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domingo, agosto 09, 2015

A Razão de Barro, o Progresso de Ferro e o Syriza



Desconfio que já pouca gente conhece a fábula da Panela de Barro e da Panela de Ferro.
Foi contada pela primeira vez, julgo eu, por La Fontaine no século XVII, e traduzida para português, pelo Padre Nascimento que nessas coisas de letras assinava Filinto Elísio.
A história é simples, a panela de barro não queria ir passear porque receava qualquer percalço:
"- Iria com prazer", explica ela na versão de Filinto Elísio, "mas sou tão delicada, que se acaso num seixo ou tronco esbarro, lá fico esmigalhada."
Mas a panela de ferro garante:
"- Se é só por isso, podes ir comigo; é medo exagerado o teu - contudo, se houver qualquer perigo,  serei o teu escudo."
A panela de barro lá se deixou convencer e partiram as duas, lado a lado, num agradável passeio pelos campos. 
Como era, talvez, de esperar, "numa vereda estreita, eis que se tocam - e a de barro é feita, coitada, em mil pedaços!"
E lá vem a moral da história, porque uma fábula é isso mesmo: um conto de proveito e exemplo:
"Para sócio não busques o mais forte", escreve Filinto Elísio, "que te arriscas de certo à mesma sorte!"
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Claro que já toda a gente se lembrou desta fábula a propósito da Alemanha e da Grécia e da sociedade em que entraram estes pequeninos países - o nosso incluído - julgando-se protegidos por aquelas nações muito avançadas, muito desenvolvidas, muito felizes.
Não eram esse desenvolvimento e essa felicidade uma forte e pesada panela de ferro que nos serviria para sempre de escudo? E não éramos nós, na nossa pequenez e na nossa fragilidade umas mínimas caçarolas de barro a precisar do generoso apoio dos grandes? Éramos.
Mas a generosidade é assim mesmo, quando acontece é muito bonita. Mas quem se fia na Virgem e não corre é burro.
Agora, pronto. Para aqui andamos a tentar juntar os "mil bocados" de que éramos feitos. Alguns perderam-se para sempre. Outros desfizeram-se em pó, como se o nosso barro antigo se estivesse a esboroar.
Não sabemos sequer se ainda acharemos cimento bastante no banco central europeu - ou, na pior das hipóteses, nas nossas alminhas tristes - para colar os cacos.
Mas esta é apenas uma das lições que a fábula nos pode ensinar. Afinal qualquer um pode encarnar a personagem «panela de barro» e achará com certeza inúmeras «panelas de ferro» que pode fazer suas.
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Voltemos à generosidade.
Afinal, o que aconteceu a essas nações, à Inglaterra, à Alemanha e, antes de todas, à França, pátrias do iluminismo, ansiosas por trazer ao Mundo a luz das suas civilizações? Não foram elas quem descobriu conceitos tão belos como o governo esclarecido, para o bem do povo, mesmo se exercido por um déspota? E os direitos naturais que viriam a resultar na Declaração dos Direitos, na fórmula simples e generosa que foi a divisa da França: a Liberdade, Igualdade e Fraternidade? O que aconteceu foi simples: apostaram numa coisa a que se chamou, provavelmente por falta de melhor termo, o progresso.
Compreende-se: toda a gente, e não é preciso nomear o Descartes nem os Enciclopedistas, toda a gente portanto, reconhecia que a Razão, essa capacidade que têm os humanos de estabelecer relações lógicas e assim chegar à causa das coisas, poderia igualmente tirar todas as consequências: passado, presente e futuro estavam escritos no Grande Livro da Natureza, com caracteres matemáticos, disse o Galileu.
Para resolver toda e qualquer questão, fossem problemas da fé e das religiões, fossem os da máquina a vapor, ou ainda os do bom governo dos povos, o simples encadeamento lógico das afirmações de que as matemáticas são um bom exemplo, seria bastante, mais cedo ou mais tarde, para chegar à verdade - e, consequentemente, ao Bem - porque o Bom, o Belo e o Verdadeiro andam de mãos dadas.
Foi o que se pensou durante muito tempo. Alguns como nós, mais ingénuos, diria eu, que também tivemos de tomar o nosso copinho de cicuta quando os senhores deste baixo mundo acordavam mal dispostos.
Havia, porém um problema que já Descartes apontara quando proferiu o seu penso, logo existo, "a única verdade talvez certa", no comentário ferino do Zé Fernandes em A Cidade e as Serras. 
É que a razão, com os seus princípios lógicos, com as suas regras todas elas bem estabelecidas, lida com juízos que são feitos de conceitos e encadea-los-á com toda a segurança. Mas só conduzirá à verdade se esses conceitos trouxerem já consigo também a verdade. Não é assim?
É um pouco como se tivéssemos aqui um par de cabazes, além outro par e concluíssemos que, sendo que três e dois são cinco, tínhamos no total cinco cabazes.
É verdade que três e dois são cinco. O que já não o é assim tanto é que uma das parcelas fosse «três cabazes». Mas, se tentares dizer que não, que só tens quatro cabazes, demonstram-te simpáticos, com muitas regras da álgebra, que dois mais três é mesmo cinco.
É essa a grande fragilidade da Razão.
Os informáticos conhecem-na bem e, quando nos ensinam a programar - ou, tão só a usar - os computadores, não se esquecem de nos avisar: «o que entra é o que sai». E, malcriadissimamente, acrescentam: «Se entra merda, sai merda».
É o mesmo com a Panela de barro.
Coze magnificamente, mas não tem a capacidade de escolher os ingredientes que lhe atiram lá para dentro.
Resultado: a sopa, a maior parte das vezes, acaba por sair uma porcaria. Pudera: o que lhe atiram lá para dentro é que o produz desenvolvimento, dinheiro, coisas úteis, prazeres, distracção... progresso, em suma.
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Não vale pena, portanto, quando vemos um noticiário na televisão a pena dizer que este mundo enlouqueceu, que atravessamos um período de irracionalidade ou que a Razão está morta.
Também no século XIX se proclamou «Deus morreu!» ou que «a religião é o ópio do povo». E se olharmos em volta, aí está a religião, mais viva do que nunca e com acessos de crueldade como sempre teve. E Deus, de tal maneira nos transcende, que continuamos a não poder afirmar com alguma dose de certeza que alguma vez existiu, quanto mais que morreu.
Com a Razão outro tanto se passa: para qualquer lado que se olhe, lá está ela: o produto que lhe encomendam chama-se, uma vezes ciência, outras tecnologia.

