Estava relendo Elizabeth
Bishop, em tradução de Paulo Henriques Britto, edição bilíngue da Cia das
Letras, quando me dei conta de que há poucos dias, se estivesse viva, uma das
mais expressivas poetas modernas de língua inglesa estaria completando 100
anos. Recorri às páginas especializadas em literatura na internet e percebi uma
tímida e quase inexistente repercussão do fato no Brasil, país em que viveu
bastante tempo, inspirando-a fortemente.
Muitos
poemas de Bishop agradam, mas dois deles me impressionam sobremaneira: O Iceber Imaginário, poema que de tão
belo dá nome ao compêndio que tenho em minhas mãos, e, Uma Arte, poderosa constatação existencial e, de certo modo,
angustiada, sobre repetidas perdas (bens, lembranças, amores) que a poeta
colecionou em sua vida. Mas esses dois poemas não refletem o que há de mais
recorrente na obra da poeta norte amaricana, que é a sua capacidade de
descrever lugares e animais, como em O
Peixe; Posto de Gasolina; Manuelzinho, todos eles, bastante
prosaicos, refletindo uma atitude relaxada frente à poesia, mais sensorial que
rigorosa.
Um
dos seus últimos poemas, concluído em 1979, Cadela
Rosada, é um achado ilustrativo e metafórico. Alude sobre um episódio
famoso, de 1962, quando se denunciou que mendigos cariocas estariam sendo
assassinados pelo Esquadrão da Morte, que jogava os cadáveres no Rio da Guarda.
Bishop identifica a cadela rosada com um mendigo e pergunta:
se
estão fazendo isso com gente, os estúpidos,
com
pernetas ou bípedes, sem escrúpulos,
o
que não fariam com um quadrúpede?
Outra
leitura desse poema é possível, pois em inglês, bitch (cadela) significa,
também, prostituta, o que admite uma interpretação que vincula os
acontecimentos da época à uma possível metaforização da condição feminina.
O
Iceber Imaginário
O iceberg nos atrai
mais que o navio,
mesmo acabando com a
viagem.
Mesmo pairando imóvel,
nuvem pétrea,
e o mar um mármore
revolto.
O iceberg nos atrai
mais que o navio:
Queremos esse chão vivo
de neve,
mesmo com as velas do
navio tombadas
qual neve indissoluta
sobre a água.
Ó calmo campo
flutuante,
sabes que um iceberg
dorme em ti, e em breve
vai despertar e talvez
pastar na tua neve?
Esta cena um marujo
daria os olhos
pra ver. Esquece-se o
navio. O iceberg
sobe e desce; seus
píncaros de vidro
corrigem elípticas no
céu.
Este cenário empresta a
quem o pisa
uma retórica fácil. O
pano leve
é levantado por cordas
finíssimas
de aéreas espirais de
neve.
Duelo de argúcia entre
as alvas agulhas
e o sol. O seu peso o iceberg enfrenta
no palco instável e
incerto onde se assenta.
É por dentro que o
iceberg se faceta.
Tal como jóias numa tumba
ele se salva para
frente, e adorna
só a si, talvez também
as neves
que nos assombram tanto
sobre o mar.
Adeus, adeus, dizemos,
e o navio
segue viagem, e as
ondas se sucedem,
e as nuvens buscam um
céu mais quente.
O iceberg seduz a alma
(pois os dois se
inventam do quase invisível)
a vê-lo assim:
concreto, ereto, indivisível.
Uma
Arte
A arte de perder não é
nenhum mistério;
tantas coisas contêm em
si o acidente
de perdê-las, que
perder não é nada sério.
Perca um pouquinho a
cada dia. Aceite, austero,
a chave perdida, a hora
gasta bestamente.
A arte de perder não é
nenhum mistério.
Depois perca mais
rápido, com mais critério:
lugares, nomes, a
escala subseqüente
da viagem não feita.
Nada disso é sério.
Perdi o relógio de
mamãe. Ah! E nem quero
lembrar a perda de três
casas excelentes.
A arte de perder não é
nenhum mistério.
Perdi duas cidades
lindas. E um império
que era meu, dois rios,
e mais um continente.
tenho saudade deles.
Mas não é nada sério.
— Mesmo perder você (a
voz, o riso etéreo
que eu amo) não muda
nada. Pois é evidente
que a arte de perder
não chega a ser mistério
por muito que pareça
(Escreve!) muito sério.