Há dias em que as nossas vivências nos fazem sentir muito pequeninos e vulneráveis.
Logo de manhã, ao ler as notícias, sou confrontado com um merecido elogio fúnebre de um sinistrado do trabalho que conheci muito bem e com o qual participei em várias reuniões, simpósios, cursos e outras actividades no âmbito da Segurança, Higiene e Saúde no Trabalho. Uma pessoa humilde, mas dotada de uma força e forma de estar que faz inveja a qualquer um. Um verdadeiro activista naquilo que esta designação tem de mais nobre. Tinha morrido há pouco tempo de acidente e eu não soube. Fiquei muito triste.
Estava a preparar-me para sair de casa quando ouço os gritos de dor de um cão à minha porta. Apercebi-me que tinha acontecido algo à minha velha cadela. Foi atropelada no passeio por um carro que subia a rampa para a estrada. Corri esperando o pior e vejo o animal debaixo do pára choques do carro sem se poder mexer. Pedi ao senhor que recuasse e levei-a para casa para a examinar. Tremia e gemia com dores e não conseguia poisar a pata dianteira. Fiz algumas manobras e apercebi-me que talvez tudo não passasse de contusões mas acabei por a levar ao veterinário. Em princípio tudo vai correr bem. A Boneca, que já está muito velha - vai fazer 18 anos – sofre de cataratas e de surdez, não se desviou do veículo, mas é uma grande companheira e amiga. Preocupa-me o comportamento de alguns condutores daqueles prédios que habitualmente se lançam pela rampa sem os cuidados necessários. Senti uns frémitos muito difíceis de explicar ao ouvir aqueles gritos de sofrimento.
Mas o dia não ficou por aqui. De manhã, ainda observei alguns trabalhadores. Houve dois que me chamaram particularmente a atenção, um homem e uma mulher a entrarem na casa dos cinquentas. O primeiro apresentava um conjunto de alterações, as quais me levou a questioná-lo por que razão não as tratava devido aos riscos que comportavam. Respondeu-me que havia coisas piores. Recostei-me. Senti que o homem queria desabafar. Contou-me o falecimento por doença maligna da sua esposa há poucas semanas. Descreveu o caso de uma forma dolorosa e das dificuldades que ele e os filhos estavam a passar. Ouvi. Ouvi em silêncio. Eu sei que as pessoas nestas circunstâncias gostam que as ouçam. A seguir, entra uma senhora com um gorro antiquado e um ar meio confuso. Vinha fazer um exame de medicina do trabalho depois de ter estado de baixa durante mais de trinta dias, como manda a lei. Perguntei-lhe, naturalmente, o que é que lhe tinha acontecido. Respondeu-me: - Fui operada a um tumor do estômago e agora ando a fazer quimioterapia. Enquanto me relatava o acontecido entregou-me os relatórios e exames. Verifiquei que o último hemograma apresentava uma anemia muito grave. Explicou-me que já tinha levado uma transfusão para aguentar o próximo ciclo. - E quer ir trabalhar? - Quero, Senhor Doutor! Enquanto estou a trabalhar não penso na doença e sinto-me útil. Os meus colegas são excepcionais. – Muito bem! Dei um parecer adequado às circunstâncias. Mas vi, que a senhora queria falar. É fácil fazer falar uma doente nestas circunstâncias. E falou. Falou dos filhos, de si, da família, dos amigos, do futuro e da luta que tinha pela frente. Ouvi. Ouvi, usando um velho e cúmplice silêncio que os doentes gostam de sentir, talvez porque não se utiliza lugares comuns ou coisas banais. O silêncio e o olhar para as pessoas transmite respeito, compreensão, solidariedade e amor.Estava a preparar-me para sair de casa quando ouço os gritos de dor de um cão à minha porta. Apercebi-me que tinha acontecido algo à minha velha cadela. Foi atropelada no passeio por um carro que subia a rampa para a estrada. Corri esperando o pior e vejo o animal debaixo do pára choques do carro sem se poder mexer. Pedi ao senhor que recuasse e levei-a para casa para a examinar. Tremia e gemia com dores e não conseguia poisar a pata dianteira. Fiz algumas manobras e apercebi-me que talvez tudo não passasse de contusões mas acabei por a levar ao veterinário. Em princípio tudo vai correr bem. A Boneca, que já está muito velha - vai fazer 18 anos – sofre de cataratas e de surdez, não se desviou do veículo, mas é uma grande companheira e amiga. Preocupa-me o comportamento de alguns condutores daqueles prédios que habitualmente se lançam pela rampa sem os cuidados necessários. Senti uns frémitos muito difíceis de explicar ao ouvir aqueles gritos de sofrimento.
Depois do almoço, apareceu-me uma doente que tinha faltado na semana anterior. Senhora de alguma idade, simples, muito simples, entrou a pedir desculpa por não ter vindo. Disse-lhe que não tinha qualquer importância. Mas depressa explicou a razão. A filha de 46 anos que estava internada no IPO tinha falecido. Eu já sabia da história, não da morte, mas da doença. Falou com desenvoltura, explicando alguns pormenores sem querer demonstrar emoções. Pensei: - Daqui a pouco vais começar a chorar. É impossível manter a postura por mais tempo. E assim foi. Depois, permiti, muito naturalmente, dar-lhe todo o tempo do mundo para falar, para desabafar, para contar. Ouvi. Ouvi em silêncio, não deixando de a olhar. Ainda vi uma senhora de oitenta e muitos anos cujo marido faleceu há poucas semanas e que tinha a esperança de vir a comemorar os setenta anos de casados. Ouvi. Mais uma vez ouvi em silêncio e a senhora saiu muito agradecida e mais confortada.
Por que é que eu conto tudo isto? Porque também tenho necessidade que me ouçam, mesmo que seja em silêncio..
Obrigado.