Durante os trabalhos da Comissão Parlamentar de Inquérito à gestão do BES e do Grupo Espírito Santo puderam apurar-se inúmeras práticas que consolidaram todas as teses do Partido Comunista Português sobre a incompatibilidade da banca privada e o interesse público, todas as teses sobre a farsa da regulação e da supervisão e todas as teses sobre a subordinação do poder político ao poder económico. Além disso, ficou ainda provado o entrelaçamento profundo entre a corrupção, as privatizações e a política de direita.
O julgamento do caso BES, que se inicia dez anos após o início dos trabalhos da Comissão de Inquérito, vem relembrar várias das questões levantadas ao longo dos trabalhos dessa comissão e algumas merecem uma reflexão também política, para lá da judicial.
Foi divulgado na comunicação social desta semana que uma das técnicas da auditora externa KPMG testemunhou sobre o caso BES apontando um largo conjunto de questões sobre os métodos da instituição bancária, nomeadamente sobre a falta de acesso a informação, sobre emissões de obrigações sem paralelo na banca, sobre recompra de obrigações, sobre o financiamento da componente não financeira do grupo monopolista – o GES –, sobre a falta de eficácia e «deficiências» no controlo interno do banco.
A técnica da KPMG – Inês Viegas – deixou claro que havia dificuldades em obter informações sobre todas as actividades do grupo e que comunicava todos esses problemas à sua chefia. Este ensaio, que constitui uma espécie de «fomos apanhados de surpresa» é uma confissão da cumplicidade das auditoras que não deixa ilesa a anterior auditora – a PWC. A PWC colocara questões já em 2001, denunciando a exposição extrema e de elevado risco do BES ao GES, num relatório que nunca viu a luz do dia e que aparentemente terá levado ao fim da contratação da PWC como auditora externa do BES, apesar de ter permanecido como auditora de algumas empresas do GES.
A forma como a KPMG tentou sempre ao longo da história do colapso do BES desresponsabilizar-se pela situação a que o banco chegou seria cómica, não fossem os quase 10 mil milhões de euros que a actuação combinada do conjunto de instituições (auditoras, governo, Banco de Portugal, BES) já fez aos portugueses desembolsar.
Para um breve, mas útil, exercício de memória, relembremos algumas conclusões a que o inquérito parlamentar nos permitiu chegar em 2015:
1. O Banco de Portugal tinha uma funcionária técnica em supervisão directa no BES, no interior da instituição, que nunca se apercebeu de absolutamente nada, nem tomou ou accionou qualquer medida preventiva perante a exposição desmedida do BES ao GES.
2. A KPMG Portugal era dirigida por Sikander Sattar, senior partner, e este tinha relativo conhecimento do dossier BES mas nunca se apercebeu – ao longo de vários anos de auditoria – dos problemas das contas do BES e do GES, sendo que nunca colocara ênfases ou reservas nas contas do banco. Sikander Sattar foi convocado em duas posições para o inquérito parlamentar: como presidente da KPMG Portugal e como presidente da KPMG Angola. O ridículo começa a tornar-se óbvio.
3. A KPMG Portugal não sabia nada sobre a exposição do BES ao BESA (BES Angola).
4. A KPMG Angola auditava o BESA e tinha perfeita noção dos valores transferidos (com autorização do Banco de Portugal) do BES para o BESA.
5. As contas de 2001 foram auditadas pela PWC, que levantou várias questões numa versão preliminar do relatório de auditoria, curiosamente, nunca tornado público. A versão final das contas surge expurgada dessas questões. Esse documento foi ocultado à comissão de inquérito até ter surgido na comunicação social, pese embora o PCP o tenha mencionado inúmeras vezes nas sessões de inquérito.
6. A PWC não transmitiu à KPMG quaisquer reservas sobre o comportamento do BES.
7. O Banco de Portugal limitava-se a aceitar os relatórios de auditoria das auditoras, sem ter qualquer forma para proceder à sua verificação.
