Ela calça sapatos italianos e usa perfume francês. É esta a perspectiva necessariamente feminina de que a construção Humana precisa. É aqui que está o parágrafo travessão que impulsiona a Ciência_ na opinião mordaz de uma pessoa tão ou mais feia que as outras, tão ou mais animal.
Extraterrestremente falando, estas coisas não me indignam_ paralisam-me. E estou bem consciente que estás a ler-me_ tu com quem partilho meia dúzia de copos alegres, tu com quem partilho intervalos de estudo "a fumar" e tu que um dia até me deste um workshop de ganza. Escolhas são escolhas e sempre recebeste bem as minhas, tão diferentes das tuas. Mais estranho que isto é impossível_ desde miúda. Nunca fui de muitas gomas na lojinha dos doces nem de cartas Majic e sempre tive um certo fascínio por gostos extra-terrestres ou pelo menos gostos-extra-o-nosso-grupo. Sempre gostaste de mim a engarfar saladas quando toda a gente abocanha hambúrgueres, a bebericar chá quando toda a gente emborca imperiais e a mascar pastilhas elásticas quando toda a gente fuma. Tu investes no tabaco e eu invisto nas sojas e nos tofus! Gosto mais de ti assim do que de quem tem os mesmos hábitos que eu, bem o sabes. Sabes a minha opinião acerca dessas coisas todas e, com o devido respeito ao teu pulmão, acho esta lei do tabaco a melhor coisa do mundo a seguir ao micro-ondas!
Paraliso a pensar quem de nós é mais anormal. Não é que isto tenha alguma importância mas qualquer comportamento (aparentemente) patológico que se repita mais vezes do que o normal para uma ocasião esporádica é, para nós teus amigos, um vício. Concebo para os meus botões como uma dependência. E uma dependência é sempre patológica. Ora se tu tens algum tipo/grau de dependência, contigo está para aí 80% da população da nossa idade. Uma anormalidade, percebes? Dos restantes 20%, só uma ou duas é do nosso grupo de amigos, o que me torna uma grande anormal, estatisticamente falando. E aqui está a explicação para a minha dúvida existencial.
Dentro da minha anormalidade exuberante e pavoneante de investir a mesada no Celeiro e no Pingo Doce e bambolear a rabiola no Holmes Place, sei tão bem como tu (ou sei um pouco mais apenas) que essas cenas não te fazem nada bem! Não te posso apratalhar de alface nem regar com chá verde e tenho inclusive alguma dificuldade em, falando a nossa língua, explicar-te como me preocupo contigo. Talvez o que nos distinga, além da minha teimosia natural de ser x quando todos são y, é que eu já vi gente a morrer e mães a chorar e famílias destroçadas. Talvez tenha sido isso a amadurecer as minhas escolhas e a tornar-me uma extra-terrestre mais consciente. E, ouve-me agora, não quero isso para ti e não acho que devas fazer isso a quem gosta de ti, ponto.
Sou apologista de que mais do que pessoas individuais, somos peças de puzzles. Se não o fazes pela tua saúde, pensa nas peças que tens à tua volta e pensa na falta que lhes fazes.
"_ Ah, mas é só para relaxar". _ És muito relaxado, tu. "_Tu é que és muito contraída!" _ Tudo bem. Mas quando quero descontrair vou correr!
A vantagem de se vir deslocada da terrinha para a cidade, numa rota migratória que se repete todos os anos, mais semanal para uns, mais entre estações para outros, é encontrar outras aves com as quais nos identificamos. Partilhamos o mesmo habitat académico mas as espécies migratórias são variadas, uns patos, umas rolas, uns pombos, umas andorinhas, umas aves de rapina. E neste desfile de penas e de garras, natural é que os bichos se agrupem por espécies. E é assim, em todo o mundo: patos com patos, pombos com pombos, rolas com rolas. Uns dormem assentes num pé, outros dormem com o pescoço virado para trás, há quem chilreie, quem grasne, quem gorgoleje, cacareje, trine, grojeie, crucite, gralhe, grite, pie, rulha, cante, glotere, parle, guinche, estridule! Quem se pavoneie, se sacuda, se cate, se bique, se roce. Uns em grandes voos a céu aberto, outros aos saltinhos miúdos, uns a bicar pedrinhas, outros a bicarem-se uns aos outros. Uns tucanos exóticos, uns zelosos pelicanos, araras mais coloridas, mochos velhos, corujas sábias, de tudo. Fora desta classificação, fui encontrando por aí umas aves raras. Não as via particularmente encaixadas em nenhuma destas sociedades, embora sejam umas mais sociais que outras, muito ao estilo ave rara migratória, de andar por aí meia vadia a pavonear as penas aberrantes. É uma ave difícil, mas só uma santa raridade para penetrar nestas sub-sociedades, também. E formamos, agora, uma espécie de clube. Mas uma coisa muito tu-cá-tu-lá, qua-qua, de nos irmos catando aos pares, que não há ave que nos cate melhor as penas que aquelas com penas igualmente atípicas. Fugimos todos os dias à sentença de Darwin, que não temos propriamente as características mais propícias à sobrevivência e temos os nossos caprichos alimentares. Não nos serve qualquer grão! Quanto a isso, como diz o mocho mais deliciosamente difícil de aturar que conheço, é a sentença de carregar um cérebro que anda a mil à hora! E para ti, que te dizes ofendido quando te agradeço por me catares mais uma vez, esta asa está sempre aqui!
