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segunda-feira, 14 de junho de 2010

Histórias que se Cruzam




A primeira vez que ouvi esta música pensei: -“Tenho de mostrá-la às miúdas, elas saberão o que fazer com ela!”. Entrávamos em 2008. Comemorava-se o Ano Europeu para o Diálogo Intercultural. Porque não uma coreografia conjunta, nós, as Araquerar, e elas, as Gipsy Stars?

A primeira experiência conjunta tinha acontecido no ano anterior, quando me lembrei de lhes ensinar a coreografia do Camarón, que depois bailámos na Feira de Sant’Iago. Na minha cabeça nascia um novo desafio. Uma coreografia conjunta. As chaborilhas das danças orientais e as payitas das “espanholas”, misturando olés! e gritos do fundo da garganta, xailes e lenços, pés na terra e mãos no ar… Misturando sons e afectos numa música que nos fala de Imigração. Porque não, coreografar o Diálogo?

O desassossego estava instalado. O próximo passo foi desafiar a Filipa Matos, a que espalha magia, para construirmos a “conversa”. As semanas que se seguiram foram de pesquisa na net. As palavras mágicas: flamenco árabe. Começámos os ensaios no Espaço Aberto. A cada braceo, o shiming correspondente. A cada vuelta, um camelo. O Diálogo Intercultural a construir-se ali, longe do financiamento da União Europeia, a fugir ao formulário A38 das candidaturas.

Às terças-feiras, os passos construídos com as Gipsy Stars. Aos sábados, refazia o caminho com as Araquerar e o olhar experiente da Sónia a indicar o percurso, a sugerir xailes e lenços em roda. O refrão, igual para todas: um passo de rumba, o taconeo no compás das moedinhas dos cintos. E o Diálogo construía-se, passo a passo, mano a mano, com ajuda de todas. O momento alto da “conversa”: nós a bater palmas e a jalear, voltadas para as chaborilhas, deitadas no chão, num shiming perfeito de ombros…

Dois meses de ensaios e teimosia. A explicação, uma e outra vez, que aquilo também era trabalho: estar no Espaço Aberto, a bailar, a divertir-me, a construir pontes entre culturas, a dialogar… Fez-se ensaio geral no Centro Multicultural, onde iria acontecer o grande momento: a reabertura do Centro, enquanto espaço de encontro de culturas e afectos, integrada no Mês para o Diálogo Intercultural. As conversas com as famílias das chaborilhas, a mediação de conflitos, as guerras pelos vestidos. A negociação com os pais para autorizarem a participação das miúdas que já não têm idade para estas coisas, porque estão noivas… O costume!

O ensaio correu bem. Os momentos que antecederam o espectáculo também. A Loira a tratar das maquilhagens. Estávamos bonitas. O Duende estava ali. Fomos para o Multicultural. A sala cheia. As pessoas importantes da terra. Os moradores da zona. As comunidades imigrantes. As famílias ciganas. Começámos pela Sarandonga, parto sempre difícil para mim, que não gosto da música. Não a conseguíamos ouvir. Cada uma a dançar para seu lado. A aflição… O que se segue ao passo de rumba? Vamos em que parte? Não podemos improvisar, não se ouve o som… Entram as chaborilhas, a mesma desorientação. Terminamos com Papeles Mojados. Diz quem viu que correu bem, não se percebeu o engano…

Para mim, foi o nosso pior espectáculo. Dois meses a conversar, a negociar afectos… Nessa noite chorei copiosamente, como se diz na literatura. Pelo esforço que não teve retorno naquele dia (teria mais tarde). Nesse dia, não consegui apreciar as “salsichas moldavas” da Roménia, mas aprendi o significado de “som de retorno”. E não houve espectáculo onde tivesse participado a seguir, que não pensasse nos segundos antes de entrar em palco: - “Mucha mierda! Não vai ser pior que no Multi!”. Dois meses mais tarde e teria o meu final feliz, na Feira de Sant’Iago. Os shimings e os braceos numa conversa mágica, na Praça do Mundo.

Estávamos em 2008. Passaram dois anos. Papeles Mojados faz parte do repertório fixo das Araquerar. Da coreografia inicial, muita coisa se alterou. O Espaço Aberto fechou. Não dançamos com as Gipsy Stars; o momento mágico de palmas e jaleos para os shimings perfeitos perdeu o sentido. Enjoei a música. A última vez que a dancei, foi de forma mecânica, a contar passos. Faltavam-me as miúdas. Faltava-me a conversa…

Num outro Bairro (que ainda não lhe penei a história), passinho a passinho, o Diálogo constrói-se desde 2001. Há pouco tempo, o grupo de dança da Escolinha do Bairro da Manteigada foi bailar ao Parque do Bonfim, em Setúbal. Um palco e dezenas de pessoas a assistir. Um grupo de dança, animado pela que espalha magia – a Filipa Matos, dançou Papeles Mojados. Com lenços, camelos e shimings de ombros. As moedinhas dos cintos a tilintar… E só não chorei copiosamente, de orgulho, porque tive vergonha…

O grupo de dança da Escolinha é convidado para apresentações públicas. A Catizzz pede-me a música Papeles Mojados para ensaiar em casa com a filha mais velha. As Araquerar da “nova guarda” (como diria a Myrna) ensaiam a coreografia nas aulas. E eu esqueço a aflição no Multicultural. E lembro-me das filosofias orientais, que dizem que aquilo que atiramos para o Universo nos é devolvido…

As conversas são como as cerejas. Um dia, aqui há muito tempo, lembrei-me de inventar uma coreografia de Flamenco Árabe, a propósito do Diálogo Intercultural. Passamos pelos outros e deixamos bocadinhos de nós, como diz o Exupéry. Bocadinhos que se ligam uns aos outros, afectos que se constroem, “conversas” que contagiam, histórias que se cruzam…



segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Olga Natália Maia Mariano


“Nós temos cinco dedos na mão. São todos diferentes. São todos necessários.”
Olga Mariano – Assembleia da República, na apresentação pública do Relatório das audições sobre ciganos portugueses, no dia 17 de Março de 2009



Não me lembro de quando a conheci. Terá sido num dos muitos momentos Nómada. Mas recordo-me das suas palavras ditas e não preciso de me socorrer dos papelinhos dispersos onde vou anotando a poesia que lhe sai das suas mais simples afirmações.

