Seleccionar o ângulo de um rosto, sem lhe macular a luz, como se, a meia voz, pudéssemos reter os múltiplos reflexos do júbilo e das mágoas.
25.6.18
Em seara alheia
distância
andava distante
sem encontrar sorriso que se visse
ou verbo que lhe acudisse
remendava a voz aqui e ali
com descontinuados brados
povoados de insetos quietos
de pernas para o ar
esquecidos do ato de voar.
e dobrava os rios que tinha inventado
com os peixes dentro
e as algas, as cachoeiras, os seixos
e depois de tudo desconsertado
descerrava um molho de nuvens
e desenhava no peito
uma porta para o deserto.
farto de abastecer a solidão,
labuta agora arduamente
na construção de um oásis
que virá secar a sua sede.
Lídia Borges
In: CONTINUUM: antologia poética. Pinturas de Luís Liberato, fotografias de Soledade Centeno. Braga: Poética, 2018, p. 38
16.6.18
Foi em Junho
Para o meu filho Pedro
Desenho no ar um desvio para o passado
e teço, em meu peito, um regozijo solar.
Cerro os olhos para que uma luz, quase oculta,
tome meu espanto, me devolva
o sentido único da claridade,
e o límpido tumulto que ousou minhas águas.
Foi em junho.
Antes do solstício.
Antes de nascer o sol.
Eu tinha uma túnica de linfa cosida
no lugar mais sagrado do ventre.
Um aceno de aves circundou meu sangue
e recolheu meus signos
como cálamo acendido na boca dos sonhos.
A eternidade a pulsar no comovido prodígio de viver!
Graça Pires, 2018
11.6.18
Quando o espelho me devolvia a frieza
Duane Michals
A página vazia era um golpe
oculto a ferir-me o peito.
Todos os dias eu amanhecia
sem palavras com a opressão
do susto sobre os ombros.
O princípio e o fim dos tempos
confundiam-se, numa escrita ausente,
em tropeço com a vontade.
Com mãos indecisas eu tacteava
a nostalgia de meus olhos
quando o espelho me devolvia
uma frieza dispersa pelo rosto,
a devorar-me a boca,
a transformar-se num abismo
que engolia as lágrimas, o riso, os
sonhos.
Graça Pires
In: As vozes de Isaque:
derivações poéticas a partir da obra “O último poeta”, de Paulo M. Morais.
Braga: Poética, 2016, p. 17
4.6.18
Mulher com xaile vermelho
Amedeo Modigliani
Uma
brisa fria vem roçar-me a cara
nesta
primavera desabrigada,
onde
os pássaros rodopiam
uma
valsa estremecida,
como
se temessem o vento.
Falo
pouco nestes dias,
em
que me cobre
uma
luz lívida e muda.
Cubro
os pulsos com os folhos da blusa
para jurar silêncio, quando a mancha
do
luar atingir o peitoril da janela.
Na
borda da cadeira em que me sento
poiso,
ao de leve, as minhas mãos
frias,
quase de pedra.
Tenho
a cingir-me o peito
um
xaile de merino para abafar
as
batidas desoladas do coração.
Graça Pires
De Fui quase todas as mulheres de Modigliani, 2017, p. 43
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