A Surra
Dois anos depois que me mudei para Araguari/MG, vinda de Aracajú/SE, comecei a trabalhar como caixa do restaurante de um posto na rodovia BR 050, a menos de 1 quilometro da cidade – Na época um dos melhores entre Uberlândia e Brasília. Eram 3 turnos. O primeiro começava às 7hs e terminava às 15hs, o segundo das 15hs às 23hs e o último começava às 23hs e ia até a chegada do pessoal do primeiro turno. A cada semana éramos escalados para um turno diferente.
Naquele
dia eu estava na madrugada, devia ser perto das 2hs da madrugada, quando chegou
o tal Pablo no restaurante para comprar cerveja.
Quando
Pablo passou pelo caixa, que ficava bem na entrada e também era a saída do
restaurante, não havia nenhum cliente, nem na lanchonete. Somente nós
funcionários que além de mim, contava com o gerente Geraldo, duas balconistas e
o Andrei que fazia os salgados e pilotava a chapa de fazer sanduiches.
Como
a lei não permitia a venda de bebidas alcoólicas depois da meia-noite em
restaurantes localizados fora do perímetro urbano, a garota da lanchonete não
entregou o pedido ao cliente que ficou muito nervoso, xingou, bateu no balcão,
fez um verdadeiro escândalo. Ela então, sem mais argumentos, pediu para que ele
falasse com a caixa. Pablo veio até a mim e repetiu o pedido. Eu, educadamente,
expliquei o motivo que não poderíamos vender a ele a cerveja que ele tanto
queria. Pablo começou a me insultar de uma forma muito violenta e barulhenta.
Batia na mesa muito nervoso e me xingando de tudo que era nome. Como não cedi,
ele foi conversar com Geraldo, que também não autorizou a venda da bebida.
Pablo
foi embora ameaçando, dizendo que não sabiam com quem estávamos mexendo, que
voltaria e quebraria tudo ali.
Geraldo
me contou quem era o tal rapaz de 1,85m aproximadamente e fisicamente
simpático, mas com aquele temperamento insuportável.
Era
muito conhecido na cidade pelas muitas confusões que costumava se envolver.
Contou que depois que estava “alto”, saia pela cidade arrumando confusão,
quebrando bares ou procurando algum motivo pra brigar com alguém. Seu pai - um
advogado bem conceituado e só não melhor de vida pelos prejuízos que o filho
costumava lhe render.
-Agora
fiquei com medo! - Disse a Geraldo.
Geraldo
tinha um sério problema de saúde. Seu frágil coração poderia parar a qualquer
momento.
Eu
já tinha me esquecido daquilo e já passavam das 3 da manhã quando eu dava um
belo cochilo, usando o balcão como travesseiro, sonhando e até babando, quando
um tiro me acorda. Era Pablo novamente.
Despertada
daquela maneira, com a poeira do forro caindo sobre mim pela ação da bala
daquele “trêsoitão”, meu coração batia tão forte que pensei que ia explodir.
-
E aí? Vai me vender a cerveja ou não? – perguntou Pablo
-
Quantas caixas o senhor vai querer? – respondi
-
Vou bater em todo mundo aqui, vocês são todos uns filhos da puta!
Pablo
foi ao encontro de Geraldo e começou a empurrá-lo ameaçando: “você vai apanhar
muito agora, seu gerentinho de merda!”. Só que ele cometeu um erro de amador:
deixou a arma em cima do balcão do caixa.
Eu
olhei praquilo, o capeta atentando de um lado, o santinho aconselhando do
outro...ouvi o santinho e deixei a arma indo para onde eles estavam quase
começando uma briga. Briga não porque o Geraldo não fez nenhum movimento pra se
defender dos empurrões. Toquei as costas do Pablo e falei com toda a coragem
que tomava conta de mim naquela hora:
-
Moço, não faz isso não, ele tem problemas de coração...pensa direito, você está
sendo precipitado, vamos vender a cerveja e você pode ir embora em paz, deixa
disso!
Então
ele se virou e gritou: “cala a boca piranha que é por você que vou
começar!” e me pegou pelo pescoço me levantando. Meus pés ficaram a
meio metro do chão. Eu - com meus 1,61m – que nunca fui de correr de uma briga,
resolvi extrair, lááááááá do funnnnndo, o macho reprimido que existia dentro de
mim e fazia tempo que não saia (num bom sentido). Pablo apertava tanto e com
tanta força que se eu não reagisse naquela hora eu perderia os sentidos. Já
estava ficando difícil pra respirar.