A primeira frase que lhe recordo, e que nunca esqueci, será: - Misturem-se! Vão ver que não dói. Filosofia de vida que me acompanha desde então. E não dói, acreditem!

Dizer-lhe a idade seria uma indelicadeza da minha parte. O que já viveu e sentiu dariam para mais de um século… A primeira mulher cigana a ter carta de condução em Portugal. Presidente da única associação de mulheres ciganas do país – a AMUCIP. Uma Mulher bonita, por fora e por dentro.

Era muito nova quando perdeu o marido e ficou sozinha, na sua condição de mulher viúva e cigana, a cuidar dos filhos. O traje negro das viúvas ciganas vestido com o orgulho de quem não abdicará das suas tradições e convicções para construir o sonho de um mundo multicultural, alicerçado na aceitação do Outro diferente e na criação de alternativas de pensar, agir e sentir.

As batalhas que já travou na vida só ela as saberá contar. Hoje, homens e mulheres, ciganos e não ciganos, ficam em silêncio para a ouvir, num respeito que guardamos apenas para aqueles que sabem fazer magia com a vida e deslumbrar-nos com ensinamentos. Coelhos na cartola. Tesouros do fundo do mar.



Escreve, quem a conhece bem:

"Eu conheci a Olga através dos seus poemas que foram sendo publicados no Andarilho – boletim do Nómada. Depois, porque ambas escrevíamos poesia, juntámo-nos num projecto Cultural em Setúbal, dirigido por outra grande mulher – Maria José – e, através deste projecto ofereci à Olga, pelo seu 50º aniversário, o seu primeiro livro de poemas:“Poemas desta vida Cigana”, editado em 2000.
Depois e, durante mais 3 anos, fui-lhe oferecendo, sempre pelo seu aniversário, os seus poemas compilados em livros, dos quais já se publicaram: “Festejando a Vida” em 2002; “Inquietudes” 2003; “Tesouro da Vida” 2004. Tentámos que fossem todos publicados numa compilação, para servir de motivação as outras mulheres ciganas que frequentam os cursos de alfabetização… Mas em vão… Só promessas que o vento leva…"

Myrna


Aqui ficam alguns destes poemas que, como diz a Myrna, deixam transparecer muito da persistência desta mulher muito especial.





Foi no meio da vida
que encontrei uma passagem.
Era muito estreita e pouco viável.
Tentei penetrar e não consegui
Recuei atrás quase desisti.
Um pouco à frente
encontrei uma luz
dirigi-me a ela como a uma cruz

havia esperança de continuar.
É pensando nela que não vou chorar.
Já me sinto tonta
de tanto pensar nessa passagem

não terei lugar

De desilusão em desilusão
vou ultrapassando
cada portão
este é meu destino
e não vou deixar
que outros ocupem
este meu lugar
Se tanto lutei para o conseguir
não será agora que vou desistir
foi no meio da vida que encontrei a passagem
é pensando nela que vou de viagem

Olga Mariano

Ser Cigano
Ser cigano é ser diferente
É como a água a correr
Cristalina e luzidia
Qual riacho a percorrer.
As margens, que mãos tão frias!
O leito, acolhedor
O afluente é a alegria
O desaguar é o prazer.
Será que é compreendido?
O seu andar bamboleante
Quais ondas em maré fria
Qual noite escura e sombria
Que não vês a luz do dia
Até ao amanhecer.
Ser cigano é ser diferente
Ser cigano é ser artista
Pois tudo o que faz, não faz
E tudo o que quer, não quer.
Como será o futuro?
Que futuro nós teremos?
Com tanto para lutar
Sem nunca nos apercebermos
Que difícil e triste realidade
Um dia se esquecerá.
E as batalhas que perdemos!
Mas perder uma batalha
Não é perdermos a guerra
E como trabalhadores e diferentes que somos
Nós juntamos nossas mãos
E com força e harmonia
Carinho e simpatia
Um dia, não muito longe
O sol nos alumia
E como tudo tem um nome
O nosso é alegria.

Natália Maia


Voltámos...!
Como é bom voltar no tempo.
Que andanças!
Que mudanças,
Numa lacuna sem vida.
O reencontro
Da amizade, do carinho, da saudade
Quais belos três mosqueteiros
Quais damas abandonadas
Num tempo que não contou
Que nem me lembro de nada
Duma volta tão esperada
Sonhos na caixa fechada.
Au revoir, à bientôt.

Olga Mariano


quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Tomar a Palavra


A AMUCIP promoveu em 2006 o lançamento do livro Tomar a palavra – olhares e falas de mulheres ciganas portuguesas sobre a família e o trabalho, com o apoio da Comissão para a Igualdade e para os Direitos das Mulheres. Neste livro relatam-se experiências de vida de mulheres ciganas na conciliação da vertente laboral e familiar. As entrevistadoras são mulheres ciganas que recolheram depoimentos de mulheres casadas, viúvas e solteiras da sua comunidade. O objectivo foi dar a conhecer o que pensam as mulheres ciganas sobre famílias e tradições, movimentos e territórios, trabalho e escola, deixando ainda mensagens a ciganos e não ciganos, revelando pessoas marcantes nas suas vidas, discriminações sentidas pelos não ciganos e desigualdades que enfrentam todos os dias no seio da sua própria comunidade.


Aqui fica um cheirinho dos tesouros que moram dentro deste livro, através da transcrição da sua introdução.


