terça-feira, março 07, 2017

O tempo de um gelado no McDonalds

Sentia-me gulosa e fui ao McDonalds de Almada comer um McFlurry de Oreo. O gelado ia-me sabendo bem, enquanto meditava nas calorias e observava à volta, como é costume.
À minha frente, na zona da sombra, afastados duas filas de mesas, um grupo de casais de velhotes convivia em separado. Numa mesa, três senhoras nos seus sessentas, setentas, mostravam fotografias e comentavam-nas. Na mesa imediatamente atrás, três homens pela mesma idade, falavam de locais, estradas e viagens. Percebi que era um grupo de casais costumeiro em excursões, que provavelmente se terão conhecido nesse contexto.
Havia entre eles uma separação enorme, como se depois não saíssem dali, e não fossem para casa dormir juntos na mesma cama. O que eu via, ao contemplá-los, era o enorme muro de interesses que separa homens e mulheres, desde sempre. Aos homens não cabe ver e comentar comentar fotos?! As mulheres não serão capazes de participar em conversas sobre viagens?!
Revivi outros momentos do meu passado: era habitual, no final dos almoços e jantares, e nos piqueniques, haver um momento em que homens e mulheres formavam grupos distintos entre os quais eu circulava livremente, escutando.
As mulheres falavam da vida, de casos da vida. Os homens, de trabalho, de negócios. Ambos contavam histórias do passados: situações insólitas, misteriosas. Histórias de espíritos e de casas assombradas ou de gente enganada, ou maluca. As conversas dos adultos eram ricas em informação sobre mundo, dos dois lados; não podia, portanto, compreender a separação.
Agora, no MacDonalds, com o McFlurry quase no fim, pensava que talvez fosse uma questão de honra masculina. A separação demonstraria respeito pelas mulheres. Não sobrariam dúvidas, para a comunidade, que os homens juntos nas suas conversas não estariam a cobiçar a mulher alheia. E mesmo sendo estes já velhos, a tradição cumpria-se no espaço uniforme e incaracterístico do McDonalds.
Envolvida nestes pensamentos, os três homens levantaram-se, ajeitaram a gola da camisa, passaram pela mesa das mulheres não lhes dedicando qualquer atenção, nem uma palavra, e saíram porta fora. Estas não repararam nos homens que saíam. Continuaram envolvidas nas fotos.
Os dois grupos não estavam relacionados. Não eram casais. Nada tinham nada a ver uns com os outros.

Roupa em 2ª mão

Foto: Yuki Onodera


Tenho muita roupa que me está larga ou apertada ou que já não uso. Debato-me com duas hipóteses, doá-la à Humana, fundação que financia projectos de desenvolvimento em África, através da venda de peças em 2ª mão, ou tentar negociá-la numa loja em Lisboa, ainda não sei qual. Aceito indicações. Talvez opte por uma solução mista, que consistirá em doar uma parte e vender outra.
Estou a escrever isto porque enquanto seleccionava as peças de que quero desfazer-me, deparei-me com t-shirts dos anos 80, blusas e túnicas que a minha mãe me fez quando ainda podia. Já não as uso, mas não sou capaz de me ver livre delas. Estive quase, mas ao olhar para os costurados da minha mãe, desisti. Seria como deitar fora uma parte da minha vida, e mesmo considerando que seja bom isso de se deitar fora partes inteiras da vida, estas não quero. Tenho-lhes demasiado afecto. Estou presa por vício a essa juventude, a esse amor dedicado. Há uma t-shirt de riscas vermelhas que nem me fica particularmente bem, mas que usei muito; vivi muitos dias com ela no corpo, e não consigo...
Há trapos que vou ter de carregar sempre comigo, e que alguém, um dia, deitará fora por mim ou venderá a bom preço para uma loja vintage.

Morrer é uma festa



Não há assuntos inabordáveis, mas há assuntos tramados de abordar. Este é um deles.
Se a minha mãe soubesse que eu escrevia sobre estes temas, não me deixava. Felizmente, não sabe.

Imaginemos que uma jovem ex-concorrente do Big Brother de há meia dúzia de anos, agora com 27 anos, mãe de dois filhos, vítima de cancro irremediável e em fase terminal, decide deixar-se filmar e fotografar, e à família, em situações íntimas do quotidano, incluindo a própria morte, como forma de ganhar dinheiro para garantir o futuro das crianças? Imaginem que transforma os seus últimos meses de vida numa extensão do Big Brother com a plausível desculpa do dinheiro que ganhará para os meninos?
É censurável ou louvável? Ou ambos? A questão atormenta-me. Há nesta história algo de mórbido que transcende o bem estar das crianças e me dá comichão nas palmas das mãos.

Quem é Jade Goody? O que fez desde o Big Brother britânico de 2002? Escreveu um livro especialmente interessante? Ganhou um prémio científico? Salvou um menino que se afogava na praia das Maçãs? Deu uma valente bofetadona ao Sócrates e garantiu-lhe que nunca mais na vida iria ter uma maioria absoluta? Não, não realizou nenhuma das boas acções atrás enumeradas. Participou no referido Big Brother, teve cancro, morreu e deixou dois filhos. Ponto final. Eis os motivos porque fomos todos obrigados a conhecê-la.

O que distingue esta jovem mãe de outras jovens mães que morrerão no próximo mês, vítimas da mesma doença?
Em princípio, nada. O filão da piedade relativamente aos órfãos, e à idade da vítima, poderá ser explorado até à exaustão no que toca a qualquer outra mulher tão jovem.
Como é que este caso, igual a tantos outros, nos entra pelas janelas dentro e, pior, tenhamos de gramar a xaropada como assunto de grande seriedade?
Se calhar, porque a vida privada das doninhas vende jornais e revistas, e esta jovem escolheu transformar os seus últimos meses de vida numa extensão do Big Brother, alcançando assim o estatuto de estrela (trágica) que sempre desejou; cheia de vida ou cheia de morte, mas cheia de sucesso - o que fez, vendendo as imagens da sua sorridente e fotogénica agonia aos media, que nem hesitaram. Isto gera muito pathos, e, consequentemente, muita katarsis. É uma telenovela das boas, porque é real.

Nas últimas semanas perdi a conta às capas de revista e artigos onde se lia, "ainda está viva", "tem muitas dores e já se despediu dos filhos", "mal consegue andar mas ainda sorri", "casou e baptizou as crianças apenas algumas semanas antes de morrer", "comeu a última fatia de bolo", "comeu a última fatia de pizza"... Juro que já andava a pensar, cá com os meus botões, e sem desabafar com ninguém, nem o pai morre, nem a gente almoça!