Às vezes penso que dedico demasiado tempo a pensar em coisas que não valem a pena. É que muitas vezes, no meu dia-a-dia, sou confrontada com a pergunta como é que uma senhora deve fazer isto? ou o que faria nesta situação uma mulher a sério? ou sou mesmo uma mulher a sério? ou o que raio é que é o toque feminino que dizem que falta aqui?. Isto até pode parecer ridículo mas o que é facto é que me chega a tirar o sono de vez em quando. E não me refiro à dicotomia perna aberta/perna cruzada (obviamente que depende do que tenho vestido e de quem tenho à frente), ao volume e colocação da voz (Deus deu-me um megafone mas tento controlar), ao quão expressiva (e espalhafatosa, por vezes) deve ser uma conversa, nem a certos tiques de homem que insisto em preservar, como coçar a barba e as partes baixas (é mentira! só para ver se estavam com atenção!!).
Sempre fui muito pouco formal e gosto pouco de regras. Quero dizer, eu até posso segui-las mas é porque estão tão agarradas a mim que me são naturais. Agora cozinhar porque sou uma senhora, cruzar a perna porque é mais elegante, achar inadmissível que os homens da casa se passeiem de boxers porque me faz confusão à vista (faz-me mesmo espécie, é diferente) acho ridículo. Faço o que de mais urgente me dá na real gana e no que toca a ser uma senhora, talvez a única coisa que me custe seja mesmo controlar o meu megafone. Vinho tinto sim, muito obrigado; carro nas mãos sempre que possível; café a sós com um amigo sem problemas (e sem problemas para o namorado, também!); abraços à homem e calças a cair pelo rabo, assim à trolha. E nisto, acho-me mulher. Sempre me achei muito mulherzinha mas o problema é que já não sei bem o que a sociedade exige que as mulheres sejam.
Porque cada vez há mais mulheres-a-dias, uns dias mulheres, noutros dias nem por isso, de relações superficiais e físicas, muito sapato italiano e perfume francês, muito sexo e a cidade. Não é que tenha alguma coisa a ver com isso, até porque a culpa não é, de todo, delas. Lá tiveram o azar de se meterem com um banana e ficaram a pensar que todos os homens são bananas ou que, por outra, a única coisa que um homem tem é...esse fruto. Por outro lado há escritório e trabalho e prazos e obrigações...e provavelmente de outro lado uma barriguita a crescer, uma mama para dar, um filho para criar, um pai que não existe...uma casa para limpar, uma refeição para orientar, um pai ou uma mãe doente para ajudar...e depois há amigas e compras e uma necessidade realmente estúpida de querer parecer sempre bem, impecável, sem olheiras, elegante, passada a ferro e viçosa que nem uma alface. Tretas! Ou os XY se fazem homens ou deixa de haver mulheres "como deve ser", ainda que isto seja deveras discutível.
E depois há a moda de querer parecer mais mulher: tendências à anos 60, com rendinhas, coisinhas cintadas, todo o aspecto de uma dona-de-casa daquelas dos anúncios publicitários da farinha e do pudim mas falta realmente o tacho e a máquina de costura. Falta, realmente, o amor. E falta, realmente, a mulher ali. Isto para não falar de mamas de silicone e cirurgias aos pés para caberem num 36 biqueira fina.
É possível que esteja a ser radical. E demasiado tradicionalista. E essas coisas todas, porque a minha mania de mulherzinha faz-me franzir o sobrolho perante estas modernices. Mas...e vocês? O que é para vocês uma mulher como deve ser?