“As circunstâncias históricas tiveram um papel decisivo na vida dos ciganos, com uma constante perseguição. E se esta não foi a causa única, muito contribuiu para que os ciganos se entregassem dia após dia, ano após ano, a uma luta pela sobrevivência, levada a cabo com o mínimo de interferência na vida da sociedade maioritária.”

O cigano vive num mundo “só dele”…

O mundo dos “Senhores” não lhe interessa, pois vive em função da sua comunidade…

Não se discute política na comunidade cigana, pois os ciganos não se regem por “Leis dos Senhores”, mas sim pelas suas.

A única coisa que se discute do “Mundo dos Senhores” é o futebol.O homem, porque a mulher não.

Dando seguimento a um “sonho” iniciado há seis anos atrás pelas sócias fundadoras da AMUCIP, através deste livro de “histórias de vida”, demos oportunidade às mulheres ciganas de “tomarem a palavra”, ouvindo, sentindo, entendendo mentalidades que fazem parte da nossa realidade, mas com formas diferentes de dizer e de sentir.

Ao dar oportunidade a estas mulheres de falarem dos seus sentimentos com outras mulheres da sua comunidade, não só lhes é transferido o poder – pelo envolvimento na discussão, na reflexão e na apropriação das problemáticas – como se dá a compreender à sociedade maioritária como decorre a vida quotidiana da mulher cigana, no seu grande empenhamento quer na vida familiar quer profissional, que começa muito cedo na sua vida, ainda em casa dos pais.

Dêmos-lhe então a palavra…


Sobre a AMUCIP e o seu trabalho:


http://www.principioactivo.com/equal_news/fevereiro08_foco/emfoco4.htm

http://www.ciga-nos.pt/Default.aspx?tabindex=8&tabid=15

http://www.tsf.pt/paginainicial/AudioeVideo.aspx?content_id=891748



(aceitam-se contribuições para fazer crescer a lista de links sobre a AMUCIP)

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

P'lo Sonho é Que Vamos: a AMUCIP


“Nós temos olhos que se abrem para dentro, esses que usamos para ver os sonhos.”

Mia Couto – Estórias Abensonhadas

Neste meu pachadrom com as pessoas ciganas, nada me tem colocado tantas questões e suscitado tanta reflexão sobre o meu “modo de estar” profissional e pessoal como o estatuto da mulher cigana na sua comunidade. Poderia desenrolar aqui algumas histórias que, de acordo com a minha pertença à sociedade dita maioritária, me fariam saltar para o lado de cá da barricada e construir os muros que fecham os caminhos ao entendimento e à aceitação do Outro. Isso seria o mais fácil. Mas estamos a falar de um povo no “avesso do cenário”, como disse Claire Auzias (http://pachadrom.blogspot.com/2008/12/no-avesso-do-cenrio.html), e por isso vou contar esta história ao contrário.



Em 1999, conheci cinco mulheres ciganas que frequentavam um curso de formação de mediadoras sócio-culturais. Eu estava ali de passagem mas desse breve encontro recordo-lhes os sorrisos envergonhados, o olhar vivo e curioso, a resposta frontal. Brincavam com os estereótipos da sua própria condição, falando “à cigana”, e com isso diziam-me que sabem como nós - os não ciganos, os pensamos a eles -os ciganos.


Voltaria a encontrar-me com elas, aqui e ali, através do Nómada (http://pachadrom.blogspot.com/2008/10/amanh-no-ser-vspera-desse-dia.html). Pela Myrna (http://myrna.com.sapo.pt/), fui acompanhando as suas aventuras e desventuras na constituição daquela que é a única associação de mulheres ciganas do país: a AMUCIP - Associação para o Desenvolvimento de Mulheres Ciganas Portuguesas (http://www.madrugada-cigana.com/amucip.htm).

A ideia foi-lhes sugerida por um formador no Curso de Mediação Sócio-Cultural, que frequentaram de acordo com o Plano de Inserção do Rendimento Mínimo, e foi avante pela mão amiga do Cónego Filipe Figueiredo e da Pastoral dos Ciganos. A vontade, a determinação e a teimosia para baterem com os pés no tablao, e que lhes permitiu materializar o sonho, essas vieram de dentro de cada uma delas.

Cinco mulheres a conquistar o espaço para a construção da sua cidadania. Cinco duendes unidos no sonho de mudar a sua vida e a de outras mulheres, respeitando a sua cultura e tradições. Haverá coisa mais difícil? Fundaram a AMUCIP e aprenderam a linguagem hermética do associativismo formal. Vinham de uma cultura ágrafa, onde a palavra dita é o que basta para assinar a honra, e aprenderam a preencher formulários, elaborar estatutos, redigir actas, apresentar declarações de finanças e certidões de conservatórias, num labirinto burocrático que quase as fez desistir.

Mas o sonho falou mais alto e nasceu a Associação. Durante cinco anos idealizaram o Espaço, lugar de encontros, afectos e cumplicidades para concretizar projectos. A AMUCIP a morar-lhes no coração e nas bagageiras dos carros, os papéis órfãos de sede associativa. O regresso a uma vida nómada, condição ancestral que nunca desejaram.

No dia 8 de Março de 2005 (e poderia ser outro o dia?), depois de baterem a muitas portas, a Câmara Municipal do Seixal concretiza-lhes o sonho e cede-lhes um espaço na Cucena. Estive lá em dois momentos diferentes. O acolhimento caloroso. A casa pequenina, a respirar actividades em movimento. O alpendre a convidar à conversa, no sol de fim de tarde. O jardim a prometer hortas pedagógicas. As mulheres ciganas do bairro em formação, à procura de uma vida melhor para si e para os seus. Os chaborilhos numa azáfama, entre os computadores, as pinturas e as aulas de dança. O leitor de cds no parapeito da janela e as meninas a bailar a sua música. Para quem quisesse ver…

O bulício de quem vive sonhos acordados. E o despertar nos primeiros pesadelos… Construíram a AMUCIP e a sociedade maioritária quis fazer delas interlocutoras, para acabar com os problemas sociais que não consegue resolver. Construíram a AMUCIP e a comunidade cigana olhou-as com desconfiança, pois pensou que elas quereriam falar por toda a comunidade, papel tradicionalmente atribuído aos homens. Sentiram-se em terra de ninguém… Ao esforço de dinamizar uma associação, somaram-lhe o esforço de construir a identidade associativa e de desconstruir medos de um lado e de outro, aproximando fronteiras, culturais e de género.