Então
envolvi sua cintura entre minhas coxas e levei uma das mãos por trás da minha
bunda e por entre as minhas pernas e consegui pegar em duas azeitonas que,
tenho certeza, apesar do meu macho interior ter aflorado, não pertenciam a
mim.
Quanto
mais ele apertava o meu pescoço, mais eu apertava as duas bolinhas que estavam
bem guardadas em minha mão.
Pablo
foi se ajoelhando devagar até que caiu, pra minha sorte, de costas pro chão e
por baixo de mim. Foi quando me soltou, aí apertei com um pouco mais de força
que veio não sei de onde, em um último esforço para que ele não se levantasse,
até que eu também soltei aquilo e já fui virando a mão fechada na cara dele.
Em
um dos meus dedos eu usava um anel que eu adorava e tinha uma pequena pedra de
bijuteria que imitava um brilhante. O anel voltou só com as garrinhas, depois
do primeiro soco na cara do cliente da Skol. A minha querida pedrinha, que eu
jurava ser um diamante, deve ter se alojado em algum lugar do rosto dele.
Ele,
sem nenhuma reação, ali no chão e eu ainda em cima com as pernas uma de cada
lado do corpo dele.
Eu
não parava de bater, uma coisa já tinha tomado conta de mim e eu batia, batia,
batia... Já estava pegando gosto pela coisa quando me retiraram muito contra a
minha vontade de cima do camarada. Não sei quantos eram os que me puxaram, sei
que não foi só uma pessoa.
Naquele
momento chegaram dois amigos dele, que foram pra impedir que ele fizesse alguma
coisa. Tarde demais, ele já havia feito... apanhado muito.
Eles
o pegaram, todo cheio de sangue, meio que arrastando porque não conseguia ficar
de pé e se foram.
Minha
comissão pela venda das latinhas de Skol foi acompanhando aqueles três!
Minha
mão doía muito agora.
Fiquei
ali esperando o outro turno chegar para ir embora. As horas não passavam, eu
doida pra sair logo dali, com medo que alguém voltasse e fizesse alguma coisa
comigo e com meus colegas.
A
arma, que estava no balcão quando deixei o caixa, ninguém deu notícia. Não sei
se a levaram, mas ela não estava mais lá.
Aquele
“paradão” foi quebrado por um carro de polícia - era muito comum que eles
fossem em nossa lanchonete para comer alguma coisa ou conversar com a gente pra
ver se estava tudo bem por ali, só que dessa vez a visita teve outro motivo:
-
Cadê a Gangue que destruiu o rapaz do pronto-socorro? - Perguntou um dos
policiais.
Todos
que estavam naquele lugar se viraram juntos e apontaram pra mim dizendo: “foi
a Baiana!”.
Aquele
coro em “Si bemol” era tão afinado que parecia de integrantes daquelas
“capelas” de igreja americana que vemos nos filmes, onde cada voz entoa uma
nota da escala e juntas formam um acorde perfeito.
Pra
mim, aquela apresentação musical cheirava a barras de ferro maciço separadas
por apenas 10cm, com uma pequena porta e um enorme cadeado que nem o mais
robusto dos super-heróis conseguiria romper.
O
policial me olhou de cima a baixo surpreso pelo meu tamanho diante daquele que
tomou a surra, dizendo que a história que ficara sabendo era bem diferente: Os
autores do Boletim de Ocorrência – aqueles dois que chegaram quando o cara já
se encontrava semi-consciente e agora era residente temporário do hospital –
disseram que a vítima quase foi linchada por uns 10 homens e se não chegassem a
tempo, agora estariam em uma funerária e não em um pronto-socorro.
Pela
situação que se encontrava o rapaz, ele tinha que acreditar naquilo.
Esses
10 homens que eles quase descreveram à policia, devia ser aquele que estava
enrustido em meu interior e devia ter freqüentado alguma academia de luta e
musculação enquanto se refugiava lá.
O
Geraldo narrou ao policial o que havia acontecido: que o cara chegou armado e
atirando pra cima, mostrando o buraco que a bala fez no teto do restaurante e
falou das ameaças que ele fez aos funcionários e tal.
O
policial se segurando para não rir e olhando pra mim disse:
-
Terá que me acompanhar à delegacia!
Eu
não achava graça nenhuma naquilo.
No
caminho da delegacia, dentro da Veraneio, mas no banco de trás e sem algemas,
me disseram que o pai da vítima era muito influente na cidade e que isso
poderia complicar minha situação. – Não, isso não acontece no meu Brasil, claro
que não! - Faziam uma pressão enorme para saber da verdade que, na opinião
deles, deveria ser outra.
