Capítulo 1
(por Fausto Castelhano)
Locais míticos do imaginário colectivo da população de Benfica, as Tabernas, Tascas e Casas de Pasto impuseram-se como espaços de sociabilidade importantes e onde prevalecia a genuína amizade e a convivência fraternal mormente, das classes sociais mais débeis mas que, ao cabo e ao resto, acabava por atravessar a totalidade dos diversos extractos sociais da sociedade da urbe… Ali assentavam quartel operários, empregados de diversas profissões, trabalhadores indiferenciados, trabalhadores rurais e todos quantos se abeirassem do balcão no intuito de acamaradar em paz e harmonia depenicando algo acompanhado d’um copinho de bom vinho nas beiças e paleio sem fim e onde o taberneiro, amigo e confidente, complacente com todos os fregueses e figura central do território, controlava todo o ambiente…
Óptimo ponto de encontro no final dum árduo dia de trabalho ou nos momentos de descanso e lazer, onde os amigos partilhavam alegrias e carpiam desilusões, discutiam interesses e preocupações do dia a dia, sentados nos bancos corridos ou em pé, repudiando cerimónias de qualquer espécie… Todos os temas serviam como argumento de animada conversa e onde, por vezes, eclodiam acesos debates sobre as mais variadas questões e onde a política tinha lugar primordial. Conspirava-se muito… e a valer… contra o poder instituído…
Fumava-se, sem proibições da Lei, os 'Definitivos' e os 'Provisórios', o 'Português Suave' e o 'Três Vintes', o 'Paris' e o famoso e baratucho 'Kentucky', o mata-ratos como era carinhosamente apelidado. Enrolava-se tabaco de onça da marca 'Superior' e papel de mortalha 'Conquistador' ou 'Zig-Zag'… Era assim! Fabuloso…
Através da rádio, escutavam-se, atentamente, e vibrava-se com a loucura dos relatos de futebol ou de hóquei em patins no tempo do Emídio Pinto, Raio, Edgar, Jesus Correia e do primo, Correia dos Santos e, um pouco antes, dos manos Serpa: o Sidónio e o Olivério, nossos conterrâneos, na voz inconfundível, e que se perde na memória dos tempos, do locutor Domingos Lança Moreira… A televisão e outras modernices do nosso dia a dia que invadiram, de modo avassalador, a nova era do audiovisual, ainda não tinham irrompido brutalmente em cena ou encontravam-se nos seus primórdios, fenómenos que, em larga medida, impedem o diálogo e a convivência entre as pessoas.
A “Fortex” na esquina da Estrada de Benfica com a Avenida Grão Vasco e frente à “Adega dos “Ossos”. A praça de táxis (reparem nos números dos telefones dos taxistas afixadas na parede do prédio), a bomba de gasolina da BP e, a seguir, a mercearia com venda de fruta. Um pouco mais à frente e onde se encontra um freguês sentado à porta, antes da Garagem Bemficauto (com o reclamo da Shell), uma taberna muito bem localizada (junto à paragem dos autocarros) e melhor frequentada. Entre a Garagem Bemficauto e a Escola Primária António Maria dos Santos, localizava-se o Expedidor da Companhia Carris de Ferro de Lisboa (onde os carros eléctricos da Carreira nº1 efectuavam a volta para a Rua Emília das Neves) e onde, mais tarde, foi construído o prédio amarelo com o nº 733, logo a seguir ao Centro Comercial Nevada.
As tascas e as tabernas, eram um mundo fascinante, exclusivo dos homens, fechado. Mulheres, ali, não se atreviam a colocar o chinelo. Nem é bom pensar em tal descaramento, era só o que faltava! Só para lá do balcão com tampo em madeira ou mármore, e sempre tratadas com o maior respeito e deferência: as esposas ou as filhas do taberneiro ou algum elemento feminino do seu agregado familiar…
O “Tasco” na Estrada de Benfica, nº 727/727F (frente à “Adega dos Ossos” e mencionado na foto anterior) a seguir à Fortex e à mercearia com venda de fruta e antes da Garagem Bemficauto, com a tabuleta da Shell (Onde, mais tarde seria edificado o Centro Comercial Nevada). Reparem nos fregueses a entrar… sedentos de um copinho de boa pinga! Tabernas e tascas na nossa Freguesia de Benfica, existiam muitas… e vinhaça do barril, oriunda das melhores procedências, também. Um regalo!