Parece que essas coisas são parte integrante, fundamental mesmo, do tal «progresso», mesmo quando se trata de tecnologias de morte, tão racionais como as bombas teleguiadas, os drones, as cadeiras eléctricas ou os fornos de Auschwitz.
À Razão propriamente dita, proíbem-lhe que se ocupe do bom governo dos povos, quer dizer: proíbem-na de questionar os seus próprios fundamentos.
Querem um exemplo?
Todos nós achamos que é racional que os automóveis modernos tenham cintos de segurança e tenham airbags. Muitas vidas se têm salvo quando ocorre um acidente a altas velocidades, não é verdade?
Mas não seria mais racional ainda que não se construíssem automóveis que atingem duzentos e muitos quilómetros hora, que exigem dispendiosas autoestradas onde não se pode passar dos cento e vinte?
Pois é: esqueçam essa treta de que a Razão morreu.
Está viva e bem viva: infelizmente está acorrentada à panela de ferro do progresso.
Como a esmagadora maioria de nós, não passa de uma escrava, mais uma entre tantos outros. Ou vá lá, para não nos esticarmos muito: foi domesticada e está ali amarrada à sua casota. Só tem direito de morder quem o dono considerar «intrusos».
O Syriza, por exemplo.

terça-feira, junho 23, 2015

OS DIAS DE CATARINA, hoje excepcionalmente, à noite

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Tenho uma relação péssima com a televisão.
Os comentadores irritam-me, grandemente porque nunca dizem nada de novo. Repetem, repetem, repetem. 
Os políticos, salvo aquelas excepções mesmo excepcionais, interrompem-se uns aos outros, tentam gritar ainda mais alto do que o opositor e repetem, repetem, repetem o discurso do caudilho mais caro aos seus ressequidos corações.
E eu, quando os oiço a debitar, a debitar, a debitar, zás! Mudo de canal.
Mas, helas! A maior parte das vezes os canais o que nos dão, quando não são casas dos segredos ou concursos idiotas, são crimes, violações, facadas, pancadaria de criar bicho.
Há dias, por um daqueles acasos que acontecem, calhou-me assistir ao rapto de uma menina de uns onze, doze anos, amarrada e pendurada pelos pulsos para a qual um energúmeno armado de facalhaz avançava cheio de más intenções: torturá-la até à morte, por exemplo. Graças a Deus e ao produtor da série, a bófia gentil apareceu aos tiros e salvou a menina.
Não sei se alguma das nossas filhas ou netas que acidentalmente tenha visto o episódio, conseguiu dormir nessa noite.
Resta procurar os programas infanto-juvenis. Mas, oops! 
Estão cheios de ninjas, uns que nos dizem serem os bons e que dão socos e pontapés na cara dos outros que, esses, são os maus: derrubam prédios de apartamentos com as as suas máquinas infernais, pisam os automóveis da civilização e vêm cheios de vontade de destruir o universo inteiro. 
E aqui há uns dias, num desses canais, por acaso o que costuma ser mais inofensivo, passou uma história em que, imagine-se, um juvenil toureiro, de estoque em punho, matava o seu toiro! Não assistíamos propriamente à execução do animal. Mas assistíamos ao risinho pimpão do toureirinho, orgulhoso do seu feito.
Pronto!
Resta a música clássica da Mezzo, pelo menos até à hora em que ela se transforma em jazz. Depois, olha, acabou-se. 
Que se há-de fazer?