Abateu-se sobre mim uma profunda consciência de fim de dia. Não é tristeza, nem mágoa, nem saudade. Uma profunda consciência e um ligeiro (não tão supérfluo quanto isso) cansaço. Hoje foi o meu último dia de estágio em hospital. Uma saga que começou a medo (e mal) no ano passado, e que continuou (de forma muito tenra) este ano, seguindo-se o resto do curso, o resto da vida nestas andanças.
Não querendo tornar este espaço um pseudo diário (pseudo) médico, e só porque esta mágoa/consciência/saudade ultrapassa o meu limar de excitabilidade criativa (que anda escassa)_ esta vida cansa-me, mói-me, desgasta-me, endurece-me, mecaniza-me, envelhece-me, faz-me varizes e celulite mas no fundo faz-me bem.
Porque este ano me conheci melhor, porque conheci melhor algumas pessoas, porque me dei mais a conhecer, porque conheci um pouco mais da realidade, da pobreza, da miséria, da doença, da saúde, da morte, do nascimento, da verdadeira felicidade e da verdadeira tristeza. A diferença está no saltitar e no arrastar. Umas vezes aos saltinhos nas crocs cor-de-rosa, outras vezes arrastando-me como se o estetoscópio pesasse mais do que o meu próprio corpo.
Por todas as alminhas que contribuíram para as histórias clínicas, pelos fantasmas que não se sabia como estavam vivos, pelas esposas ou maridos que levam a rigor o que juraram de estarem presentes na doença, pelas jovens que se apaixonam por rapazes com paralisia cerebral, pelas senhoras bem dispostas que põem óculos de sol quando lhes dizem que têm de fazer quimioterapia, pelos potesinhos de mel caseiro e queijinhos da serra e pelos feitos que os trouxeram, pelas senhoras muito doentes da idade da minha mãe e da minha avó (estava sempre a pensar nisto), pelos funcionários surdos-mudos e pela sua desenvoltura, pelos pais "primíparos" e pelo "faz-força-filha-mas-não-vou-olhar-muito-aí-para-esse-sítio!", por cada gravidez em cada casal infértil, pelas avós aos quarenta anos que dão a mão às filhas naquelas horas complicadas,
vale a pena.
Com a bata um pouco gasta na zona do rabo (paredes! e não cadeiras), uma técnica inigualável de segurar os telemóveis na orelha dos cirurgiões enquanto estão a operar, todo um conhecimento aprofundado em meias de compressão elástica e rituais e porcarias para a circulação, um passo ainda mais acelerado e muita manha com os botões da bata que devem ser abotoados (depois de ter levado com toda a espécie de fluidos), de barra de cereais num bolso e garrafa de água no outro, se é "aquilo" que eles fazem que é ser médico, gosto disto sim senhor!
Há mais disto em Outubro ou mesmo no Verão, num estágio de férias de consulta do adolescente, que deve ser o cúmulo da criatividade lírica!
Numa bela manhã solarenga, ia eu contentinha, tralala, ver uma cirurgia de uma suposta hérnia, tralala, coisa banalíssima mas que ainda não tinha visto. Incisão na pele, tralala, afastadores para espreitar o buraco, tralala e ops! Um novelo de vasos de aspecto duvidoso, uma mão não chegava para o agarrar. De sobrolho franzido, lancei o olhar de esguelha por cima da máscara à minha colega
_ aquilo é...? _ ali naquele sítio..._ de sobrolho igualmente franzido. Já te conheço!
_ pois! Se não nos falhava a anatomia, aquela bola não era suposto estar ali. E o cirurgião, em tom quase profético:
_metástase! A anestesista desviou a atenção dos seus entreténs e espreitou por cima dos óculos na ponta do nariz. O enfermeiro que andava a cirandar num rodopio de passa caixinhas, traz-me pinças, mais soro parou e eu achei estranho aquilo. A facilidade com que uma metástase do tamanho de uma bola de ténis passa por uma herniazita! É mais ou menos com a mesma facilidade com que se tirou a mama que, noutro dia, à minha mãozinha destreinada não denunciava grande coisa, muito menos um carcinoma invasivo de mau prognóstico.
E ainda meio incrédulos, a passar as mãozinhas de luva na bola, a sentir-lhe, digo eu, o terror:
_ então...é melhor analisar os intestinos. E foram metros de gente cá para fora, pintados às bolinhas rosadas, o que me remeteu de novo para o atlas de anatomia, de sobrolho franzido:
_aquilo..._ para a minha colega.
_é._de sobrolho igualmente franzido.
Aí encolhi-me um pouco. Eles pareciam entretidos com as bolinhas, diria até que por baixo das máscaras escondiam aquele meio sorriso (que até é feio chamar-lhe isto) de quem está entretido e interessado com qualquer coisa nova.