Exactamente ali, naqueles espaços de autêntica magia, onde se exerciam os honestos negócios de vinhos e petiscos tradicionais que, em torno dum copázio de vinho do barril e petisco apetitoso de sabor requintado a condizer, estabeleciam-se amizades duradouras e que se prolongavam pela vida fora…
Jogava-se, calmamente, ao dominó e às damas; empolgantes, as partidas da sueca ou à bisca de quatro, a copo de dois ou de três logo que se completava cada cruzeta, ou então, conforme o combinado, previamente, entre os parceiros da jogatina; renhidos, barulhentos e disputados palmo a palmo, os desafios de matraquilhos… As mesas de “negus”, uma variante do snooker, surgiram um pouco mais tarde e tornaram-se uma coqueluche.
“Casa de Pasto” de intocável reputação na Avenida Grão Vasco, nº 11 a 15 e óptima localização. Repare-se na tabuleta: “Casa de Pasto”.
Com os fregueses à porta, cá está a “Casa de Pasto” da Avenida Grão Vasco, nº 11 a 15, junto ao candeeiro de iluminação pública. Um pouco à frente e junto ao outro poste, a primeira paragem do eléctrico da carreira nº1 (onde os passageiros aguardam embarque) dos eléctricos vindos do Expedidor da Carris e após o curto trajecto da Rua Emília das Neves para a Avenida Grão Vasco.
O edifício da foto, na Avenida Grão Vasco, nº 21 a 27 está na calha. No prédio onde existia a “Casa de Pasto”, na Avenida Grão Vasco, nº 11 a 15 referido no texto e nas fotos anteriores, já foi demolido. O novel edifício que tomou o lugar do anterior está, praticamente, terminado e mais uma memória da Freguesia de Benfica, arrumou as botas… O poste, à direita, era a primeira paragem dos eléctricos da Carreira nº1 logo que curvavam da Rua Emília das Neves (vindos do Expedidor da CCFL) para a Avenida Grão Vasco.
P’ra fazer peito ou lastro, saboreavam-se os pequerruchos “carapaus de gato” fritos ou então, carapaus crescidos de escabeche, chouriças, pataniscas, torresmos, bacalhau frito, toucinho entremeado, azeitonas, atum ou sardinha de barrica, moelas estufadas, passarinhos fritos (um acepipe de primeira apanha), ovos cozidos, orelheira de porco, onde o alho pisado, o azeite e os coentros são imprescindíveis e lhe davam um sabor detrás da orelha, pratinhos de caracóis apaladados a orégãos, caldo verde picadinho, sopa à lavrador de garantida sustância, etc.
E, como se poderá imaginar, ainda o sol, um pouco relutante, não se resolvia a assomar no horizonte e já os portais das nossas tascas e tabernas se abriam p’ró mata-bicho dos fregueses madrugadores e a caminho da sua labuta diária…
Marco quilométrico junto ao Chafariz Grande das Águas Livres de Benfica e frente à antiga taberna do Sr. João: Lisboa: 8 Km a percorrer até aos limites da cidade de Lisboa, em S. Sebastião da Pedreira… Bons tempos...
(Foto de Fausto Castelhano – Setembro de 2010)
As “casas de pasto” diferenciavam-se das tabernas e das tascas por alguns pormenores primordiais: espaços amplos e serviço de almoços e jantares a preços convidativos, isto é, restaurantes à moda antiga.
Vinhos excelentes, petiscos de fazer crescer água na boca, a comida caseira farta e bem apaladada, ambiente cordial e a boa disposição eram ingredientes a ter em conta no prestígio das casas de pasto…
Junto à coluna de pedra, do lado direito da estrutura que enquadra o Chafariz Grande das Águas Livres, lá está o marco quilométrico que assinala a distância a percorrer até às Portas da Cidade de Lisboa: 8Km. Nem mais, nem menos...
(Foto de Fausto Castelhano – Setembro de 2010)
Vamos, então, retroceder aos anos 40, 50 e meados de 60 do Século XX e, tomando como referência central a Igreja Paroquial de Nossa Senhora do Amparo e numa área relativamente restrita da zona histórica da Freguesia de Benfica, convidar os nossos amigos a desenferrujar as articulações das gâmbias e revisitar as Tabernas, Tascas e Casas de Pasto típicas do burgo, as mais representativas no panorama da nossa comunidade…
Então, vamos deitar o pernil ao caminho e começar na Estrada de Benfica, no prédio com o nº 727/727F, antes da Garagem Bemficauto e junto à paragem dos autocarros e da praça de táxis ou seja, frente ao adro poente da Igreja e da “Adega dos Ossos”. Lá está ela, uma taberna localizada com vistas largas e frequentada por clientela certa, onde os bons vinhos, tintos e brancos, e as saborosas petiscadas faziam as honras da casa…
Um pouco mais à frente, viramos à direita e, na Avenida Grão Vasco, nº 11 a 15, próximo da primeira paragem dos carros eléctricos da Carris, depois do Expedidor e, sensivelmente, na enfiada da “Adega dos Ossos”, deparamos com uma conceituada Casa de Pasto onde, a preços módicos, se enfardava bem e se bebia melhor!