Recordo um dos momentos em que estive no Espaço, na Quinta da Cucena, sede da AMUCIP. O pedido de desculpas porque não nos podiam dar toda a sua atenção. Estavam no primeiro dia de uma formação para mulheres ciganas, sobre Empreendedorismo. Não podiam dar-nos todas as explicações sobre o que fazermos nós – as não ciganas- com as mulheres ciganas. Sem tempo para perceberem que nós – as payas- aprendíamos tudo ali, a observá-las. E aprendíamos que o nosso caminho é longo e demorado. E tem de ser de paciência, se quisermos construir a nossa teia de laços sociais e redes de solidariedade. Como a que tem o tecelão quando tece a sua manta…

Cinco mulheres ciganas. A mudar o mundo. O delas. O nosso. O dos outros. Nasceram com os olhos a espreitar para dentro e o duende a espreitar para fora. São ciganas e constroem caminhos de entendimento entre payos e ciganos, pontes de comunicação entre culturas. “P’lo sonho é que vamos” é o nome que deram a um Projecto Equal, financiado pela União Europeia, e com o qual se desmultiplicaram em acções para melhorar a coesão social e a solidariedade entre sentires e pensares diferentes.

“P’lo sonho é que vamos” podia ser o nome da Associação. Podia ser o princípio norteador do nosso trabalho com as comunidades ciganas. Porque não?


Esta história está escrita na minha cabeça há muito tempo, tanto quanto o tempo do desafio para fazer este Caderno de Histórias. Teimou em não vir à luz do dia pela responsabilidade que significaria escrevê-lo (que é o mesmo que dizer que sou medrosa). Ficará sempre muito distante daquele que é o trabalho real destas mulheres e de outras que as acompanham na sua resistência à formatação social. As minhas desculpas pelo(s) facto(s).

(Esta história é para a Alzinda Carmelo, Anabela Carvalho, Noel Gouveia, Sónia Matos e, muito particularmente, para a Olga Mariano. As outras quatro GRANDES Mulheres que me desculpem, mas pelo que conhecemos da Olga, penso que deixarão passar esta minha fraqueza. Um Olé com Duende para estas cinco Mulheres e para a AMUCIP ! ARZA! E que continuem a olhar para dentro, agindo para fora…)

Ainda que tenha sido medrosa e nunca tenha escrito sobre a AMUCIP, são muitas as histórias sobre mulheres que afectivamente se cruzam com esta. Serão todas as que apresentam a Palavra Mágica Araquerar e também "Desenhos no Ar" (http://pachadrom.blogspot.com/2009/04/desenhos-no-ar.html).


sexta-feira, 12 de junho de 2009

Nómadas

Não sabiam de onde vinham. Mas sabiam quem eram.

Desde que se recordavam, sempre tinha existido.

Desde que se recordavam, o mundo era a sua casa, mas a sua morada não residia em parte alguma. Empurravam-na consigo pelas paragens do Destino. Pelas paragens, onde paravam mas não permaneciam. Empurrados ao sabor do vento, movidos por um desejo de Liberdade ou, simplesmente, pelas vontades daqueles que não os deixavam ficar.

Foi assim que conheceram as planícies. Atravessaram cordilheiras. Desceram aos mais profundos vales. Subiram às altas montanhas e aproximaram-se dos céus. O mesmo céu companheiro que lhes dava cobertura. Dia após dia. Noite após noite. O céu por cima de si. Os trilhos vincados deixado atrás de si. Marcas deixadas pela roda da Fortuna. Marcas de quem vive no improviso dos dias não planeados. De quem vive ao sabor da corrente dos rios onde se banham as crianças, enquanto as mães lavam o pó da estrada das roupas, que ainda deixam adivinhar as cores vivas que um dia tiveram.

Quando se detinham em alguma parte, faziam desse local transitório a casa que não chegava a ser, a pátria que não chegaria a ser. A sua pátria é maior do que qualquer fronteira geográfica e temporal. A sua pátria é em toda a parte e em parte alguma. E por isso se sentem sem ela e a sentem a cada instante, porque ela é onde eles estão e onde estão aqueles que amam.

As noites iluminadas pelo luar, aquecidas pela fogueira e animadas pela música. Entrançadas nos seus acordes, cantam-se as histórias de quem não escreve, mas que transporta consigo todo o seu povo. Cantavam e dançavam. Aplaudiam a vida na sua dupla face, Alegria e da Tristeza. Palmas que marcavam o ritmo da vida. Que incitavam à sua dança perpétua.

Essa era a sua força. Não sabiam de onde vinham. Mas sabiam quem eram e de tudo faziam para nunca o esquecer. Porque sempre tinham existido e sabiam que iriam existir para sempre. Enquanto houvesse um céu sobre si e uma estrada a percorrer.
História penada por James Starfield

domingo, 3 de maio de 2009

Ojos de Brujo e Nitin Sawhney... A compás!

Porque o Flamenco se renova todos os dias. Uma colaboração que tem produzido músicas bonitas. Um baile, a compás! Com Duende.






segunda-feira, 20 de abril de 2009

Dibujo en el Aire

Às vezes acontece-nos assim... Ouvimos uma música e uma história acontece-nos cá dentro. Foi o caso do "Dibujo en el aire" dos Chambao. De alguma forma, a letra desta música inspirou a história penada no dia 15 de Abril - Desenhos no Ar. Curiosamente, é uma música que diz pouco à protagonista da mesma...