Concordo que isto é muito chato de dizer por causa dos filhos! Custa uma pessoa estar aqui a levantar esta lebre terrível. E nisso ela foi esperta. A alegada necessidade de assegurar a sobrevivência dos órfãos calou as vozes mais críticas. Pelo menos em Portugal. Quem é que, pensando no bem das criancinhas, se atreve a sugerir que Jade Goody não fez isto pelos filhos, mas, se calhar, apenas por si? As crianças ficariam mesmo desamparadas?! Não terão avós, padrinhos, tios? Ninguém?! Serão todos toxicodependentes e alcoólicos?
Se a desculpa não fossem as crianças, se ela tivesse dito, "ok, esta é a minha vida e a minha morte, olhem todos, vejam bem, quero mesmo que vejam, e quero ser bem paga por isso", eu estava aqui caladinha.

Li hoje, no DN, que o acompanhamento, pelos media, dos seus últimos meses de vida, lhe rendeu mais de 4 milhões de euros. Confesso não saber bem o que são 4 milhões de euros, por isso perdoem-me estas contas tão por alto. Imagino, vagamente, que com 4 milhões de euros pudesse comprar 8 moradias de 10 assoalhadas, com piscina, aquecimento central, vidros duplos e videovigilância na Herdade da Aroeira.

Aqui, no meu bairro, 4 milhões de euros chegavam-me para adquirir 40 apartamentos de 3 assoalhadas cada, com duas casas de banho, vidros duplos e uma ou outra mariquice. Ou seja, comprava a correnteza inteira dos prédios onde moro.
Se comprasse 40 apartamentos, viveria num deles e alugava os restantes a 400 euros a peça. Não seria caro. Isto render-me-ia, ao mês, 15.600 euros, o que me daria para viver melhor que o franciscano padre Melícias, que, coitadinho, mal chega aos 8 mil. Escusado será dizer que deixava de trabalhar na fábrica, e me dedicaria inteiramente à escrita de postes, qual Saramago na sua ilha.

O que eu quero dizer com isto tudo é que alguém vai ficar muito bem na vida, e não sei se serão os filhos da Jade, mas alguém... Agora que os filhos serviram lindamente como desculpa para arrecadar esta bela fortuna, e um enorme desejo enorme de estrelato, serviram.
Até estou em crer que, para os meninos, esta exposição da mãe não deve ter sido grande exemplo emocional. Se lhes morre mais alguém sem a devida atenção dos media, os miúdos acharão estranho. Morrer é uma festa, dizia a mamã que foi para o céu. Mas se alguém, nomeadamente, a Segurança Social, for capaz de agarrar estas crianças e de as trazer de volta ao mundo real, pode ser que a coisa ainda se componha.

Uma mega-operação para apreender charro aos putos

Esta garrafinha seria o meu sonho!


Eu gostaria que a GNR fizesse mega-operações stop para apanhar cidadãos na posse de um flagrante desrespeito pelo outro, mas a GNR tem ordens para mandar parar os putos que vão em viagens de finalistas com o charrito no bolso.
Parece que o Estado considera o acto de fumar charros um crime grave. Beber shots de vodka com rum, não. Comer batatas fritas com ketchup e maionese também não.
Acho uma injustiça para as pessoas que fumam charros, que os colegas, que já vão na terceira garrafa de litro de cerveja choca, não sejam igualmente identificados e presentes a uma comissão. Tenho dificuldade em perceber quem é que estará mais intoxicado.
Posso comprar, se me apetecer, 25 garrafas de Borba tinto, sentar-me a bebê-las à porta de casa, que ninguém chama a polícia para me apanhar em flagrante delito. Mas se me puser a enrolar um cigarrito de canabis lá em baixo, tudo como deve ser, sem incomodar ninguém, sem vomitar, sem insultar os outros, chamam a polícia.
Penso que deve ser muito chato para os agentes da autoridade, que na sua maioria têm cara de fumar grandes charradas ou beber do tinto para aguentar o stress da profissão, andar a identificar pessoas com doses individuais ou colectivas de haxixe. É ridículo. Não tem ponta por onde se lhe pegue.
Enquanto se ocupam com finalistas, que bem precisam de relaxar após um longo 2º período de Matemática da brava, 32 criminosos a sério assaltam caixas multibanco, postos de gasolina e casas particulares.
Ao Estado cabe proteger os cidadãos, mas protegê-los de quê? Que distinção faz a Lei entre liberdade individual e crime no que respeita aos consumos? Por que motivo me é concedida a liberdade de me viciar em tabaco e álcool, mas não em drogas? Os perigos para a saúde pública são maiores no caso da droga? Se nos reportarmos aos consumos excessivos, não encontro diferenças, em termos de saúde pública, entre um alcoólico em grau adiantado e um toxicodependente. É igualmente oneroso para o Estado e para a sociedade. Para além de que o espectáculo é igualmente decadente.
Por outro lado, os estudos sobre adições já se cansaram de provar que a apetência para consumos excessivos resultando em dependências não tem qualquer relação com a proximidade e facilidade de acesso ao produto; depende, sim, das carências emocionais e particulares de cada indivíduo. E agora chegámos ao que me move: o que eu queria mesmo era um conjunto de mega-operações semanais da GNR, em zonas estratégicas de incidência, habilitadas a detectar indivíduos com carências emocionais relevantes, tudo seguido da devida identificação, e encaminhamento para o respectivo posto de saúde e médico de família, onde seriam seleccionados para início de tratamento com uma equipa de saúde mental. Acredito muito nos benefícios da saúde mental, que opera milagres nas feridas que todos carregamos e com as quais não sabemos lidar, porque nos roubaram os utensílios para as combater. Nada pode substituir um bom profissional em psicologia, psicanálise, psicoterapia ou hipnoterapia. A não ser o charro. Na justa medida, é igualmente muito libertador. Mas melhor, mesmo melhor é a saúde mental acompanhada, de vez quando, de um bom copo de vinho e de um belo charro.



Nota:
Por favor, ver o vídeo RTP no línque lá em cima. ("A nossa camioneta é só puros... A nossa camioneta é um exemplo para os jovens!")


Isto é tudo muito chato, porque a droga não é barata, e os miúdos já têm de fazer muitos bolos para vender, durante o ano, e rifas, para conseguir dinheiro para as viagens e bebidas em Lloret del Mar. Agora, agrava-se a situação económica da malta, portanto a dos pais, ao obrigá-los a comprar haxixe em Espanha, provavelmente de pior qualidade e mais caro. Se querem treinar os cães porque é que não vão para o aeroporto esperar os voos da América Latina?

Utensílios de cozinha

Hoje comprei uma escumadeira longa, produto de alta resistência a temperaturas até 204º. Parece-me um bom utensílio de cozinha. Nas últimas semanas tenho comprado vários da mesma qualidade, a pouco mais de 1 euro. Todos trazem como brinde um jornal chamado Diário de Notícias.

