Tenho seguido com surpresa a reacção que Irene Pimentel, Diana Andringa e Maria Manuela Cruzeiro desencadearam no seu site Caminhos da Memória contra a projectada instalação de uma Pousada na Fortaleza de Peniche. Tenho por todas elas a maior consideração intelectual, no caso de duas também temperada por estima pessoal e amizade.Os depoimentos que fizeram no referido site, recorrendo por vezes à crítica fácil e ao argumento deselegante, tentam estabelecer uma linha de fronteira entre os que defendem a memória dos que sofreram a repressão política e os que transigem nessa defesa, cedendo a outros interesses. Irene Pimentel, Diana Andringa e Maria Manuela Cruzeiro não cuidaram de se informar, de analisar a situação da Fortaleza e de eventualmente submeter a contraditório essa análise. Julgaram sumariamente declarações do Presidente da Câmara, que leram em jornais, num tribunal de ética e de espírito cívico de que se apresentam como as únicas detentoras autorizadas, e sentenciaram-no.
Se exigências mínimas de rigor tivessem sido respeitadas, teriam começado por se informar sobre o acontecimento que está na origem da sua sobressaltada tomada de posição. E em vez de projecto, que tomam como tendo sido aprovado, e protocolo, que julgam celebrado com a Câmara, talvez descobrissem que o que foi assinado a 25 de Setembro foi um aditamento a um contrato de exploração anterior, entre o Estado e a Enatur.
Portanto, ponto um: a construção de uma Pousada na Fortaleza de Peniche há muitos anos que fora decidida por um Governo da Democracia (salvo erro, presidido pelo Eng.º António Guterres) sem que tivesse gerado nenhum clamor “ético” e “cívico”.
O aditamento agora assinado altera porém num aspecto a concessão anterior, permitindo ao grupo privado que entretanto adquiriu 49% do capital da Enatur e assumiu a respectiva gestão, elevar o número previsto de quartos do estabelecimento hoteleiro de Peniche. A Câmara de Peniche dessa altura (2002) acompanhou todo processo. A elaboração do projecto foi entregue ao Arquitecto Siza Vieira, competindo-lhe apresentar uma proposta sobre as áreas que seria necessário ao Estado (proprietário do monumento) ceder para a construção da pousada. Com base no parecer do projectista, seriam posteriormente definidas em protocolo adicional, as áreas cedidas, as áreas não cedidas e as áreas comuns. Nesse protocolo adicional estava prevista a intervenção da Câmara. Aconteceu, no entanto, que o projectista não concluiu o seu trabalho, certamente por desinteresse da Enatur.
Ponto dois: não há nenhum protocolo relativo a este tema em que a Câmara Municipal de Peniche tenha intervindo. As redactoras do site não são muito explícitas quanto ao que defendem para a Fortaleza. Irene Pimentel defende que “devia ser ali erguido um espaço museológico ‘a sério’, actual e com preocupações estéticas, bem como pedagógicas”. Pela minha parte, só me posso congratular com esta indicação. Bem vinda ao clube! Há mais de duas décadas que venho advogando esse objectivo e colaborado com diversos executivos municipais com vista à sua prossecução. Mas confesso que para lá da boa vontade municipal, não encontrei nenhum movimento de ideias nem disponibilidades materiais para empreender essa criação. E seria injusto omitir que o actual executivo camarário tomou o tema em mãos, efectivou contactos e desencadeou um processo aberto de contributos cívicos, científicos e museológicos que lhe permitam dotar-se de um programa museológico. Estou certo que o contributo generoso de Irene Pimentel, Diana Andringa e Maria Manuela Cruzeiro para esse programa será bem acolhido.
Resta discutir se todo o espaço da Fortaleza deve ser musealizado. Aqui certamente divergimos. Mas se as minhas amigas visitarem o local, tomarem em atenção as dimensões da Fortaleza e o seu estado de conservação, ouvirem a população local e tentarem perceber a história secular do monumento e, sobretudo, fizerem contas às fontes de financiamento de um espaço museológico com as características daquele, no mínimo hão-de concordar que o sentido da responsabilidade pública não está distribuído só a um dos lados desta controvérsia.
Em suma, ponto três: há muita matéria para discutir (e trabalhar) se dela eliminarmos preconceitos e ligeireza.