Dali, entramos na Estrada de Benfica e seguindo pelo passeio em calçada portuguesa, passamos pelo café “Paraíso de Benfica” do Sr. Madureira, pela entrada do Campo Francisco Lázaro (do Clube Futebol Benfica), o muro e o edifício do antigo Patronato Paroquial da Freguesia de Benfica e, depressa chegamos ao Chafariz Grande das Águas Livres… Uma sugestão: para quando a urgente reabilitação do notável monumento?
A taverna/carvoaria do Ti’Alfredo (à esquerda) e, no enfiamento da Travessa do Rio com a Travessa do Açougue, o prédio da Estrada de Benfica, nº 554 (Ao fundo): a taverna do Zé da Graça, nº 554A e, no 1º andar, os Estúdios da Foto Nice.
A taberna/carvoaria do Ti’Alfredo na Travessa do Rio. A porta à esquerda com o nº 10, é a entrada do prédio; a porta larga com o nº 8, a taberna e, a porta à direita da foto com o nº 6, a carvoaria.
A taberna e a carvoaria do Ti’Alfredo na Travessa do Rio, nº 6 e 10. A porta larga da esquerda, a taberna. A porta à direita, a carvoaria. O magnífico prédio que existia à direita e fazia gaveto com a Estrada de Benfica (e onde, no rés-do-chão, estava instalada a loja da "Singer"), já fora arrasado na voragem do camartelo.
E, já agora, não esquecer que, exactamente deste ponto e até às antigas Portas da Cidade de Lisboa (1), em S. Sebastião da Pedreira, distavam 8 Km… Nem mais! O histórico marco quilométrico, em pedra, por enquanto ainda lá permanece, certamente devido a simples milagre do acaso! Se pudesse e pela sorrelfa, já o tinha rapinado evitando que um dia vá cair nas garras de um qualquer gang de traficantes gananciosos.
A carroça do “petrolino” de tracção cavalar, estacionado na Travessa do Rio, frente à carvoaria do Ti’Alfredo. Venda ambulante de azeite, petróleo, etc. À direita, o portão de acesso ao palacete do Visconde Sanches de Baena, Travessa do Rio, nº 1.
Ultrapassamos o início da Estrada das Garridas, o enorme complexo do Laboratório Nacional de Patologia Veterinária (actualmente, Laboratório Nacional de Investigação Veterinária), mas nos finais do Século XIX, o edifício emergia como Hotel Mafra…
O restaurante “A Travessa” na Travessa do Rio, onde outrora existia a taberna/carvoaria do Ti’Alfredo. (Foto de Fausto Castelhano – Setembro de 2010)
Um pouco mais à frente, a capelista do Sr. Capelo, o prédio do Centro de Trabalho do Partido Comunista Português e, entre a barbearia do Sr. Neto e a drogaria do Sr. Júlio ou do “Careca”, como amigavelmente o alcunharam, a pequena taberna do “Loureiro”, onde um raminho do conhecido arbusto com o mesmo nome, tempero imprescindível na cozinha lusa, permanentemente dependurado na ombreira do tasco anunciava, tal e qual como reclamo a néon, “Aqui vende-se pinga de estucha”.
Porém, e segundo reza a tradição, as folhas de loureiro teriam uma outra meritória função: disfarçavam o hálito a vinhaça quando os fregueses regressavam a casa. E então, retiravam uma folhinha do aromático loureiro e iam mascando pelo caminho… e pronto! Pelo menos, estava salva a honra do convento e safavam-se dos ralhos da ordem: “Homem! Nunca mais ganhas tino nessa cabeça! Andas sempre metido nos copos, meu desgraçado!”
Meia dúzia de passos andados e, à direita contornamos o edifício de gaveto e entramos na Travessa do Rio. Ao fundo, o pequeno gradeamento que a separava do curso de água que, na década de 60 do século XX, resolveram encanar até ao rio Tejo, passando, seguramente, pela ETAR da Avenida de Ceuta.
O restaurante “A Travessa”, na Travessa do Rio. A fachada do prédio sofreu uma alteração de monta: a porta da carvoaria (à direita) foi fechada e transformada numa janela. O interior, foi todo escavacado e não reflecte o encanto do local d’outros tempos.
(Foto de Fausto Castelhano – Setembro de 2010)
Era exactamente aqui, a meio deste curto arruamento da nossa freguesia de Benfica que encontramos um estabelecimento de referência: a taberna/carvoaria do Ti’Alfredo, um homem de boa cepa e simpatia sem limites p’ra todos os clientes e onde a franca disposição estava estampada no rosto bonacheirão… Brancos e tintos das melhores regiões e petiscos de harmonia com a boa pomada.