À deriva pela Europa

"Contudo era muito melhor que viajar a pé: pelo menos podíamos gozar da paisagem à nossa vontade."
Esta é a quinta frase da página 160 do livro que me encontro a ler, a saber, A Trégua, de Primo Levi.

A Gi, do Garden of Philodemus, incluiu-me nesta corrente, o que aceitei, embora não a passe a mais ninguém, lamentando imenso quebrar as regras que alguém estabeleceu, mas, sinceramente, até algumas inscritas em Diário da República me esforço por quebrar.
A utilidade destas correntes parece-me ser a de pôr os envolvidos a falar sobre o item referido, porque a mera transcrição da quinta frase de determinada página seria improdutiva.

Ando a ler Primo Levi pela ordem inversa: comecei com Os que Sucumbem e os que se Salvam, livro escrito muitos anos após o Holocausto, e uma reflexão sobre essa realidade. Passei agora para A Trégua, obra de progressão difícil, uma vez que descreve minuciosamente os meses que se seguiram à Libertação, com excesso de indicações e movimentações geográficas. Faz-me lembrar um livro de viagens. A acção dispersa-se por múltiplos comboios em movimento, mas sem destino, porque toda aquela gente deslocada pela guerra se encontra à deriva por uma Europa cheia de fronteiras, por onde entraram facilmente, mas donde dificilmente se sai; estranhos, corruptos campos de refugiados; esquemas para arranjar dinheiro, comida, lugar onde dormir; personagens, aventuras, uma liberdade aprisionada pela fome, pelo cansaço, pela doença e pelas dificuldades de comunicação, sendo que convém falar o mínimo alemão possível, mesmo que a necessidade de sobrevivência tenha levado à aprendizagem do vocabulário necessário nos campos de morte.

Com o final da Guerra, os sobreviventes dos campos de concentração, os que aí foram deixados para morrer, porque estavam demasiado doentes para caminhar, ficam totalmente abandonados. Os russos prestam-lhes uma desorganizada e incerta ajuda alimentar e sanitária, mas estão verdadeiramente sós, despojados, e longe de casa. A ideia que tinha de que os prisioneiros dos campos tinham sido prestamente socorridos, declarado o final da II Grande Guerra, caiu por terra.

Assim que acabar A Trégua, voltar-me-ei para Se Isto É um Homem, obra que já tentei ler por várias vezes, mas que tive de abandonar por falta de coragem. Mas agora é que vai ser.

Uma doce tarde de sesta

Não vou dizer que ela saltou para cima da cama e me lambeu a cara toda. Seria mentira. Ela já estava em cima da cama há muito tempo, procurou a minha cara, a arfar, e lambeu-ma toda.
Tinha-a tirado do seu cestinho, umas horas antes, dizendo-lhe, agora vamos dormir uma sestinha as duas, e metia-a comigo na cama. Eu tinha frio, e ela é um cobertor, o meu conforto. Dormimos uma bela sesta.
Depois ela acordou-me. Eram horas de comer. Ri-me e disse-lhe, conheço-te tão bem, conheço-te tão bem, e correspondi aos seus beijos e fiz-lhe festas. Sei-te de cor, disse ainda, e comecei a cantar-lhe o Sei-te de Cor do Paulo Gonzo, sei porque becos te escondes/ sei ao pormenor o teu melhor e o pior/ sei de ti mais do que queria /numa palavra diria / sei-te de cor, e percebia-se que ela estava a gostar. É praticamente o único ser que gosta de me ouvir cantar. Ela e o meu pai. A minha prima afastada diz que o meu pai compreendia-se, porque era meu pai.

Objectos perdidos

Andei a arrumar e limpar a casa. Trabalho para caramba! Encontrei objectos perdidos atrás dos móveis, debaixo da cama, dentro de sacos guardados em sítios inenarráveis: o alicate de cortar as unhas às cadelas, um relógio swatch que julgava perdido na rua, chinelos de quarto que andavam sem parceiro, documentos importantes, lápis, borrachas, esferográficas, o carregador da bateria da máquina fotográfica, graças a Deus, enfim, um mundo de coisas perdidas há meses.
O que também tem andado completamente perdido, e não encontrei em lugar algum, mas, atenção!, procurei atrás de todas as portas, até arrastei o sofá e abri gavetas, foi a minha libido. É provável que a tenha perdido fora de casa. Não sei. Nem me lembro quando foi a última vez que lhe pus os olhos em cima. Vou pedir à minha mãe que lhe reze um responso ao Santo António, que costuma resultar. Se não aparecer, o responsável pelo seu desaparecimento padecerá de grande urticária. É isso.

Esclarecimentos teológicos

Almoço de sexta-feira santa.

Mãe - O José Gabriel anda no Norte a mostrar as procissões.
Isabela - O José Gabriel?! Quem é o José Gabriel?
Mãe - ... aquele do programa da manhã... na televisão.
Isabela - Não sei...
M. - Aquilo é lindo no Norte. As festas, as procissões, e eles andam por lá a filmar tudo.
I. - (pensei, mas não disse, que precisava de uma profissão dessas - andar por todo o lado a filmar tudo) Hum, hum.
M. - Andam a filmar por todo o Portugal, mas o Norte é a parte mais bonita.
I. - Oh, mãe, por que é que se fazem procissões?
M. - O quê?!
I. - O que significam as procissões, as pessoas todas atrás do andor...
M. - São coisas muito antigas...
I. - Eu sei, mas o que é que significa?
M. - Sempre existiram, as procissões sempre existiram. É uma tradição sair o Corpo de Deus da igreja e andar com ele pelas ruas.
I. - Sim, mas por que não adoram o corpo de Deus na igreja? Porque não fazem o ritual lá dentro? É uma forma de espalhar a fé?
M. - Olha, é uma coisa muito antiga, sempre se fez assim, desde o tempo em que eu era pequena.
I. - Pronto, okay.

O novo mundo

Thomas Beatie


O que perturba o meu olhar nas imagens do homem-grávido? A extrema beleza do seu rosto, encimando um corpo de homem muito redondo e grávido; as cicatrizes visíveis no lado esquerdo da barriga e sob as mamas; o tamanho da barriga ampliado pela ausência das mesmas. A gravidez que me foi vedada.

A natureza é caprichosa. Tem o seu feitiozinho. Permite que um útero atrofiado pela testosterona possa hospedar um feto, e bem, e pari-lo. No entanto, mulheres jovens submetem-se a violentos tratamentos hormonais e não conseguem manter os embriões nelas colocados através da fertilização in vitro, e mulheres de todas as idades, com aparelhos reprodutores aparentemente normais, não conseguem reproduzir-se através da abençoada fornicação regular.

