Comprei um vestido novo,
um vestido de interior,
próprio de casa,
longo,
para uma hora de uma certa tarde,
para algumas noites no meu apartamento,
sei para quem,
agrada-me porque é comprido e leve,
e alem disso explica que vou ficar muito tempo em casa,
a partir de hoje.
Para o provar,
não queria que Ivan estivesse aqui,
Malina muito menos;
por ele não estar,
posso olhar-me à vontade no espelho,
dou voltas e mais voltas diante do enorme espelho do corredor,
a mil léguas,
a uma distância abissal, a
stronómica dos homens.
Por uma hora,
posso viver fora do tempo e do espaço,
verdadeiramente contente,
transportada a uma lenda onde o perfume de um sabonete,
o ardor duma água-de-colónia,
o frufru de roupa interior,
o gesto da mão mergulhando borlas na caixa do pó,
ou retocando meditativamente uma sobrancelha,
são a única realidade.
É uma obra que se vai realizando,
uma mulher que se cria para um vestido.
No mais profundo segredo se esboça de novo o que é uma mulher,
pensa-se no começo do mundo,
num halo que não dá luz para ninguém.
É preciso escovar vinte vezes os cabelos,
untarem-se os pés de unhas envernizadas,
é preciso depilar pernas e axilas,
abrir e fechar o chuveiro,
uma nuvem de pó inunda a casa de banho,
olha-se no espelho,
ainda é domingo,
consulta-se o espelho,
na parede,
talvez já seja domingo.
Ingeborg Bachmann
Fonte e imagem:Presente da amiga Be.,pelo orkut...Obrigada!