Brasão de Armas do Visconde Sanches de Baena que encimava o palacete do mesmo nome edificado no século XIX na Estrada de Benfica. O edifício formava gaveto com a Travessa do Rio.
Matraquilhos, jogo de cartas, dominó, “négus”, onde a rapaziada se entretinha por largo tempo. Este simpático local, a par da taberna do Sr. João, no gaveto da Estrada de Benfica com a Rua dos Arneiros (antiga Travessa dos Arneiros) reunia as nossas preferências… Tudo à maneira! Que saudades, meu Deus!
Palacete do Visconde Sanches de Baena na Estrada de Benfica, 609 a 613 e o gradeamento em ferro ao longo de todo o edifício.
Na porta ao lado e fornecida dos melhores produtos do ramo, frequentada por vasta clientela, a carvoaria: comércio de carvão, bolas de coque, petróleo e similares… Um grande negócio, sem dúvida!
A fachada do prédio sofreu alterações de monta, porém e no essencial, mantém a fisionomia d’um tempo que já passou. Actualmente, o espaço está transformado num banal restaurante como tantos outros que infestam a nossa freguesia… mas com pretensões p’ró finaço: Restaurante “A Travessa”.
Umas passadinhas e voltamos à Estrada de Benfica. Agora estamos no início do gradeamento em ferro do estupendo palacete do Visconde Sanches de Baena. Correspondemos ao aceno do Sr. Zé da Graça, lá está ele à porta da taberna, do outro lado da rua: Olá, Sr. José da Graça! Muito bom dia para si…
Bom, vamos parar por aqui e descansar um pouco… Depois, seguimos…
Continua…
NOTAS:
(1)-
Os limites da cidade de Lisboa
Estrada da Circunvalação de Lisboa
Origem:
Wikipédia, a enciclopédia livre.
O nome "Estrada da Circunvalação" designou sucessivamente no século XIX duas estradas correspondentes aos limites do município de Lisboa.
Em 1852, uma estrada assim designada circundava os limites da cidade de Lisboa, começando em Alcântara, na zona da Triste-Feia, subindo a Rua Maria Pia, Rua do Arco do Carvalhão, e passando por São Sebastião da Pedreira na zona da Rua Marquês de Fronteira. Atravessava ainda a zona das Avenidas Novas, troço destruído pela criação das mesmas, pela zona da Avenida Duque de Ávila/Saldanha, e descia outra vez pela Rua Visconde de Santarém, Rua Morais Soares e Avenida Afonso III.
Em 1886, com a expansão do município de Lisboa, foi criada uma nova Estrada da Circunvalação que definiu o actual limite geográfico do Concelho de Lisboa, desde Algés (Portas de Algés), ao longo de Monsanto, pelas Portas de Benfica, Camarate, até descer novamente até ao Tejo na zona do actual Parque das Nações. Esta Estrada da Circunvalação, por sua vez, agrupava a Estrada da Circunvalação Fiscal - que ligava Algés a Benfica, limitando o concelho de Lisboa a ocidente - e o lanço de Benfica a Sacavém da Estrada Militar - que interligava as fortificações do Campo Entrincheirado de Lisboa.
Esta última Estrada da Circunvalação é uma via que, fisicamente já quase desapareceu, com vários dos seus troços incorporados ou substituídos em outras vias mais modernas, tais como a CRIL/IC-17 no lado ocidental.
[editar] História
A importância desta estrada na delimitação dos limites administrativos, fiscais e territoriais do Concelho de Lisboa é bem patente em vários decretos na segunda metade do século XIX, o que indica a existência de um caminho anterior importante.
Em 1885 é extinto o concelho de Belém (artigo 226.º da Lei de 18 de Julho) e o limite geográfico de Lisboa, até então localizado no Vale de Alcântara, avança para oeste, até Algés. Lisboa passa a ocupar toda a zona ribeirinha, de Sacavém até à Ribeira de Algés. Benfica será divido, com a parte interior à Estrada da Circunvalação integrada em Lisboa e a parte exterior em Oeiras.
No ano seguinte, o Decreto de 22 de Julho de 1886, reformula as fronteiras de Lisboa para o interior, como se pode ler no seu artigo 1.º:
"O município de Lisboa será limitado desde Algés até Bemfica pela estrada de circumvallação fiscal, e desde Bemfica até Sacavém pela estrada militar ou qualquer variante que nesta se faça para facilitar o serviço fiscal."
Uma nova estrada começa a ser construída em 1886, mas só ficará concluída em Novembro de 1903. Alcatroada em meados do século XX, mantém o seu percurso sinuoso e estreito até meados de 1992, quando se iniciam os trabalhos da CRIL/IC17, que em grande parte da sua extensão tem um traçado quase coincidente com o da antiga estrada.