Thomas Beatie inseminou-se caseiramente com esperma encomendado via net, mais a ajuda da esposa, e o sucesso está à vista. Venham cá dizer-me que Deus Nosso Senhor está contra as mudanças de sexo. É evidente que se está nas tintas! Eu nem imagino o que é que a Igreja Católica fez com este caso! Excomungou a mãe, que também é pai, porque transgrediu as leis divinas ao mudar de sexo? Parece-me lógico. Mas terá, igualmente, de o abençoar pelo milagre da maternidade. Todas as mães são iguais para a benção do Senhor! Enfim, tudo isto me comove tremendamente.

Já todos percebemos que não somos livres. O fascismo rodeia-nos, transcendendo a esfera política. O social é fascista. Andamos todos a toque do que os outros decidiram, não sabendo quem, nem porquê, pelo que a liberdade individual é mais difícil de alcançar que sete medalhas de ouro nos Jogos Olímpicos. Construímos toda a nossa vida sobre estes princípios segundo os quais se espera que vivamos, porque é assim, é assim que é, e não se discute.

Eu, muito sinceramente, para ser livre necessitava que a minha mãe, os meus amigos, os meus colegas de trabalho e os meus vizinhos me deixassem. E, simplesmente, não deixam. Tenho a obrigação de corresponder ao que esperam de mim. A uma ideia de mim. Há regras. Tenho de me pentear (não penteio), não rir alto (rio como me apetece), fazer afirmações inteligentes e sérias (adoro dizer disparates), não saltar dos eixos (não consigo manter-me neles por mais de 6 horas seguidas). De alguma forma, defraudo sempre as expectativas de alguém.

As pessoas têm sempre a sua opiniãozinha sobre a vida alheia. Por exemplo, à D. Vitória, vizinha da minha mãe, incomoda-a bastante que eu tenha agora duas amolgadelas no carro. No meu carro. As minhas amolgadelas. E isto são coisas vulgares. Imagino se me desse para aparecer lá no prédio com um namorado negro ou uma namorada branca ou, meu Deus, se dentro dos limites do que é a minha esfera de liberdade individual, eu tivesse compreendido, a certa altura, que tinha de mudar de sexo biológico. Haveria uma certa lutazinha a travar!





A vida dos outros constitui sempre uma grande história. Casamentos, divórcios, nascimentos, tudo bem desde que dentro das regras. O que as transcende é pecado, aberração, doença ou não parece bem. Nunca se trata apenas da nossa vida, assunto que nos cabe só a nós, e que não interferindo no percurso dos outros, se encontra dentro do chamado limite das liberdades individuais. Dou um exemplo: é-me permitido realizar operações plásticas e mudar completamente o meu aspecto. Posso aumentar as mamas, diminuir o rabo, transformar o nariz, tirar a papada, aumentar a testa, diminuir as orelhas, esticar a barriga, subir as bochechas, pálpebras e sobrancelhas, aumentar os lábios, delinear a cintura, arrancar verrugas, repuxar os olhos à chinesa, tirar os joanetes, enfim, escortanhar-me toda. Tenho essa liberdade. É um direito que me assiste. Agora o que não me assiste nada é querer mudar de sexo. Trata-se igualmente do meu corpo e da minha mente, mas se pretendo mudar de sexo, é certo que partirão do princípio de que padeço de uma patologia mental gravíssima e mo proibirão. Em Portugal, e em muitos países, é assim. Sou culpada antes de ser inocente. Tenho de ser o que os outros acham que devo ser. É por isso que não somos livres. Na verdade, uns mais, outros menos, nunca somos só o que desejaríamos ser.

A mim basta-me que alguém se sinta um homem ou uma mulher para que o seja. Quem sou eu para duvidar do que sentem profundamente os outros relativamente à sua identidade de género ou sexual? Quem sou eu para impor a outros uma experiência humana que os repugna, que não lhes pertence?





Os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos são mutáveis e aleatórios. Dependem da época, cultura e estádio socio-político do sistema no qual vivemos. Um transsexual grávido é motivo de grande perturbação social, hoje, mas daqui a umas décadas nada obstará a que homens como Thomas Beatie se candidatem a barrigas de aluguer. Nos anos 60, uma mãe solteira era uma pária social. As raparigas que engravidavam iam parir longe, dando os filhos a criar a amas. Isto, se tivessem de seu. Caso contrário, havia sempre a roda dos enjeitados.

Agrada-me a desorientação dos momentos de convulsão social, os conflitos de identidade pessoal, cultural, política, religiosa. Predomina um sentimento de perda, de insegurança; é necessário prover às necessidades de sobrevivência básicas; tudo corre num turbilhão e parece que o mundo se perdeu. É o Apocalipse. É de facto o Apocalipse, porque algo morre, enquanto algo nasce. São alturas propícias à alteração de convenções, de visões do mundo. Ao longo da história da humanidade, sucedem-se épocas de mudança que implicaram uma grande violência. Foram momentos de progresso mesmo quando se basearam em algo indiscutivelmente mau. As cinzas dessa morte fertilizaram a germinação de novos filhos. Há um processo de água e fogo encadeados, que se apagam e ateiam sucessivamente, se infectam e purificam, e constituem um contínuo de progresso.

O caso dos transsexuais grávidos - nos EUA, agora em Espanha, interessa-me muito. Constitui uma revolução na forma de encarar a família e a procriação, porque permite separá-las. Aliás, a taxa de natalidade do mundo ocidental precisa desesperadamente desta separação. Interessa-me que o transsexual americano nestas imagens, e que já se encontra grávido do segundo filho, seja a mãe biológica da criança que pariu, bem como seu pai afectivo. Interessa-me que a criança não tenha qualquer ADN da mãe afectiva, e que não se faça a menor ideia sobre quem é o pai biológico. Estes acontecimentos põem-me perante a realidade de uma cultura em mudança, e de relacionamentos que se baseiam em verdadeiros laços afectivos, os quais transcendem os antigos laços de sangue, tão inseguros quanto estes.




A solidariedadezinha

Chegou hoje ao meu conhecimento que o Banco Alimentar contra a Fome, ao saber da existência de um projecto de protecção a animais abandonados, chamado, e bem, Banco Alimentar Animal, resolveu, através de uma dispendiosa sociedade de advogados, impedir a associação animal de usar a designação banco alimentar, como se se tratasse de uma marca na sua posse, acenando-lhes com processo judicial.

