Conto de Natal
Como a época de neve passada foi escassa, nos princípios da primavera enviei um mail ao Pai Natal. Prometi-lhe que me portaria bem o ano inteiro e pedi-lhe que desta enviasse neve e frio, para saciar a minha vontade de fazer actividades de inverno. Um pouco antes do Natal, numa noite de sono profundo, sonhei que nevava na nossa serrinha e que encordada ao Pai Natal, abríamos uma imensa cascata de gelo. Ao perceber o sinal, logo de manhã mergulhei na web, rebuscando todas as páginas que me pudessem informar sobre as condições meteorológicas da Estrela. A webcam da Turistrela, que se encontrava desligada até à data (não sei bem porque, mas fiquei com a ideia de que queriam enganar a malta ao substituir as imagens em directo, por uma foto nevada!) funcionava novamente, era bom presságio. Nos diversos sites que consultei, as indicações eram de neve e frio, os astros pareciam conjugar-se, tudo indicava que o Pai Natal estava atento. Eu portei-me bem, ele, mandou-me um presente.
Sexta-feira, depois do tradicional treino ao fim do dia, eu e o Paulo montamos as renas...perdão, o Megane, e aceleramos em direcção a uma das mais grandiosas cadeias montanhosas do planeta (com a Serra da Estrela aqui ao lado, quem é que quer saber dos Himalaias?).
Já no maciço central, os cristais de gelo que a lua fazia cintilar, preencheram-nos o olhar. A brancura da neve brilhava perante os faróis das renas...perdão, do Megane! “Paulinho, acho que vamos abrir a época este fim-de-semana” e dois enormes sorrisos se esboçaram perante tamanha certeza.
Nessa noite, adormecemos felizes desejando que as horas passassem fugazes e que a manhã nos despertasse com alguns graus abaixo de 0.
Finalmente o despertador “Cucu toing, cucu toing”. Os nossos corpos ansiosos, rapidamente se enfiaram nas típicas vestes de Inverno e entre os Gore-Tex, piolets e restante material, breve iniciamos a descida para a algo branca face norte do Cântaro Magro. Não falei nos crampons propositadamente, pois a neve estava tão mole que não foram necessários. Passado algum tempo, vislumbramos uma linha de aspecto relativamente fácil, que achamos apetitosa para começar.
Concordamos que deveríamos abrir a época com algo simples, apenas o suficiente para tirar a ferrugem. Enfiamos as botas nos crampons e lá fomos nós por ali acima, entre gancheios e tentativas frustadas de cravar o piolet numa neve que se revelou...execrável!
Rapidamente tivemos de admitir que estávamos mais do que aquecidos! A linha que parecia fácil, com aquela neve totalmente desaconselhada para qualquer tipo de actividade, revelava-se um verdadeiro desafio aos nossos recursos físicos...e mentais!
Quando atingimos o anel do Cântaro fomos invadidos por um típico sentimento natalício. A felicidade! Sentíamo-nos felizes por ter aberto a primeira via mista da época e mais ainda por termos constatado que é possível fazer actividades sejam quais forem as condições...recorrendo claro está a uma enorme vontade e aos apelos da imaginação! Com pouca imaginação, apelidamos a via de “O Reino das Oposições”.
Depois de uma pequeno repasto aquecido pelo sol no anel do Cântaro, achamos por bem reconhecer uma nova zona, com esperança de encontrar melhores condições para o dia seguinte. Movidos pela curiosidade, fomos espreitar um cantinho entre a famosa estatueta da Santa e o Cântaro Raso. Tínhamos vislumbrado as paredes brancas ao longe, quando subíamos pela estrada que vem de Manteigas.
Após uma pequenita caminhada...WOW! Uma fantástica parede coberta de escamas de gelo, com graciosas fissuras preenchidas de branco e musgo que parecia encontrar-se em excelentes condições para receber os bicos dos nossos famintos piolets.
“Tantas vias mistas! E de alta dificuldade! Tantas fissuras! E bem vertical! Grande potencial...” exclamou o Paulo. Comecei a sentir-lhe aquela ansiedade que resulta da abundância. Os seus olhos arregalados perdiam-se por entre as fissuras, como quem as quer escalar todas de uma assentada e não sabe onde começar (imaginem uma criança gulosa com 5 deliciosos chupa-chupas que não cabem na boca todos de uma vez!).
“Granda sector!” acrescentou com um sorriso esbugalhado. “Que nome é que damos a isto? É altamente escocês!”. Por uma questão de lógica, achamos por bem baptiza-lo de “POWER MIX”.
Na manhã seguinte estávamos lá plantados para o desfrutar. Novamente topamos uma linha de aquecimento. Resultado?
Aquecemos e muito!
Aquecemos os pés, joelhos, coxas, cotovelos, barriga e peito, ombros...pelo que chamamos à via “Reptovia”, recorrendo novamente à lógica. É que pelo meio, para além de um “reptanço” numa chaminé (daquelas que a malta gosta de escalar e gosta ainda mais quando está emaranhado nos piolets e crampons), tivemos direito a uma passagem por debaixo de um calhau...verdadeiramente elegante!
Ainda com algumas horas por preencher, topamos outro alinhamento verdadeiramente interessante, este com aspecto um pouco mais duro, mais vertical. Depois dos dois primeiros enganos, achamos por bem conter a gula e não nos atirarmos às de aspecto mais poderoso, mais ainda porque com segurança, só contávamos com os gancheios na rocha, única coisa que era definitivamente estática (pois, nem o musgo estava nas melhores condições!...apesar de ainda assim ser bastante mais seguro do que a neve!!!).
O aspecto “um pouco mais duro” confirmou-se em pleno. Resultado? 110m repartidos por 3 largos que se prolongaram até à luz do dia nos abandonar. Mais uma vez, para além de perdermos todo o amor ao material (não imaginam em que estado ficaram os Gore-tex!...e o quão arredondadas ficaram as pontas dos piolets e crampons de tanta coquinada!) e recorrermos a todos os truques da nossa imaginação para fazer certos passos (e claro, usando toda e qualquer parte do corpo para superar certas passagens), lá conseguimos atingir o topo da parede, felizes por o fim-de-semana nos ter rendido 3 fantásticas vias de misto. Novamente recorrendo à lógica, apelidamos a ultima via de “Anatomia da tracção”.
Obrigada Pai Natal! Não, não estou chateada com a neve de merda com que nos presenteaste no fim-de-semana, quero é agradecer-te por nos mostrares que com vontade e imaginação, tudo é possível.
Daniela Teixeira