Chambao - Dibujo en el aire

Ya no quiero vivir con los temores
que prefiero entregarme a la ilusión
y lo que creo, defenderlo con firmeza,
sin historias que me abulten el colchón

Y si un día me siento transformado
y decido reorientar la dirección,
tomare un nuevo rumbo sin prejuicios
porque en el cambio esta la evolución

Evolucion, en el cambio esta la evolución

Que mi camino se encuentre iluminado
y la negrura no enturbie el corazón
discernimiento al escoger entre los frutos,
decision para subir otro escalón
Vivir el presente hacia el futuro
guardar el pasado en el arcón,
trabajar por el cambio de conciencia,
dibujar en el aire una canción

Una cancion en el aire una canción...

quarta-feira, 15 de abril de 2009

Desenhos no Ar

Nasceu cigana e nela trazia inscritos os códigos da ancestralidade cultural. No primeiro sopro que lhe saiu dos pulmões, desenhou-se no ar um futuro: crescer junto da família, aprender as curvas redondas das letras até o corpo tomar igual forma, casar cedo e ter filhos, andar na venda, ajudar os netos a crescer junto da família. O fado cigano…


A mãe cantava-lhe canções de embalar em castelhano. Entre tangos e malagueñas, a infância corria-lhe feliz. Os pés descalços, o vestido rasgado, os joelhos esfolados da meninice vivida na rua com os primos. Foi à escola porque o pai assim o quis, a sonhar-lhe uma vida diferente da sua. Quando o corpo assumiu o seu destino, passou a amanhar a casa e a cuidar dos irmãos, enquanto os pais iam para a feira ganhar a vida. Juntava o troco dos avios do supermercado e comprava romances de cordel que lia quase às escondidas. Suspirava e no entrelaçar cor-de-rosa dos personagens, desenhava no ar futuros diferentes do seu.


Da janela de casa via passar os Outros da sua idade, rumo aos festivais de verão ou às discotecas. De dentro de casa via os primos homens divertirem-se em experiências vedadas à sua condição feminina. Sentimentos diferentes cresciam dentro de si: a revolta pela desigualdade observada e o desejo de voar mais longe. Entre fandangos e rumbas bailados nas festas da família, no soar das palmas, clap clap, bateu o pé no tablao e deu cabaças aos noivos prometidos. O pai reconheceu nela a coragem, o orgulho e a determinação dos antepassados e deixou-a seguir.


Revirou os estereótipos do avesso e aproveitou os subsídios sociais. Voltou à escola e aprendeu a arte da mediação entre pessoas, a construir pontes de comunicação entre culturas. Conquistou a independência financeira e ganhou consciência de Si e de Cidadã do Mundo. Um sentimento diferente crescia dentro dela: uma vontade de mudar a vida de outras pessoas, de mudar o fado de outras mulheres iguais a ela. Com as suas Companheiras de Viagem, construiu um sonho e fundou uma Associação. Teimosamente, o orgulho e o desafio estampados nos rostos, bateram o pé e estremeceram o Mundo. O delas próprias. E o dos Outros que se vão cruzando no caminho. Entrelaçam afectos e desenham a carvão esquissos incertos no ar. Vidas que se transformam. Consciências que se revelam. Pessoas que se descobrem.


A dança estava-lhe no sangue. Aprendeu a arte do Flamenco, mediada por um duende inscrito à nascença. E com eles, arte e duende, aproximou pessoas e culturas. Deixa bocadinhos de Si nas alunas não ciganas, as payitas. Conta-lhes histórias de luta e resistência, no compás matemático de uma sevilhana ou na aritmética complexa de uma bulería. As saias esvoaçam no ar, os tacões batem no chão, as palmas ecoam no espaço, clap clap, e as alunas improvisam a música, num duende que entrelaça afectos e esboça futuros. Naquele tablao, umas e outras esquecem que nasceram diferentes e constroem pontes de comunicação. O acolhimento do Outro ali, vivido e sentido. Bailado a compás


Conheceu o Amor, tal como nos romances cor-de-rosa que comprava com o troco dos avios. Apaixonou-se por um Senhor e percebeu que era o Sentimento de uma Vida. Casou às escondidas. Quando contou ao pai, ele chorou um lamento jondo que soou pelos corredores da Existência, numa soleá que expressava o medo do futuro. Os casamentos ciganos duram uma vida. Os casamentos entre payos, não. Ayayayyyy… Mas reconheceu nela a coragem, o orgulho e a determinação dos antepassados e deixou-a seguir. Porque para um Cigano não há Valor mais importante que a Felicidade dos seus.


Nasceu cigana. Sentiu-se pequenina durante toda a vida, mas é GRANDE. E da mesma forma que improvisa a música, improvisa o futuro, esquissos incertos no ar. É Cigana, filha do vento. Corajosa, orgulhosa, determinada. E não passou um dia desde o seu nascimento que não desenhe no ar uma canção. A sua.


(Esta história é para a Sónia Matos, a minha Professora de Flamenco. Que continue pela vida fora a improvisar a sua canção. Com Duende! E nunca a poderia ter escrito se ela não tivesse sabido, com arte, construir pontes de comunicação entre nós. Olé Guapa! Mucha mierda!!! E se não é desta que me faz um jaleo na Payita, meto a mão na anca, pego na chinela e faço uma peixeirada! À Sadina!!!)


"Desenhos no Ar" foi publicada na forma de MicroConto no blogue O Galo de Barcelos ao Poder:
http://ogalodebarcelosaopoder.blogspot.com/

O duende para escrever "Desenhos no Ar" surgiu-me através de uma música, que lhe inspira o título. História que penarei dentro de dias.