Os advogados da Ajuda Alimentar contra a Fome escrevem que:
«A alegada confusão «poderá ofender os milhares de dadores e voluntários do Banco Alimentar Contra a Fome», que podem associar a iniciativa do Banco Alimentar Animal à actividade do Banco Alimentar contra a Fome, «criando ainda a ideia de que a contribuição e ajuda das pessoas mais carenciadas [sic] se poderá equiparar ao apoio a animais, o que não é aceitável».
Tenho de parafrasear a mensagem para perceber bem: a designação Banco Alimentar Animal pode ofender os dadores e voluntários ao levá-los a pensar que a solidariedade animal e humana são equiparáveis, o que é inaceitável. Portanto, não queremos confusões. Ajudamos pessoas, mas não animais. Ajudar animais não dá prestígio, e tanto não dá que até estamos com medo que os nossos doadores se ofendam.
É mais ou menos o mesmo que proibir a existência de um documento intitulado Direitos do Animal porque já existe um outro chamado Direitos da Criança ou do Ser Humano. Pode ofender os seres humanos e as crianças.
Isto aborrece-me, porque em tempos pensei criar um Banco Alimentar da Blogosfera ou mesmo um Banco Alimentar para os Pássaros do Bairro, mas não pretendo levar com um processo da parte de que tem finanças para custear advogados tão ilustres.
Não sei se já aqui escrevi que tenho uma intuição de cão rafeiro, e que falho apenas em 20 por cento dos casos. Se calhar já, e não vos queria maçar outra vez, mas a verdade é que tenho mesmo uma intuição de rafeiro e me engano pouco. Sou como o Cavaco, mas em gordo, e em fêmea, e um bocado mais inteligente. Se me tivessem posto a farejar vestígios de cadáver no caso Maddie, já Kate e Gerry McCann... teriam visto o final ao caso.

Há uns anos que tenho esta coisa contra o Banco Alimentar contra a Fome, e não sei explicar porquê. Nunca me fizeram mal. Escapa a qualquer tentativa de entendimento racional da minha parte. Quem me conhece sabe que sou toda das solidariedades. Mas o Banco Alimentar contra a Fome...
Agora que percebi o formato selectivo da solidariedade que prestam, e como sou um cão muito rafeiro, tornou-se tudo claro de repente: os donativos que tiver a fazer serão encaminhados, doravante, para o Banco Alimentar Animal. Não vou dizer que tenho muita pena. Tenho pena é dos animais cuja referência pode ofender a solidariedadezinha.


Sobreviver I

A faculdade humana de cavar um nicho para si, de segregar uma carapaça, de levantar à sua volta uma ténue barreira de defesa, mesmo em circunstâncias aparentemente desesperadas, é espantosa e mereceria um estudo aprofundado. Trata-se de uma preciosa capacidade de adaptação, em parte passiva e inconsciente, em parte activa: pregar um prego em cima da cama para pendurar os sapatos à noite; estipular pactos tácitos de não agressão com os vizinhos; intuir e aceitar os hábitos e as leis de cada Kommando e de cada Block. Graças a esta actividade, passadas algumas semanas, consegue-se alcançar um certo equilíbrio, um certo grau de segurança perante os imprevistos: conseguiu-se um ninho, o trauma da transferência está ultrapassado.

Primo Levi, Se Isto é um Homem, 2001, Lisboa, Editorial Teorema, col. Estórias, tradução de Simonetta Cabrita Neto, p. 57

Amo-te como nunca amei ninguém



Às vezes perguntam-me o que lia eu quando era pequena e ficam à espera que eu diga Cervantes, Urbano Tavares Rodrigues, José Rodrigues Miguéis, Alves Redol, mas eu respondo que lia fotonovelas Corin Tellado e livros do Tio Patinhas, da Mónica, do Cebolinha, do Riquinho, do Mandrake, do Tarzan, do Super-Homem, e mais romances de faca e alguidar da Sarah Beirão. Claro que também li os autores lá de cima, mas não tem piada nenhuma enumerá-los. O que tem piada são as fotonovelas Corin Tellado, com as quais eu aprendi que se dizia, "Amo-te como nunca amei ninguém", e que os homens se iam embora com outras, e as mulheres ficavam a amá-los para sempre; e, quando regressavam, elas perdoavam-lhes tudo, enquanto eles as abraçavam e lhes diziam, "tu, sim, és a mulher da minha vida!" Acho que as expressões "possuir-te", "seres minha", também as aprendi nessa altura, embora não fizesse grande ideia do significado. Eu achava que o mundo dos adultos era mesmo assim, e não diferia muito. Já me estava a preparar para dizer "amo-te como nunca amei ninguém". Grande escola! Mas não resultou, não resultou.
Lembro o assunto porque li hoje que a autora das novelas Corin Tellado morreu, e, caramba, não consigo ignorar o que eu gostava de ler aquilo, emprestado, aos molhos.

Descendo a avenida do gimnodesportivo

Na condução em cidade estamos sempre a parar em semáforos e bichas, e costumo manter o pé a jeito sobre a embraiagem, preparada para arrancar, em ponto, ou meio ponto. Mas depois lembro-me que o meu pai também tinha este hábito, e que a minha mãe passava a vida a ralhar-lhe, dizendo, é assim que rebentas com as embraiagens todas, e então tiro o pé.
Considero esta impossibilidade de nos libertarmos de lembranças aparentemente insignificantes do passado, simultaneamente engraçada, comovente e trágica. A minha mãe já não se deve lembrar. O meu pai não ligava ao assunto. Se calhar até não se rebentam embraiagens assim. Mas na minha memória há uma embraiagem prestes a ser destruída mediante a pressão do meu pé, e isso existe em mim como uma ferida ou uma bofetada que não posso compreender.

Tenho o direito a desejar ser comida

Estive hoje a ouvir Vasco Pulido Valente comentar questões que lhe foram colocadas por Manuela Moura Guedes no telejornal da TVI. Passemos à frente as questões, a Manuela Moura Guedes e o jornal televisivo que apresenta.
Vasco Pulido Valente (VPV) fala com os bofes à bofe, como se estivesse a correr a maratona enquanto opina. O microfone não dissimula uns assobios que lhe escapam de qualquer válvula interna meio desapertada. Enfim, o coração ou os pulmões de VPV, ou ambos, estão nas últimas. Eu, que não sou médica, só tive vontade de correr aos estúdios da TVI com umas pastilhas que lhe pediria para deixar desfazer debaixo da língua.
O seu estado de saúde pouco famoso fez-me lembrar uma crónica da sua autoria, publicada no Público de Domingo passado, versando um assunto que tem a ver com saúde, ou melhor, com o direito à sua falta, e com o qual concordei inteiramente. Escrevia VPV:

Um leitor deste jornal, médico em Braga, assistiu estupefacto á minha oposição a uma iniciativa tão útil e tão nobre como a campanha contra a obesidade. (...) A diferença entre mim e o leitor de Braga é a de que o leitor de Braga parece não dar muita importância ao que chama, com certo desprezo, a "presumível liberdade" do individuo, que para mim constitui o fundamento absoluto de uma existência com alguma alegria e alguma nobreza (...). Cada individuo deve ser dono do seu corpo, desde que, evidentemente, não prejudique o outro. Ninguém tem a obrigação de ser um especimen em bom funcionamento, destinado a trabalhar com assiduidade e zelo e a durar até uma extrema e duvidosa velhice. (...) O prazer de comer e de beber (álcool), o prazer do tabaco e outros prazeres que não vale a pena mencionar (como o do sal no pão) são prazeres que se pagam. (... ) Mas não é aceitável que uma sociedade tente trocar os benefícios do SNS pela autonomia e privacidade do cidadão; ou que pretenda regular o comportamento dos seus membros, mesmo numa área à superfície tão inócua como a saúde.