-
Foi você mesma quem fez aquilo? Não precisa assumir se não for! – Disse o
policial ainda duvidando daquela história.
Pra
mim - que já tinha enfrentado uma pessoa furiosa que chegou armada e atirando,
durante o meu trabalho e ainda interrompendo meu cochilo - não custava nada
incomodar mais uma vez o Rambo adormecido em seu aconchegante lar, respondi:
-
Faz o seguinte seu guarda: quando ele sair do hospital o Sr. Pergunta pra ele.
Se ele tiver a mesma coragem que demonstrou lá no restaurante, o Sr. fica sabendo a
verdade. – Disse irritada.
Não
me perguntaram mais nada até chegarmos à Delegacia.
Eram
umas 5hs da manhã quando fui convidada a entrar na sala do delegado de plantão
que já me aguardava com outra pessoa sentada atrás de uma máquina de
datilografia.
-
O que aconteceu? – perguntou o delegado que conhecia a “vitima” e já tinha
livrado a cara do safado por diversas vezes a pedido do pai e já estava cansado
daquelas situações.
-
Que fúria foi essa?
E
continuou me dizendo o estrago que eu tinha feito no rapaz:
-
Ele fraturou o nariz, duas costelas e os testículos do rapaz estão do tamanho
de uma laranja da terra! - Segundo o Delegado, aquele episódio poderia resultar
no fim da nobre linhagem da família. Disse ainda que ele ficaria uns 2 dias em
observação no hospital onde faria alguns exames pra constatar algum dano
interno, se houvesse.
Até
agora eu não tinha me dado conta da dimensão do estrago que fiz.
Tentando
amenizar minha pena que, pelo relato do delegado, imaginei que poderia ser de
prisão perpétua, perguntei:
-
Tem certeza que esse aí que o senhor está falando não é outro? Pelo que o
senhor me falou esse aí poderia ter sido atropelado por um trator. O rapaz que
nos visitou eu só dei uns beliscões e não me parecia tão ruim assim quando saiu
acompanhado dos amigos, estava até abraçado a eles! – como se o coitado tivesse
outra alternativa.
Contei
tudo novamente ao Delegado que ele riu muito - acho que ele ria mais pelo meu
sotaque nordestino que ainda era muito carregado e pela forma que eu contava
aquilo.
Quase
sempre converso muito rápido e, enquanto eu prestava o depoimento, o outro que
também se encontrava na sala, batia desesperadamente no teclado daquela máquina
de datilografar.
Antes
que eu pudesse ler o depoimento para assinar, chega o Sr. Écio – proprietário
do posto, que também era muito rico e influente – acompanhado de um advogado.
-
Vamos embora daqui! – disse a mim.
Conversou
um pouco com o Delegado e saímos dali sem nem mesmo eu ter assinado o meu
depoimento.
Na
saída, o Delegado me chamou uma última vez, pegou na minha mão e disse: “você
fez o trabalho que deveria ter sido do pai daquele moleque arrogante. Parabéns!"
– naquela hora eu até dei um sorriso, meio sem graça, mas dei.
O
Sr. Écio pediu para que eu ficasse em casa por alguns dias, temendo
represálias.
Quando
voltei ao trabalho, depois de uma semana, me disseram que todos os dias
aparecia um rapaz com o rosto todo enfaixado e andando meio encurvado, quase
que só com os olhos à mostra, a minha procura.
Confesso
que temi pela minha integridade física, mas como eu precisava do emprego, tive
que me arriscar trabalhando lá, mas não voltei mais para o turno da madrugada.
Alguns
dias depois, chega no restaurante um senhor de terno e gravata me procurando.
Apresentei-me e ele disse ser o pai do Pablo - “agora me ferrei”, pensei.
O
pai do rapaz veio conhecer quem tinha dado aquela lição ao filho e me dizer que
a vida da sua família tinha mudado à partir daquele momento. O garoto não saia
mais de casa - provavelmente por vergonha dos comentários dos amigos - e que
tinha resolvido estudar fora da cidade. Para eles aquilo foi um alivio porque
ele parara de dar tanto prejuízo, o do hospital seria o ultimo até aquele
momento.
Depois
de anos fiquei sabendo que Pablo era uma pessoa regenerada e que seguia a
carreira do pai, foi candidato a vereador da cidade e até venceu as eleições de
tão querido que se tornara.
O
meu amigo “Rambo” só apareceu mais uma vez desde a surra que deu em Pablo e no
mesmo restaurante, dessa vez para uma colega de trabalho, o que resultou na
minha demissão, mas isso....é uma outra história.