25.9.23

Nomes sem eco



Sangram nomes dispersos 
em bocas invadidas por aves migratórias. 
Nomes sem eco em infindáveis viagens. 
Caminhantes multiplamente estrangeiros 
submersos em cansaço 
com a fuga a latejar no olhar. 

O ritmo dos passos 
segue com lentidão o som do vento 
no fio da indiferença 
que goteja sobre as cidades agrestes 
com esquinas irregulares 
sem abrigo algum. 

Graça Pires 
De O improviso de viver, 2023, p. 50

18.9.23

Em seara alheia




20200416 - Num bairro moderno 

Hoje fui passear o cão 
Da melancolia. Saí. Não 
Aguentava já o surdo 
Latir do vírus, o vagir 
Da morte lenta nos ecrãs 
Das reportagens repetidas 
Do sofrimento que sempre vem 
Da natureza sempre cruel 
Digam lá o que disserem 
Os cantares da passarada 
Precipitando a primavera 
Nos líricos beirais. Hoje 
Fui de cão. Não há outro 
A que dar trela. 

Jorge Fazenda Lourenço 
In: Fim de boca e mais poemas (1981-2023). Lages do Pico: Companhia das Ilhas, 2023, 
p. 273

11.9.23

Dos desejos

Noell S. Oszvald 

Enfrentamos o rosto ansioso dos desejos 
com o enigma da posse 
no limite de cada gesto. 

Inquietos falamos longamente 
até a lentidão das mãos 
insubmissas nos perturbar. 
Até recolhermos nas palavras caladas 
a seda dos murmúrios. 
Até que se solte o rio já sem margens 
tão dono de seu júbilo. 

Pode ser nosso o ofício da ternura. 
É minha a ânfora da sede.

Graça Pires 
De O improviso de viver, 2023, p. 24

4.9.23

Uma luz indecifrável

Masha Raymers

Enquanto os meus passos 
tecem a sua teia pelo chão, 
neles se envolve, 
em desacertada simetria, 
o esquivo jeito das mãos, 
como se a febre dos gestos 
habitasse um desorientado tumulto, 
em busca de um silêncio 
que esboça o avanço dos dias 
com agudíssimos dedos. 
Estranha de mim, 
alienada à intuição de um recato, 
dramatizo o mais íntimo som das contradições. 
Subverto a linguagem do assombro 
num conflito insubornável. 
Amarrada às sílabas, 
roço a língua nas pedras 
para inflamar as palavras. 
Utilizo a minha biografia 
para sangrar o subtil veneno 
com que entreteço as sombras. 
Em meu redor, uma luz indecifrável 
alastra sobre os sentidos, 
sobre o interior da voz, 
devassando a vigília dos nomes 
que se me ajustam. 

Graça Pires 
De Antígona passou por aqui, 2021, p. 12