Não serei ingénua: ele canta de galo; sei muito bem que quando lhe estalar a angina de peito, VPV não recorrerá ao SNS, não esperará horas sem fim numa urgência ou corredor de hospital público, atamancado entre indigentes gemeabundos em macas. Não precisa. Também sei que VPV pertence aquela elite que se pode dar ao luxo de não ter saúde, de comprar medicamentos para a tensão arterial sem desconto da Caixa, de não ter de comparecer em juntas médicas que lhe recusam uma pensão por invalidez mesmo que esteja minado de doenças, mas o que escreve é, apesar de tudo, uma verdade incontornável. Somos donos do nosso corpo para a vida e para a morte. Somos seus donos a um ponto tal que, desde que com ele não incomodemos ninguém, tudo nos é permitido fazer-lhe. Inclusive, dar-lhe um fim prematuro, tal como nos apetecer. Isto pode parecer muito estranho, mas do ponto de vista da liberdade individual, o indivíduo, que há uns anos, na Alemanha, combinou ser comido por outro, não praticou crime algum. Eles não dispôs de outros, mas apenas de si. O prazer de ser comido era um direito que lhe assistia. Sofrer de perturbações graves da personalidade, igualmente. Nenhuma doença pode ser constituída um crime, a menos que, e convém sempre repetir isto, não interfira com os direitos alheios. Se no meio dos meus ataques me der para ferir física ou verbalmente o outro, aí termina a minha liberdade e o Estado está no seu legítimo direito de agir, limitar-me, e internar-me à força. Fora isso, meus amigos... é assunto meu.
O corpo interessa-me porque me interesso pelo fenómeno da guerra, e a que travamos com o nosso corpo, e contra o dos outros, é de uma violência que me deixa perplexa. Ao abordar o tema corpo, e as mudanças que o novo mundo trouxe a esta esfera da existência, tenho como princípio esse direito inegável a uma total liberdade sobre si, que como muito bem diz VPV, não pertence ao Estado nem a nenhuma campanha.
Tenho o direito de encurtar a minha vida 10 anos por comer pão com manteiga? Tenho o direito de me transformar num homem e engravidar a seguir?Tenho o direito de mandar amputar o dedo médio da mão direita? De me tatuar? Furar? Rapar? De gostar de levar porrada? Olá, se tenho, desde que não obrigue ninguém a fazer-mo. É o meu corpo e a minha vida, e contra isto, batatas. Algumas questões éticas poderão aqui levantar-se, mas ficarão para outro episódio, contando que os leitores não deixarão me mas lembrar nesta caixa de comentários.


Ontem acordei outra vez mais gorda

Foto: Leonard Nimoy


A foto de Leonard Nimoy apresenta-nos um objecto de carne em abstracto. Não é uma mulher nem um homem nem um porco ou um borrego. É carne gorda. Sem cabeça. A forma como a cabeça é escondida revela claramente que este objecto de carne não é uma pessoa, não tem identidade, não pertence ao mundo. É a gorda, ou o gordo.
Para quem carrega esse estigma desde sempre, e mesmo que a ele tenha sobrevivido digna e teimosamente, esta é uma imagem violenta, que expõe uma desigualdade baseada não em padrões culturais, raciais ou de classe, mas estéticos. É uma imagem dura, desconfortável ao olhar. Toca-nos a todos. Não queremos ser esse feio objecto de rejeição. Essa carne.
Somos desiguais porque somos gordos ou porque somos magros ou porque vestimos roupa esquisita ou rapamos o cabelo ou o temos demasiado comprido. O dia-a-dia assenta nas relações que mantemos com os nossos iguais ou desiguais, sendo que procuramos tanto uns como outros, e ambos nos confirmam. Ao longo da vida tenho-me sentido tratada de forma desigual por ser gorda, e não tolero bem que questionem as minhas razões - é assunto demasiado sensível para suportar que me digam algo como "ilusão tua" - , mas, por outro lado, pressinto que todos se sentem desiguais por motivos diversos. A desigualdade é uma excelente forma de controlo do grau de satisfação das massas, logo, das massas.


A liberdade enquanto ideal comprometido



A liberdade individual é um ideal altamente comprometido pelos afectos. Nenhuma pessoa envolvida no mundo, com pais, filhos, amigos, cães pode ser livre. Algo nos prende aos outros, mesmo que não a nós. A obrigação de existência que devemos aos outros cauciona, por amor, apenas por amor, as nossas acções.
Imaginemos que desejava ir viver para Nova Iorque, e trabalhar à noite, lavando pratos num restaurante de esquina, onde ganharia o mesmo que na minha fábrica. Sou livre para tomar tal decisão. Não o faço porque existe a minha mãe, e porque ela depende de mim, e eu aceitei tacitamente essa obrigação. Se eu desaparecesse do mapa, embora alguém tivesse que aparecer para assegurar as suas necessidades básicas, a minha mãe seria mais infeliz, e eu não viveria em paz com a minha consciência. De maneira que a liberdade total dificilmente existe. O alemão que se deixou comer pelo canibal de Berlim, dispôs de si e não dos outros do ponto de vista físico, no entanto, não tendo interferido nos direitos individuais das pessoas que lhe seriam chegadas, pais, irmãos e amigos, terá causado nestes dor e perplexidade. Ou seja, de alguma forma acabou por dispor igualmente dos outros.

Ocorre-me igualmente o fenómeno transgender. Homens e mulheres que gostam de manter uma aparência igual à do sexo oposto. No caso dos homens, tudo se torna mais complicado, por causa dos bigodes, das pernas mal feitas, da falta de mamas, etc. Há toda uma indústria destinada a satisfazer as necessidades transgender, com cintas especiais, mamas de silicone, cremes depilatórios, bases de maquilhagem especialmente densas, instruções sobre como esconder um pénis de forma que se possa usar um biquini, como qualquer mulher. O problema dos trangenders é não serem necessariamente homossexuais. Muitos deles são heterossexuais convictos, casaram e têm filhos e não pretendem mudar o seu estado civil.
Vejamos, eu casava com um individuo que me parecia uma maravilha, e passados uns meses descobria-o a vestir-se com a minhas roupas e a pavonear-se frente ao espelho. Costuma ser assim que as esposas descobrem. Mesmo para uma mulher que se considera de espírito aberto, como eu, isto constituía uma situação deveras delicada, sobretudo por não ter conhecido, à partida, a verdadeira dimensão do outro, com a qual me confrontava. Esta seria uma situação em que o direito do outro, ou seja, o direito do meu marido transgender a vestir-se como mulher colidiria com os meus direitos, as minhas liberdades. Não pretendendo visar-me, ele visar-me-ia, porque isso me causaria uma imensa mágoa. Sentir-me-ia enganada.
No entanto, vi noutro dia um documentário sobre este fenómeno no Reino Unido e foi interessante perceber que a maior parte das mulheres que se deparam com esta situação, passado o choque inicial, aceitam conviver com ela. Aceitam viver e sair à rua com um homem vestido e maquilhado de mulher. Mas isto já coloca uma terceira questão, de ordem cultural, sobre a educação das mulheres, que preferirei deixar para outro texto.