Histórias afectivamente relacionadas: todas as que apresentam a Palavra Mágica "Araquerar", mas muito particularmente "A Brigada da Peuguinha".
http://pachadrom.blogspot.com/2008/11/brigada-da-peuguinha.html


sábado, 14 de março de 2009

Nenucos


Desafiei um amigo contar-me o seu "pachadrom cigano". Por alturas do Natal, apercebi-me de que na sua lista de compras constava um "Nenuco Aniversário" , um presente especial para uma chaborrilha de 2 anos. E a pergunta impôs-se: como acaba um curioso das relações sociais às voltas com um presente de Natal para uma das mais importantes relações, a que se constrói a partir do respeito pelas diferenças culturais?

E o LB penou uma história...


"Na Vida ocorrem encontros inesperados, em locais improváveis, muitas vezes resultando na criação de laços e relações pessoais igualmente inesperadas e, à partida, igualmente improváveis. Como se uma série de acontecimentos, que não estando ou não parecendo estar interligados, se conjugassem e convergissem a para um determinado momento. Essa análise, conseguimos fazê-la, olhando para trás, reflectindo sobre as coincidências, refazendo todo o percurso.

Foi-me pedido que escrevesse acerca de um desses encontros inesperados e improváveis...

No início de 2002, trocava o conforto do escritório de uma agência de media e um grupo de pessoas, que há muito se tinham tornado mais do que meros colegas de trabalho (ainda hoje somos amigos), por um novo desafio. Menos confortável, mas de longe mais aliciante e mais adequado às minhas expectativas pessoais, profissionais e académicas. Pouco mais sabia acerca do emprego a que me havia candidatado, além da sua designação e que se tratava de um programa que visava a “prevenção da criminalidade e inserção dos jovens de bairros degradados e a formação pessoal, social, escolar, profissional e parental dos mesmos”.

Fui seleccionado. De Media Planner, passava a Técnico de Bairro. Da Quinta da Fonte (Oeiras), deslocava-me para o bairro da Bela Vista (Setúbal). Os meus novos colegas de trabalho: quatro Mediadores Jovens Urbanos (MJU’s)*. Uma equipa de trabalho tão distante da convencionalidade a que estava habituado. Multi-étnica. Multi-cultural. Dois africanos; um cigano; um afro-timorense e eu, o luso. Este foi o meu encontro inesperado.

Durante esse tempo, fomo-nos conhecendo e estreitando relações de companheirismo, a par da relação laboral que nos tinha agregado na mesma equipa. E uma vez mais, este grupo de pessoas tornou-se para mim algo mais do que meros colegas de trabalho.

De todos, foi com o meu colega de etnia cigana que vim a desenvolver uma maior relação de proximidade que evoluiu para Amizade. Muitos foram os momentos em que discorríamos sobre os mais variados assuntos: diferenças culturais; crenças religiosas; assuntos quotidianos... Procurando a cada frase, a cada tema, satisfazer a curiosidade recíproca de quem se está a conhecer, de quem tem um Mundo de questões guardadas, muitas vezes apoiadas em imagens distantes e tão erradas. E foi toda uma descoberta de imensas afinidades que esbateram diferenças, que anularam diferenças. E compreendidas as diferenças que restaram, ambos enriquecemos com elas e aprendemos a respeitar o Outro.

Cigano e Senhor. Calón e Gadjó. Amigo e Amigo.

Essa ligação, mantivemo-la mesmo depois de ele abandonar o programa e de eu ter sido transferido para uma nova equipa, num novo território. E algumas vezes, além dos telefonemas e troca de mensagens de telemóvel, combinávamos encontrar-nos para tomar café, de cada vez que um de nós estava de passagem na área de residência do outro. E foi num desses momentos, numa tarde em que tinha ido a Setúbal, que decidi fazer um desvio ao bairro da Bela Vista. Revisitar o bairro. Reviver recordações. Reencontrar o amigo.

Encontrámo-nos na rua onde ele vivia. Estacionei. Saí do carro. Ele atravessou na minha direcção, trazendo o seu filho ao colo, e um sorriso que eu retribuí. Um abraço. A inevitável viagem pelos tempos em que trabalhámos juntos, a constatação irónica daquilo que tantas vezes eu lhe tinha profetizado para o futuro, como se fosse eu o cigano capaz de lhe ler a sina e antever-lhe o Destino: “- Não faltará muito tempo para te casares, ter filhos e te tornares Pastor do Culto Evangélico”. E ali estava ele, casado, com um filho, frequentador cada vez mais assíduo e com desempenho de responsabilidade dentro da sua congregação religiosa.

Mas as minhas capacidades divinatórias não previram o convite que, à queima, ele subitamente me dirigiu: “- Vamos fazer um acordo – disse – quando eu tiver o meu próximo filho, tu serás o padrinho. E eu, serei o padrinho do teu, quando tiveres um!”

Não queria acreditar no que ouvia! Eu, um pailho acabava de ser convidado a ser padrinho de uma criança cigana?! E senti-me duplamente honrado. Aquele convite trazia consigo a total e derradeira afirmação de que as diferenças são um mero preconceito; que a Amizade está para lá de questões mesquinhas que tantas vezes criam barreiras desnecessárias e tão estúpidas.

E aceitei! Aceitei com toda a convicção! E afirmei a honra que ele acabara de me conceder.

Aquele compromisso, ali firmado naquela tarde, naquele local tão improvável, veio a ser concretizado meses mais tarde.

E hoje, sou padrinho de uma linda menina, que tem no seu segundo nome, o meu segundo nome na versão feminina. Porque foi essa a forma que me ocorreu de afirmar o compromisso que assumi, de dizer orgulhosamente: Ela é a minha afilhada e tem o meu nome no seu. Porque naquela criança, no seu nome, está fundida a união do seu pai e do amigo do seu pai, agora, além de amigos, compadres. Naquele nome celebra-se a união entre Cigano e Senhor. Mais do que isso, a constatação que não tem de haver separação entre Cigano e Senhor.