_vêem, meninas, isto é uma carcinomatose peritoneal. Se passarem o dedo é rugoso. Está espalhado pelos intestinos e mesentério. Nesse momento teleportei-me para o livro de Anatomia Patológica e...encolhi-me de novo. Entre a minha habitual hipotensão postural e hipoglicémia matinal, tive pena da senhora. Veio cá por hérnia e leva um cancro disseminado sabe-se lá de onde.
_se for ovário_ diz o cirurgião, ainda a passar o dedinho de luva nas rugosidades, aposto que com aquele trejeito de lábios (sorriso aqui fica, definitivamente, mal)_ com quimioterapia ainda pode ser que responda. _mas que estranho_ o outro cirurgião_ sem emagrecimento, sem mais queixas. Que chatice_ e estala a língua. E aqui encerrou a converseta e deu início ao corta-bola,-arruma-intestino,-lava-com-soro,-compõe,-sutura-agrafa, naquela precisão mecânica, comunicando entre eles com aqueles sinais de sobrolho por cima da máscara, que começo a aprender.
Menos graça ainda teve no outro dia, na enfermaria, ver a dita senhora, depois de operada, sob tutela de umas enfermeiras simpáticas, a desinfectarem a sutura e fazerem-lhe o penso. E é que a senhora, bem dispostona, com o seu ar setentinho, falava de netos, de filhos, de comida, de coisas alegres.
_fui operada com 40 anos, agora sou operada aos 80. A próxima vez, já disse aos meus netos, é só daqui a 40 anos! E a minha colega gracejou.
_aprendam, meninas, aprendam. Para se fazerem sôtoras como estas senhoras. Ainda têm muito que palmear! Ai minhas ricas meninas!
Não consegui sequer esboçar um sorriso, acho mesmo que não tive reacção. Sensação mais estranha que dissecar as pessoas pelas atitudes, é conhecer-lhes as entranhas melhor ainda que o carácter. A sensação de falar com um fantasma bloqueou-me o diálogo e…hoje falo-vos de coração nas mãos…um dia, quem sabe, pode ser que segure melhor intestinos do que corações. A ganhar calo emocional…
É mais ou menos esta a sensação, 44. Por ser capicua também, por ser o dobro (mais 50%, 33, seria pouco, e mais que o dobro é exagero), por também ser um número redondo, como o que o 1988 documenta.
É mais ou menos 44. Até aos 10 já devia contar uns 15 e aos 20 estava certamente nos 30. Dá-me uma média de 18 horas a sério por dia mais umas 20 horas de insónias por semana. Umas 6 horas de trânsito, outras 4 horas de fato-de-treino e umas 6 horas de aulas teóricas (o meu défice de atenção...) e mais 2 se for ao cinema (estando, como é hábito, desatenta). Reconheço que não relaxo, que não desligo, que não deixo (mas tento) de correr. Que nem consigo escrever sem pressa, que não sei cozinhar sem tudo voar à minha volta, que não sei estudar um capítulo sem antecipar o outro, que nunca chego antes da hora, que ando sempre a penar por um intervalo de 3 a 20 minutos. Esses 17 minutos são gastos e duplicados, consumidos no metabolismo que seria em 40 tão minutos como eles mas mais moles. Mas eu mole não sou, tirando em alturas de exames, em certas partes do corpo. E estaria eu 50% mais velha, pelas minhas contas, se ainda aos 20 parecia ter 30 e aos 10, e isto chegou a ser físico, com pêlos e pendurezas de mulher a nascerem-me pelo corpo, tinha, garantidamente, 15 anos. Estes dois anos, ou talvez os últimos quatro, fizeram o favor de me acrescentar mais umas pendurezas cá pra dentro. E não é que, dentro da minha casquinha jovial e da minha habitual distracção, parecem intimidar pendurezas biologicamente mais velhas! E eu continuo a achar-me tão pequena...pequena e um pouco cansada. Cansada (não contrariada).
Ainda assim, e porque amo a minha correria, e porque amo quem quer correr comigo, e porque amo aqueles com que me cruzo, quero pelo menos chegar aos 66. Já tenho anos suficientes disto para poder dizer que gosto é de andar cansada, e que é cansada que sinto a razão que me faz ser. Menos mal, dizem vocês, não sei pra que é que lhe deu para ali hoje!
