Numa bela manhã solarenga, ia eu contentinha, tralala, ver uma cirurgia de uma suposta hérnia, tralala, coisa banalíssima mas que ainda não tinha visto. Incisão na pele, tralala, afastadores para espreitar o buraco, tralala e ops! Um novelo de vasos de aspecto duvidoso, uma mão não chegava para o agarrar. De sobrolho franzido, lancei o olhar de esguelha por cima da máscara à minha colega
_ aquilo é...?
_ ali naquele sítio..._ de sobrolho igualmente franzido. Já te conheço!
_ pois!
Se não nos falhava a anatomia, aquela bola não era suposto estar ali. E o cirurgião, em tom quase profético:
_metástase!
A anestesista desviou a atenção dos seus entreténs e espreitou por cima dos óculos na ponta do nariz. O enfermeiro que andava a cirandar num rodopio de passa caixinhas, traz-me pinças, mais soro parou e eu achei estranho aquilo. A facilidade com que uma metástase do tamanho de uma bola de ténis passa por uma herniazita! É mais ou menos com a mesma facilidade com que se tirou a mama que, noutro dia, à minha mãozinha destreinada não denunciava grande coisa, muito menos um carcinoma invasivo de mau prognóstico.
E ainda meio incrédulos, a passar as mãozinhas de luva na bola, a sentir-lhe, digo eu, o terror:
_ então...é melhor analisar os intestinos.
E foram metros de gente cá para fora, pintados às bolinhas rosadas, o que me remeteu de novo para o atlas de anatomia, de sobrolho franzido:
_aquilo..._ para a minha colega.
_é._de sobrolho igualmente franzido.
Aí encolhi-me um pouco. Eles pareciam entretidos com as bolinhas, diria até que por baixo das máscaras escondiam aquele meio sorriso (que até é feio chamar-lhe isto) de quem está entretido e interessado com qualquer coisa nova.
_vêem, meninas, isto é uma carcinomatose peritoneal. Se passarem o dedo é rugoso. Está espalhado pelos intestinos e mesentério.
Nesse momento teleportei-me para o livro de Anatomia Patológica e...encolhi-me de novo. Entre a minha habitual hipotensão postural e hipoglicémia matinal, tive pena da senhora. Veio cá por hérnia e leva um cancro disseminado sabe-se lá de onde.
_se for ovário_ diz o cirurgião, ainda a passar o dedinho de luva nas rugosidades, aposto que com aquele trejeito de lábios (sorriso aqui fica, definitivamente, mal)_ com quimioterapia ainda pode ser que responda.
_mas que estranho_ o outro cirurgião_ sem emagrecimento, sem mais queixas. Que chatice_ e estala a língua. E aqui encerrou a converseta e deu início ao corta-bola,-arruma-intestino,-lava-com-soro,-compõe,-sutura-agrafa, naquela precisão mecânica, comunicando entre eles com aqueles sinais de sobrolho por cima da máscara, que começo a aprender.
Menos graça ainda teve no outro dia, na enfermaria, ver a dita senhora, depois de operada, sob tutela de umas enfermeiras simpáticas, a desinfectarem a sutura e fazerem-lhe o penso. E é que a senhora, bem dispostona, com o seu ar setentinho, falava de netos, de filhos, de comida, de coisas alegres.
_fui operada com 40 anos, agora sou operada aos 80. A próxima vez, já disse aos meus netos, é só daqui a 40 anos!
E a minha colega gracejou.
_aprendam, meninas, aprendam. Para se fazerem sôtoras como estas senhoras. Ainda têm muito que palmear! Ai minhas ricas meninas!
Não consegui sequer esboçar um sorriso, acho mesmo que não tive reacção. Sensação mais estranha que dissecar as pessoas pelas atitudes, é conhecer-lhes as entranhas melhor ainda que o carácter. A sensação de falar com um fantasma bloqueou-me o diálogo e…hoje falo-vos de coração nas mãos…um dia, quem sabe, pode ser que segure melhor intestinos do que corações. A ganhar calo emocional…
4 comentários:
FENOMENAL. Não o carcinoma da senhora, mas a força com que o enfrenta. Mulher, acho que quando só segurares o intestino nas mãos, e não o coração, deixas de ser tu... Tem que se ganhar, penso eu, calo emocional, mas sem nunca se deixar de importar pelas pessoas. ADOREI O TEXTO. Comoveu-me...
Se não fosse jornalista, acho que seria média. Invejo-te as oportunidades...(estou sempre à espera de tentar conhecer melhor as entranhas...a verdade)e a maneira clara como as colocas em palavras*beijinho
*não queria dizer média. mas médica...:)
sem duvida isto tudo e muito complicado. Antes pensava que seria incapaz de decidir sobre a vida e morte de alguem, depois pensei que era capaz de tomar uma decisao cientifica impessoal sobre alguem, hoje deparada com "the real thing" ja nao sei em que pensar outra vez... nao e facil.
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