E no último Natal, entre as compras habituais, havia um Nenuco para uma menina, que é a minha linda afilhada, o meu querido Nenuco."

LB


*MJU’s – jovens, preferencialmente, residentes nos bairros sujeitos a um período de formação. O trabalho dos MJU’s possibilitou a “proximidade e envolvimento dos jovens na reconstrução das suas relações com o meio envolvente bem como na dinamização de grupos formais e informais de jovens”.

“A chave do programa é a figura dos jovens mediadores urbanos e dos tutores, recrutados nos bairros vulneráveis, também eles com percursos de risco. Incluí-los na estratégia servia, ao mesmo tempo, três fins: dava-se-lhes um trampolim temporário para outros voos, tornavam-se modelos positivos para outros como eles e, por conhecerem o terreno, era-lhes mais fácil fazerem a ponte com os jovens que se pretendia influenciar. (…) Eram eles as melhores portas de entrada em bairros”

http://www.acidi.gov.pt/modules.php?name=News&file=print&sid=439

sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

As Araquerar pelas Araquerar: "Para mim...

... é o terror do palco...

Eu gosto de vos ver dançar...

Eu gostaria de poder participar nas Araquerar, mas tenho primeiro de me tratar: tenho fobia ao palco... Fico muda, rígida que nem um bacalhau seco...

Acho-vos uma pilha de graça, criaram cumplicidades inimagináveis entre vós, são pessoas tão diferentes entre si mas é muito bonito de ver o que conseguiram construir... Uma cultura de grupo... Uma identidade! E muita diversão...

... O que vocês conseguiram fazer umas às outras é lindo!

Parabéns!

E continuem que eu cá estarei para lhe bater as palmas com inveja...Olé!


Besitos!"


Myrna



quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

As Araquerar pelas Araquerar: "Como sou de poucas palavras...


... vou só dizer uma coisita:

LIBERDADE!

É o que eu sinto quando estou a dançar."

Joana Arnaut


terça-feira, 2 de dezembro de 2008

As Araquerar pelas Araquerar: Muito mais do que bailar sevilhanas

"Era só para aprender a dançar sevilhanas. Algo que queria fazer há que séculos. As desculpas do costume, da falta de tempo, dos horários…blá…blá…

As aulas da Sónia foram ‘descobertas’ pelo meu marido. Numa tarde de sábado levou-me ao ginásio MSport para saber informações e falar com a professora.

Assisti à aula, encantada com as alunas a dançar de saias compridas e flores na cabeça. A professora baixinha e vestida de preto, explicou-me que em Setembro iria começar com uma turma de iniciadas. Aconselhou-me a comprar uma saia e sapatos próprios para dançar flamenco e sevilhanas. Despedi-me com votos de boas férias e com a promessa de me inscrever em Setembro.

Na primeira aula lá estava eu, com espírito de arranque de ano lectivo, e vestida com uma mega saia preta com dois folhos, de sapatinhos de salto e com piquinhos na sola.

No fim da primeira aula saí toda entusiasmada e com aquela sensação maravilhosa quando começamos a aprender algo novo. Isto vai lá…é preciso é ter calma.

Um mês depois o balanço era aterrador. Os meus pés não obedecem e afinal Darwin tem razão…porque a elegância com que tentava dançar era próxima à de um orangotango. Caramba! E eu que gosto tanto de dança… A coisa não ia lá. Mas forreta como sou e com o dinheiro que tinha gasto na Ballet Etc com a fatiota que estreei no primeiro dia de aulas, jurei a mim mesma que só desistia depois de romper os sapatos e a saia. E até lá, alguma coisa iria aprender.

No meio destas batalhas internas fui metendo conversa com a professora, com as outras alunas. Fui-me ambientando.

Um dia perguntei à professora como é que tinha surgido o gosto pelo flamenco. Se era filha de espanhóis ou se era cigana. Com um sorriso meio tímido, meio orgulhoso e olhos a brilhar respondeu: “Sou cigana”.

Fiquei fascinada. Contei ao meu marido mal saí da aula que a minha professora era cigana e fiquei hiper-curiosa (sou muito cusca e até faço disso profissão). Qual seria a história desta cigana que me ensinava todos os sábados a sua cultura através da dança?

A partir daí comecei a olhar com atenção para ela e não apenas para os pés para aprender a dançar a 1.ª sevilhana. Não correspondia a nenhum dos estereótipos que a comunidade dominante (uma expressão que aprendi a usar com ela) tem dos ciganos e das ciganas. De facto tem uns cabelos bonitos como sempre associamos a todas as ciganas. Mas de resto é tão parecida com as pessoas da sua idade e que não são ciganas. Conduz, trabalha, cuida-se, arranja-se… E mais do que isso, empenha-se em melhorar as condições de vida das suas gentes. E vem até à comunidade dominante, dar a conhecer a sua arte de bailar. Este mesmo baile que Espanha adoptou como seu. Aproxima-se de mim e faz-me chegar até ela, à sua gente, dá-nos um nome romani para nos reunirmos à volta da sua dança e da sua cultura.

O que era para ser um hobbie acabou por ser muito mais do que eu esperava de umas aulas de dança. Gosto de fazer parte das Araquerar por muitas razões. Pelo bem que me faz dançar, pela cumplicidade, por reunir pessoas tão diferentes umas das outras. Mas o que me fascina neste grupo de mulheres lideradas por uma professora cigana é a oportunidade de conhecer muito mais do que o flamenco, essa arte tão difícil de dançar, porque nos pede que o façamos com alma, coração, força, desejo, pés, braços, corpo, tudo o que temos dentro de nós!"

