tua presença fantástica e liberta.
Sophia de Mello Breyner Andresen
in Livro Sexto
Lua
Entre a terra e os astros, flor intensa.
Nascida do silêncio, a lua cheia
Dá vertigens ao mar e azula a areia,
E a terra segue-a em êxtases suspensa.
Sophia de Mello Andresen,
in Dia do mar - IV -1947
JARDIM
Alguém diz:
“Aqui antigamente houve roseiras” —
Então as horas
Afastam-se estrangeiras,
Como se o tempo fosse feito de demoras.
Sophia de Mello Breyner Andresen
de Poemas Escolhidos
quinta-feira, 29 de maio de 2014
BARCOS
Dormem na praia os barcos pescadores
Imóveis mas abrindo
Os seus olhos de estátua
E a curva do seu bico
Rói a solidão.
Sophia de Mello Breyner Andresen
in 'Poemas escolhidos' 2004
PRAIA
Os pinheiros gemem quando passa o vento
O sol bate no chão e as pedras ardem.
Longe caminham os deuses fantásticos do mar
Brancos de sal e brilhantes como peixes.
Pássaros selvagens de repente,
Atirados contra a luz como pedradas,
Sobem e morrem no céu verticalmente
E o seu corpo é tomado nos espaços.
As ondas marram quebrando contra a luz
A sua fronte ornada de colunas.
E uma antiqüíssima nostalgia de ser mastro
Baloiça nos pinheiros.
Sophia de Mello Breyner Andresen
in 'Poemas escolhidos' 2004
MONTANHA
Vi países de pedras e de rios
Onde nuvens escuras como aranhas
Roem o perfil roxo das montanhas
Entre poentes cor-de-rosa e frios.
Transbordante passei entre as imagens
Excessivas das terras e dos céus
Mergulhando no corpo desse deus
Que se oferece, como um beijo, nas paisagens.
Sophia de Mello Breyner Andresen
in 'Poemas escolhidos' 2004
Não te ofenderei com poemas
Não te ofenderei com poemas
Param os meus olhos quando penso em ti
Não farei do meu remorso um canto
Com árvores e céus mas sem poemas
Demasiado humano para poder ser dito
O teu mundo era simples e difícil
Quotidiano e límpido
Sophia de Mello Breyner Andresen
in Mar Novo - I e II - (1958)
AS PAREDES SÃO BRANCAS...
[...]
As paredes são brancas e suam de terror
A sombra devagar suga o meu sangue
Tudo é como eu fechado e interior
Não sei por onde o vento possa entrar
Toda esta verdura é um segredo
Um murmúrio em voz baixa para os mortos
A lamentação úmida da terra
Numa sombra sem dias e sem noites.
Sophia de Mello Breyner Andresen
In ‘No tempo dividido’ (1954)
PORQUE SERÁ...
[...]
Porque será que não há ninguém no mundo
Só encontrei distância e mar
Sempre sem corpo os nomes ao soar
E todos a contarem o futuro
Como se fôsse o único presente
Olhos criavam outras as imagens
Quebrando em dois o amor insuficiente
Eu nunca pedi nada porque era
Completa a minha esperança
Sophia de Mello Breyner Andresen
In ‘No tempo dividido’ (1954)
‘Meditação do Duque De Gandia sobre a morte de Isabel de Portugal’
Nunca mais
A tua face será pura limpa e viva
Nem o teu andar como onda fugitiva
Se poderá nos passos do tempo tecer.
E nunca mais darei ao tempo a minha vida.
Nunca mais servirei senhor que possa morrer.
A luz da tarde mostra-me os destroços
Do teu ser. Em breve a podridão
Beberá os teus olhos e os teus ossos
Tomando a tua mão na sua mão.
Nunca mais amarei quem não possa viver
Sempre,
Porque eu amei como se fossem eternos
A glória, a luz e o brilho do teu ser,
Amei-te em verdade e transparência
E nem sequer me resta a tua ausência,
És um rosto de nojo e negação
E eu fecho os olhos para não te ver.
Nunca mais servirei senhor que possa morrer.
Sophia de Mello Breyner Andresen
in Mar Novo - I e II - (1958)
COMO É ESTRANHA A MINHA LIBERDADE...
Como é estranha a minha liberdade
As coisas deixam-me passar
Abrem alas de vazio p'ra que eu passe
Como é estranho viver sem alimento
Sem que nada em nós precise ou gaste
Como é estranho não saber
Sophia de Mello Breyner Andresen
In ‘Tempo Dividido’ (l954)
A liberdade
A liberdade que dos deuses eu esperava
Quebrou-se. As rosas que eu colhia,
Transparentes no tempo luminoso,
Morreram com o tempo que as abria.
Sophia de Mello Breyner Andresen
In ‘Tempo Dividido’ (l954)
Senhor
Senhor se da tua pura justiça
Nascem os monstros que em minha roda eu vejo
É porque alguém te venceu ou desviou
Em não sei que penumbra os teus caminhos
Foram talvez os anjos revoltados.
Muito tempo antes de eu ter vindo
Já se tinha a tua obra dividido
E em vão eu busco a tua face antiga
És sempre um deus que nunca tem um rosto
Por muito que eu te chame e te persiga.
Sophia de Mello Breyner Andresen
in ‘’Mar Novo - I e II’ (1958)
O teu rosto
Onde os outros puseram a mentira
Ficou o testemunho do teu rosto
Puro e verdadeiro como a morte
Ficou o teu rosto que ninguém conhece
O teu desejo sempre anoitecido
Ficou o ritmo exacto da má sorte
E o jardim proibido.
Sophia de Mello Breyner Andresen
in ‘’Mar Novo - I e II’ (1958)
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