26.2.18

Luz

John Martin

Persigo a noite na margem proibida das trevas.
Um júbilo nocturno incendeia todos os espelhos
e sob o coração das sombras vislumbro,
em meu olhar, o mais intenso brilho.
Não sei mais o que dizer.
É tão frágil tudo o que nos pode purificar!

Graça Pires
De Caderno de significados, 2013, p. 18

19.2.18

Em seara alheia




Infância

Lembras-te
Do chão frio da estrada?
Da roupa de lã grosseira
Remendada, rasgada
E vestida de qualquer maneira?
Das jogas quentes na mão
Que o Inverno
Teimava em arrefecer?
Lembras-te da roupa molhada
Pregada ao corpo franzino
Arrepiado e dorido?

Lembras-te
Da masseira vazia e nua
Da sopa crua,
Do candeeiro,
Do halo, luz mortiça
E do vento a entrar
Pelas vidraças?

Lembras-te? 
Quando a tempestade caía
E tudo parecia desabar!?
Que medo!
Mas, e falar?
A voz perdia-se na noite fria da tempestade
Lá fora
E cá dentro.
E o medo adormecia a medo
E a manhã acontecia devagar.

Fátima Almeida
In: A sombra dos dias.- Fafe: Labirinto; 2016, p. 24-25

12.2.18

Jeanne

Amedeo Modigliani


Havia uvas maduras na curva
mais acentuada da sebe do quintal
e pão quente sobre a mesa do alpendre,
quando se me enroscou no olhar
a serpente entontecida do fascínio.

O verão concentrara em meus cabelos
todo o aroma dos ventos do sul.
Por minha boca se media, em rubor,
o caudal, alheio ainda, do rio
que nascia em tua boca.

E aprendi a amar-te no silêncio
do teu perfil sem mágoas.

Graça Pires
De Fui quase todas as mulheres de Modigliani, 2017

5.2.18

As palavras em pausa

Norvz Austria


As palavras em pausa são como farpas
destruindo o sentido do silêncio.
Que perverso vento arrastou todos os versos,
todas as frases, todas as sílabas?
Que horas fatigadas gelaram os lábios
ancorados num esquecimento sem voz?
Por algum atalho se encontrará
o rasto do veneno, porque a mudez
pode ser um ritual onde se formam
as sombras dobadas no medo.
Graça Pires
In: As vozes de Isaque: derivações poéticas a partir da obra “O último poeta”, de Paulo M. Morais. Braga: Poética, 2016, p. 17