Isa Amaral

quarta-feira, 26 de novembro de 2008

A Brigada da Peuguinha


As ciganas são vaidosas. O flamenco faz bem à auto-estima. Ouço muito a primeira frase dita pelas próprias mulheres ciganas. A segunda é a minha Professora Sónia que diz. Também ela cigana. E vaidosa…

Dançar flamenco exige esforço, coordenação, sentido de equilíbrio, concentração. Lembro-me que após o aquecimento na minha primeira aula estava pronta para ir de férias para um qualquer resort. E que no final duvidava seriamente se teria aquilo que se designa por “esquema corporal” e “dominância lateral”, que se adquire pelos 4, 5 anos: esquerda, direita, esquerda, direita… Estas competências são trabalhadas em aulas de flamenco, mas também na natação, no futebol, na ginástica,…

Mas bailar flamenco é muito mais que aprender uma coreografia. Não se baila flamenco porque se contam passos, mesmo quando falamos de sevilhanas, que parecem ter uma estrutura mais aritmética. O flamenco é uma cultura e isto significa que é preciso interpretar, apreender, assimilar, viver, sentir. E, por isso, apesar de termos o mesmo tempo de aulas e de aprendermos as mesmas coreografias, eu nunca conseguirei dançar a “Sarandonga” para lá do mero contar de passos. E quando danço a “Paloma”, posso enganar-me em quase tudo e ainda assim corro o risco de ouvir a Fiona dizer-me “morre!”.

E temos a coordenação motora e o sentir a música. Mas para entender as minhas duas primeiras frases ainda falta explicar outra coisa. Mais complexa e mais demorada no tempo.

Bailamos em frente a um espelho. Os primeiros meses com os olhos cravados no chão. A vergonha de olharmos em frente, para nós próprias. A aceitação do que o espelho nos devolve chega devagarinho. E a imagem devolvida vai muito além da imagem física. A segurança naquilo que estamos a fazer, a expressão da nossa forma de pensar e viver o mundo. A expressão interior, a sensualidade. O nosso EU a aceitar-se, a ganhar confiança e a enfrentar novos desafios.

E depois começamos a bailar a pares. Gostamos de nós mesmas. E o Outro vai aceitar-nos como somos? Os olhos cravados no chão ou num braço ou no rodopiar de uma saia. Mais lentamente, a relação a construir-se, a harmonizarmos movimentos, a interpretar a música. Num mesmo sentir. A aceitação do Outro, porque o Outro também nos aceitou a Nós.

Os espectáculos. A sedução já não se dirige para uma imagem num espelho, não é um “namoro” com o par que está à nossa frente. É num palco. O público com os olhos cravados em nós. Nós com os olhos cravados no chão. E o medo de não gostarem de nós volta. O processo reinicia-se, como se estivéssemos em frente ao espelho. E devagarinho aceitamos o desafio: encantar o outro que não conhecemos.

E o processo de encantamento com o flamenco e com o nosso Eu, e a forma como vamos seduzindo o Outro e o Outro nos vai seduzindo a nós, a lembrar-me o caminho no qual nos deixamos envolver pelo Outro diferente de nós, de outra Cultura. Pela descoberta, pela aceitação da diferença, pela sedução, pelo prazer, pelo afecto. Mais uma vez.

E estes caminhos interiores que vamos percorrendo são, em primeiro lugar, visíveis por fora.

Todos os espectáculos das Araquerar têm a sua história, especialmente pelos momentos que se vivem nos camarins, antes da entrada no tablao. Mas há um momento clássico, que se repete em todos, que acontece quando a nossa Professora desespera connosco e grita num desabafo: “Eu não aguento! Eu vou desistir!!! Vocês dão cabo de mim!”.

Dizia isto nos primeiros espectáculos, porque resistíamos à maquilhagem, à saia garrida, ao cabelo apanhado e colado com gel. Disse-o quando num desses espectáculos, uma de nós resolveu levar pezinhos de mousse, em vez das collants de seda que brilham com as luzes do palco. E nesse dia o desabafo saiu-lhe mais dramático e em desesperança: “Isto parece a Brigada da Peuguinha!!!

E hoje repete o lamento porque as suas duas mãos não chegam para nos ajudar na maquilhagem, para agrafar a infinidade de ganchos e elásticos aos cabelos rebeldes… Porque naqueles momentos que antecedem a avaliação do nosso Eu pelos Outros anónimos, a esmagamos com mil e uma dúvidas sobre a imagem que vive no nosso espelho mental.

E a culpa é dela. E a Sónia sabe-o. Porque nos seduziu. Porque nos ampara a construção do EU. Que ainda não acabou. Porque ela diz muitas vezes que o flamenco faz bem à auto-estima.

E isto reflecte-se nos cabelos, que crescem até limites nunca antes vistos e que são quotidianamente penteados com os dedos, num gesto de auto-sedução. Os cabelos longos ou à “heavy metal”, teimosamente colados à cabeça com gel e ganchos, em dias de espectáculo.

E também nas orelhas que se furam para podermos usar argolas. Ou nos périplos que fazemos pelo Martim Moniz até encontrarmos os “castiçais” azuis turquesa, exactamente da cor da risca da saia. Ou nas unhas que antes só admitiam o verniz transparente ou branco, e agora sentimos as mãos despidas sem o “vermelho love”. E ainda nas calças de ganga, peça fundamental do guarda-roupa sem a qual não nos sentimos nós próprias, a ficarem esquecidas nos cabides e a serem substituídas pelas saias coloridas.

O flamenco faz bem à auto-estima e isso vê-se por fora. Mas sente-se por dentro. As ciganas são vaidosas… Difícil seria não o serem!


(Esta história é para as Araquerar. Pelo caminho percorrido. Pela vaidade de sermos NÓS! OLÉ!!! E fica aqui mais um desafio: que tal enviarem-me fotografias, para eu não ficar sozinha ali em cima? É que tenho vergonha, ainda...)

Edição Fotográfica: Cromo do Espaço (Gracías!)