Vivo em São Domingos de Rana. Trabalho no Barreiro.
São aproximadamente 50 km , 2 horas de viagem (i.e., 100 km em 4 horas diárias) em 4 transportes públicos (TP).
E já que falo de números, em 9 anos, e durante quase 9000 horas já percorri aproximadamente 220.000 km em transportes públicos, o que significa que já dei quase 6 voltas ao nosso planeta (que tem um perímetro aproximado de 40.000 km). E isto só contabilizando o tempo em que trabalho no Barreiro, porque desde os 18 anos que ando de transportes, e sempre aproximadamente à mesma distância casa - trabalho.
Enquanto faço uma pequena pausa para tomar um frasco de anti-depressivos do tamanho da minha cabeça pelos números acima referidos, quem neste momento me está a ler irá pensar uma de duas coisas: ou sou masoquista, ou estou com excesso de tempo livre. No que se refere à primeira razão, talvez até haja um fundo de verdade. Quanto à segunda razão, muito pelo contrário. Nuca tive tão pouco tempo livre na minha vida. Na verdade, tenho neste preciso momento uma ilustração aqui mesmo ao meu lado que sei me roubará umas boas 10 horas. Ao fazer este post, estou na verdade a
"fugir com o rabo à seringa", ou, em termos mais técnicos, a procrastinar.
Sabem, não obstante as greves, as avarias, a filas, os apertões e empurrões, o calor infernal no Verão, os ares condicionados avariados, os atrasos, as discussões, os temporais (quem já fez a travessia do Tejo de barco num dia tempestuoso sabe do que estou a falar), o stress dos horários, os suicídios (é muito triste, mas ocorrem em determinados períodos do ano, o que dava um bom estudo sociológico), o andar carregado de tralha, a imbecilidade de alguns funcionários, na verdade, gosto muito de andar de TP.
Durante um ano da minha via, decidi dar o benefício da dúvida ao carro, mas depressa cheguei à conclusão ter sido uma das coisas estúpidas e caras que decidi fazer. Sinceramente, não consigo perceber onde está o conforto em estar fechado num cubículo com 2 m2, cercado por todos os lados por um mar de chapa, plástico, vidro, CO2 e buracos de ozono, onde a única coisa que posso fazer é observar o senhor da fila da direita a degladiar-se para arrancar os pêlos dos ouvidos, a senhora da fila da esquerda a fazer prospecção e introspecção nasal, o casal do carro de trás a tentar interpretar em buzinadelas "A Cavalgada das Valquírias" de Wagner, e, á frente, uma manada de energúmenos que, com o enorme sentido cívico que caracteriza os portugueses, tudo fazem para furar a fila e enganar tudo e todos, pisando traços contínuos e fazendo todo o tipo de manobras perigosas enquanto exercitam orgulhosamente o dedo médio e pensam no quanto são espertos e os outros, por oposição, parvos. E, muito especialmente, não tenho a mais pequena pachorra para todos aqueles que se dedicam a defender animosamente o ambiente, a ecologia, a mobilidade sustentável, os TP, a bicicleta, o andar a pé, num fervilhar de discursos e palestras e iniciativas cheios de boas intenções, mas que, por nenhuma razão em especial, nunca puseram os pés num TP em percursos casa-trabalho curtos e bem servidos de transportes, e quem nem mesmo os preços de ourivesaria dos combustíveis e um país que se está a afundar parecem querer fazer mudar de ideias, e que usam como alibi a ideia de que os TP não funcionam, cegos para o facto de que é exactamente o excesso de carros que provoca muitos dos problemas nos TP.
É verdade que se torna muito cansativo, e por vezes desesperante. Quem me conhece sabe os efeitos que em alguns dias - especialmente a partir da 4ªs feiras - tem em mim, mas mesmo assim, adoro andar de TP. Permite-me ler muitos bons livros, desenhar e pintar (todos os trabalhos de ilustração que fiz até agora nasceram nos TP), ouvir música, dormir, sonhar acordado, deliciar-me com a paisagem e com nascer e pôr do sol gloriosos, mudar de trajecto, conhecer pessoas, ouvir pessoas, falar com pessoas, atender telefonemas dos meus amigos, beber um café, assistir no meu telemóvel a inúmeras e inspiradoras
conferências TED, andar a pé, manter a linha, amar o coração, apanhar chuva, sentir o vento que vem do rio, dar o meu humilde contributo para que o mundo não perca as cores, ou, porque não, fazer absolutamente nada enquanto alguém me conduz ao trabalho.