O novo mundo II

Nascer no Corpo Errado é o título da reportagem sobre transexualidade, que poderão ver hoje, na RTP, às 21h00.
É uma reportagem a não perder, porque as pessoas entrevistadas têm muito a dizer sobre a injustiça e a humilhação a que foram submetidos por saberem não pertencer ao corpo com que nasceram. É sempre bom colocarmo-nos na pele do outro e tentar perceber como será a vida sentida pelos não culpados que a normalidade rejeita.

Vídeo RTP, aqui.

Conheço a Carla desta reportagem e tenho muita pena que ela não tenha mostrado totalmente rosto e voz.

Estou a avisar-te

Só um esclarecimento. Sócrates nunca afirmou ontem que as críticas do Presidente da República não se referiam ao Governo, e que este não se deixaria instrumentalizar pela Oposição. O que ele fez, e isso parece-me muito claro, foi um aviso ao Presidente da República, ou, como bem diz a minha prima afastada, enviou-lhe "uma carta sem selo". O que disse foi, "Senhor Presidente, as suas críticas não eram para este Governo, pois nãooo?! O Senhor Presidente não se vai juntar à Oposição, okaaay?!"
Foi isto que eu ouvi.

Eles andam aí

Um membro deste site, de inspiração nacionalista, publicou, no espaço que lhe está reservado, um texto da minha autoria, sobre a realidade colonialista, intitulado Pretos, Brancos e Mulatos. Não costumo chatear-me com este tipo de coisas, mas não quero textos meus em sites nacionalistas, racistas e xenófobos. Não pertenço a esses lugares.
Espero que a pessoa em questão se aperceba deste poste e rapidamente suprima o meu texto. Não consigo perceber onde deixar uma mensagem no referido site. Se me ajudarem, agradeço.
De qualquer forma, sei que há advogados entre os meus leitores, e gostaria que me dissessem o que devo fazer para agir contra quem usa um texto meu, sem a minha autorização, num site com conotações que repudio.

O que já não existe, existe

Lourenço Marques (foto tirada pelo meu pai no final dos anos 50)

Mudamos com o tempo? O que fomos já não somos?
Surgiram-me estas questões em conversa com a minha prima afastada. Falávamos sobre a toponímia do lugar onde nasci, insistindo eu ter nascido numa cidade que já não existe, e que esse lugar se chamava Lourenço Marques, um nome líquido e bonito. Ela respondeu, prosaicamente, nasceste no Maputo. E eu arrepiei-me e reafirmei-lhe que não, nunca; em nenhum documento, ainda hoje, escrevo ter nascido no Maputo. Se quiserem, emendem, mas eu nasci numa outra realidade, num outro tempo e até num outro espaço desse tempo, que é algo que a minha prima não pode compreender. Era outro espaço, lamento. Era outro espaço, repetia. Outro espaço social e psicológico. Para além de que Maputo é um nome de preto, disse-lhe. Os brancos nunca engoliram esse nome feio. Gozaram-no. Não conseguiria assumir o nome dessa cidade como lugar do meu nascimento, mesmo tentando ser muito racional e consciente: repudio-o naturalmente.
O espaço é o mesmo, dizia-me, o espaço é exactamente o mesmo, ria-se ela, isso é mesmo de colonialista, desculpa lá! Eu pensava que tu eras uma pós-colonialista, e afinal venho a descobrir que não passas de uma colonialista igual ao teu pai.
Fiquei um bocado calada. Sou uma colonialista igual ao meu pai? Olho para o passado e para o mundo e para a realidade como o meu pai olhou? Não. Mas alguma coisa terá ficado. Por exemplo, esta valoração dos nomes de branco e dos nomes de preto. Há nomes de preto bonitos, disse-lhe eu, mas naquele momento não me consegui lembrar de nenhum. Depois lembrei-me de Nampula. Nunca fui a Nampula, e pelo nome devia ser um lugar belíssimo. Mas havia lugares belíssimos que se chamavam Marracuene. Algumas das imagens de África mais belas que mantenho vêm de Marracuene. Era lá que via hipopótamos e jacarés e nenúfares sobre o rio, e havia as laranjas mais doces do mundo.
Quando o meu filho, negro como um tição, que há-de ser, me perguntar onde nasci, o que lhe responderei? Ah, querido da mamã, em Lourenço Marques, que agora se chama Maputo, que é um nome de preto feíssimo. E ri-me. A minha existência social e política está toda manchada, na pretensão de bem e de mal, pela estigmatização racial do mundo em que cresci. Não posso não ser o que fui, senti e vivi. O meu projecto de vida construiu-se sobre essa base, e o que escolho, escolho a favor ou contra, equilibrando-me sozinha entre o legítimo e o justo - conceitos tão enganosamente semelhantes.
O meu passado não acabou no momento em que o colonialismo acabou, nem esse é um tema importante para mim por mero acaso. Portanto, como diz a minha prima, afinal sou uma colonialista de segunda geração. Fruto de um colonialismo tardio, agonizante, que já não sabia proteger-se. Mas não fui, como o meu pai, produto de uma ideologia salazarista. E isso, penso eu, isso e o que naturalmente sou, para além do que bebi nesse tempo e nesse espaço, salvou-me um pouco. Tudo o resto, na minha vida, foi mudança, transição, foi o que haveria de ser, herança desse tempo inseguro, sem certezas.

Gostaria muito de dialogar sobre estes sentimentos com um alemão que tivesse 13 anos no final da II Guerra Mundial. Como lidou com as memórias do seu passado? Ou com um russo que tivesse nascido em Leninegrado em 1963, já nem digo Petrogrado, para lhe perguntar o que sente sobre o actual nome da cidade onde nasceu.