O que me fascina, depois de muito tempo por aí a matutar (com um género de enrolo de carne, daquelas rijas que nem cornos_ hoje faço anos, desculpem lá_ tipo a pele do tomate do boi, no canto da bochecha, a moer, a moer, a moer)_ é que foi preciso chegar aos 22 anos biológicos para ver que a vontade de nascer é bem maior do que a fatalidade e incidentalidade da morte, principalmente aquela que não se espera para tão cedo.
E aí, ultrapassando o quase milagre que é:
o óvulo sair à rua quando as mães não têm dor de cabeça, ou quando o pai não chega tarde a casa, ou então é um óvulo esperto e sai ao fim-de-semana (ou quando ganha o benfica!)
o útero estar fofinho e não se arma em mauzão e dá cabo de vinte e três cromossomas com cheiro a homem, numa casinha tão fofa e feminina, depois de tanto trabalho a atapetar isto e vem-me uma carrada de girinos pisar o tapete!
os girinos são de uma boa fornada, o pai não anda de mota nem abre a pernoca à lareira, e não andou nos copos nos 70 dias antes de festejar com a Maria
o piqueno lá se alapou no fofinho do útero e foi crescendo, crescendo, apontou a cabeça para baixo (e se não apontou, nasce-se de pés e de nádegas e de queixo; aquilo quase que já só escorrega) e trungas cá para fora, a abrir aqueles pulmões e a sentir aquela que dizem ser a pior dor de todas que um humano pode sentir.
E só aqui, quando se vê aquelas criaturas a chorar, depois de passados tantos obstáculos estatísticos, e graças a Deus que houve festa naquela noite (e graças a Deus que a vida é assim) é que se percebe. Somos feitos para isto mesmo: escapar aos obstáculos estatísticos e viver. A perda de um homem é ,diria eu, estatisticamente discreta perante o quase milagre biológico que foi para ele nascer.
Pensem nisso. Se mo tivessem dito há mais tempo talvez tivesse só 33!
Gosto de ti a pendurar cortinados. Escadote acima, escadote abaixo. Estica o braço, estica o pano, corre o pano. E a chinelar pelo corredor. Treca treca treca. "Ó Paulo!", treca treca, e lá passa mais uma peça de roupa, e lá arruma uma ou outra coisa, ou muda-lhe o sítio para arrumar mais tarde. E eu, suspensa na minha quietude, lá andava atrás de ti ou contigo, no teu treca treca treca de todos os dias. Não me falaste muito do teu treca treca culinário, mas aposto que ainda fizeste uns quilómetros comigo na cozinha. Esse teu livro de culinária, amarelo e consumido pelo tempo, já me é familiar há muitos anos. Acho que te dei uma ajuda a recortar as receitas das revistas! Andávamos floridas e vaporosas com aqueles vestidinhos frescos e práticas de sapatos baixinhos. Nunca fomos muito de saltos altos, é de família! O pai diz que eras a grávida mais bonita lá do sítio! Claro que sim! A tua permanente volumosa ao vento fazia inveja a qualquer alminha gestante! Mas o melhor momento do dia era quando nos traziam aqueles alguidares de laranjas. E então sentava-mo-nos de pernas abertas a devorar laranjas nas escadas. Gulosas! Gostava quando me passavas a mão pelo pêlo, quando me besuntavas de creme para as estrias e dava cambalhotas de felicidade por não usares cintas! Como tu, também não gosto muito de apertos! Lá dei mais uma cambalhota, uns pontapézitos meigos, e meti-me a jeito da porta de saída, que nove meses, e sendo muito tua filha, é demais para estar parada. E acabei por sair, depois de me tocarem na cabeça umas 15 vezes, primeiro o médico, depois o interno, depois o aluno do 6º, 5º e 4º ano, isto umas duas ou três vezes, enquanto eu rejubilava no meio de hormonas e prostaglandinas, impaciente às cabeçadas durante quatro horas. Lá te vi mais agitada que o normal. Deve doer, mas obrigadinho pela força! E foi roxinha que vim ao mundo, pelo que dizes. Nem chorei, nem esperneei e nem parece isso coisa minha! Pelo que consta nem tivemos muito tempo para olharmos uma para a outra. Fugiram comigo e fecharam-me numa caixa transparente, longe de ti e do pai, sem laranjas, sem treca treca e sem "Ó Paulo"! Acho que ficaste preocupada mas eu estava "na boa"! Dois meses depois andava de fato-de-banho, de colo em colo, em plena praia da Nazaré, olé!
Depois desta vivência tão agitada, seria impossível não ser como tu! Continuo a gostar do treca treca treca, jardim acima, jardim abaixo, do "Ó Paulo", do cheirinho na cozinha, das coisas gulosas, de me passares a mão pelo pêlo! Principalmente a última parte!