Um primeiro-ministo com muita pica

O debate com o Primeiro-Ministro, hoje, no Canal 1, foi crispado. Sócrates assumiu uma estratégia de defesa viril, indignada, mas sem perder a compostura, questionando a pertinência e oportunidade das questões colocadas pelos jornalistas, remetendo-os, por exemplo, para a consulta de documentos on line para esclarecimento de dúvidas relacionadas com investimentos públicos. Foi um osso duro de roer para Judite de Sousa e Alberto de Carvalho. Sócrates não estava ali para ouvir questões, para ser questionado, motivo pelo qual os jornalistas não tiveram sequer grande oportunidade de conseguir formular cabalmente as perguntas. Sócrates levava o seu conjunto de pergunta-resposta previamente estudado e ensaiado, e respondeu só ao que queria responder, e como queria fazê-lo. Flagrante foi o momento em que Judite de Sousa remete para o dvd do Freeport, agarrando a deixa que o próprio primeiro-ministro lhe "autoriza". Nesse momento, sorrindo ironicamente, Sócrates responde-lhe algo mais ou menos deste género, "mas foi preciso esperar que eu dissesse isto para me perguntar agora pelo dvd? Poderia tê-lo feito em qualquer outro momento." Tornou-se claro que a entrevista estava a ser dirigida pelo primeiro-ministro, que a ordem das questões era a que ele queria, à revelia dos jornalistas a quem essa função competia, e que nada ali o surpreendeu. Igualmente difícil foi interrompê-lo, ou interromper o seu raciocínio, não só porque reclamava disso, mas porque efectivamente não se interrompia. Ele levou a sua história; queria contá-la e não estava disposto a que alguém o impedisse. E resultou.
Respondeu prontamente, sem hesitações, não esclarecendo as dúvidas essenciais que o levaram ali, mas não deixando de responder lateral e eficazmente aos assuntos levantados.
Eu nunca dei um chavo político pelo primeiro-ministro, e continuo a não dar, essencialmente por ser um demagogo arrogante e prepotente, mas tenho de admitir que o homem não é parvo, fala muitíssimo melhor que qualquer licenciado em engenharia com diploma verdadeiro, e deixa em quem o escuta a impresssão de que sabe imenso sobre tudo, tem muitas certezas e nunca se engana. Mantém uma postura dialogal de uma certa firmeza espontânea, até um tanto emocionada, mas contida, que muito agrada aos portugueses. Para além do mais, é um homem muitíssimo bem parecido, isto para usar uma expressão dos tempos da minha mãe. E só isso, nesta democracia, são votos contados.
Não digo que ele tenha vencido este round com nobreza ou talento, mas usou a força necessária nos golpes fundamentais. Sendo um atleta de segunda classe, tem a capacidade de ganhar competições, se as preparar bem. Eu, para ser sincera, para sair ilesa de uma entrevista com questões tão delicadas como as que ele enfrentou hoje, teria de me encharcar com uma mistura de diazepan e cocaína. E mesmo assim não sei. Espero que não tenha sido o caso dele. Mas se for, também não me causa grande incómodo, desde que não ganhe qualquer maioria absoluta no próximo milénio.

Pensando nos meus amigos e leitores no estrangeiro, vídeo RTP, aqui.


Dos sentimentos do bacamarte

Este texto demorará cerca de um minuto a ser lido, mas a quase meia dúzia de pensamentos que o acontecimento relatado me suscitou, acorreram ao meu cérebro em não mais que um segundo.
Hoje, ao sair da fábrica, reparei que alguém entalara um bilhete manuscrito no limpa pará-brisas do meu carro. Solteio-o, desdobrei-o, e, em letras maiúsculas, escritas a esferográfica preta, lia-se a seguinte frase: QUERIA TE SENTIR.
O primeiro pensamento foi de ordem gramatical: o pronome pessoal forma de complemento, te, encontrava-se mal colocado do ponto de vista sintáctico. Respeitava a variante brasileira e não a portuguesa. Intolerável, se o autor do bilhete não for brasileiro.
Logo a seguir pensei que deviam ter-se enganado no carro. É uma possibilidade. O terceiro pensamento foi mais ou menos isto, "mas a que canção de forró ou do Tony Carreira ou do Toy é que terão ido roubar esta trampa de frase?!" E o quarto, e mais importante, já uma reflexão ideológica: se o bilhete me foi realmente dirigido, sem enganos, se é de um homem para mim, e admitindo que poderá não ser mero gozo, não passa de um equívoco dos sentidos. E o motivo é simples. Os homens não me querem sentir coisa nenhuma. Os homens não fazem a menor ideia do que seja sentir-me, nem às outras. O que querem é prosaica e eficazmente espetar o bacamarte na carne tenra. Porque sentir, sinta quem lê!

A baleia zangou-se


Ultimamente ando muito sensível às questões da gordura, e gostaria de abordar o assunto, embora a minha prima afastada considere que há temáticas menos próprias para um espaço como este, e que a minha credibilidade pode ser afectada, etc.
Considero que falar da minha gordura, e dos traumas dos gordos, não é apenas muito terapêutico, como acaba por ser um serviço prestado à comunidade de gordos anónimos que se sentem abaixo de humanos.
Ora, hoje, lá na fábrica, tivemos um plenário para discutir formas de luta contra o Governo, e alguém levantou a ideia da greve da fome, pelo que avancei, rindo-me, na galhofa, e prestamente declarei oferecer o meu corpo à causa como forma de juntar o útil ao agradável. Oferecia-me, portanto, como voluntária. Todos se riram, que eu tenho sempre muita graça, como todos os gordos têm muita graça, excepto quando estão sozinhos em casa frente ao espelho com os pneus da barriga.
Uma colega da linha de montagem, que por acaso até nem bate muito bem da bola, e deve ser por isso!, aproveitou para se pronunciar sobre o assunto: "era da maneira que passavas de baleia a sereia". Ninguém comentou, fez-se um silêncio breve, e avançou-se; mas eu não consegui sorrir até ao final do plenário, e perdi a graça toda a partir desse momento. Por segundos, regressei aos tempos da escola, quando ninguém me chamava pelo meu nome, porque eu tinha outro: era a baleia.
Sinceramente, acho que não há psicanálise nem psicologia que cure as feridas da rejeição. Após tanta terapia, como não tenho eu armas para reagir, como posso eu deixar-me incomodar pela referência a uma exclusão continuada de que fui alvo há tanto tempo? Bem, porque foi algo muito sério na minha vida, e porque, por muito consciente que possa estar da realidade, do que fui, do que sou e do que quero, continua sendo uma ferida não totalmente curada.
Faço questão de expor esta fraqueza, porque pretendo enfrentá-la: não quero mais tê-la, não quero mais sentir-me a gorda. Se meio mundo não vê em mim se não a gorda, que seja um problema de meio mundo, mas não meu.

Sei que este assunto não interessa aos leitores, e não interessa a ninguém de forma geral, e não tem graça nem literatura: que se lixe - estou-me literalmente nas tintas.

O tempo de um gelado no McDonalds

Sentia-me gulosa e fui ao McDonalds de Almada comer um McFlurry de Oreo. O gelado ia-me sabendo bem, enquanto meditava nas calorias e obser...