Estes factos, que são também possíveis conclusões dos trabalhos da comissão de inquérito, demonstram o grau de envolvimento entre auditores externos e os auditados, bem como a incapacidade de fiscalização real por parte da autoridade bancária, no caso, o Banco de Portugal. A situação bizarra de o presidente da KPMG Portugal ser exactamente a mesma pessoa que o presidente da KPMG Portugal e o presidente da KPMG Angola saber de coisas que não podia, por sigilo, comunicar ao presidente da KPMG Portugal é só um ingrediente extra num enredo já de si escandaloso.
A existência de uma versão preliminar de um relatório de auditoria de 2001, da PWC, em que a exposição do BES ao GES já é referida como preocupante, bem como são expostas algumas outras práticas do BES e da sua administração, mostra bem que os problemas são conhecidos e existem pelo menos desde o início da década. O facto de o PCP ter mencionado vezes sem conta esse relatório em plenas sessões da comissão de inquérito e o facto de isso nunca ter sido sequer mencionado na comunicação social é também apenas mais um elemento deste processo, elemento que ilustra a forma como foi silenciado o trabalho do PCP, em prejuízo da qualidade do inquérito. É relevante relembrar que a comunicação social presente na sala aproveitava comummente o tempo de intervenção do PCP para fazer as suas pausas e retirar-se do espaço.
A existência desse relatório anunciada pelo PCP desde o início das audições parlamentares, ignorada pela comunicação social e negada pelos responsáveis do BES e pela própria KPMG até ao dia em que a RTP anuncia ser detentora de uma cópia, prova bem que os testemunhos de Inês Viegas só podem revelar três coisas, que podem ser simultâneas: a inexistência da comunicação entre auditoras no momento da passagem de pasta, prevista na lei; a cumplicidade da auditora externa com as práticas do BES; a incapacidade de obter informação correcta e de articular o trabalho da auditoria externa com o controlo interno da instituição.
Em qualquer dos casos, todas as possibilidades apontam para a evidência de que a arquitectura da supervisão bancária não é mais do que uma grande farsa, um grande fingimento com vista à tranquilização do público e dos depositantes. A KPMG, tal como a PWC, não falharam na auditoria externa, não se enganaram, não foram alvos de ocultação de informações relevantes (e se fossem, a denúncia a posteriori de pouco adianta), foram antes os cúmplices da administração do BES e do GES, contribuindo activamente para ocultar falsificações e contas marteladas, permitindo um desequilíbrio nas contas do Grupo que chegou a atingir 18 mil milhões de euros, 10 dos quais praticamente assumidos pelos trabalhadores portugueses através dos empréstimos ao fundo de resolução e das garantias dadas a activos tóxicos no balanço do Novo Banco aquando da sua entrega à Lone Star.
A promiscuidade entre governo e banca só é suplantada pela promiscuidade entre banca e auditoras externas: veja-se a naturalidade com que quadros das auditoras passam a integrar quadros da banca, quase como se isso constituísse o passo lógico e expectável da progressão na carreira. É quase como se a auditoria externa fosse o reservatório de recrutamento da banca para funções que visam, no interior do banco, assegurar a ocultação de práticas, martelar contas, contribuir para a aparente legalidade e estabilidade das instituições. Os auditores bem sucedidos na carreira passam rapidamente a consiglieris.
Inês Viegas pode agora em tribunal tentar disfarçar o papel que a KPMG teve ao longo do percurso do BES e isso será parte da história do processo. Mas o que é mesmo preocupante é não ter sido nada feito quanto à promiscuidade entre auditoras e banca e quanto à capacidade real do Banco de Portugal realizar as suas próprias auditorias, sem recurso às auditoras externas que trabalham para a banca. E tudo isso continua por resolver porque, desde 2015, a Assembleia da República rejeita sistematicamente as propostas do PCP em que se introduz um período de nojo de 4 anos para transferências de quadros das auditoras para a banca, por exemplo, ou em que se determina algo tão simples como a autonomia e independência da supervisão bancária, assegurando a existência de uma equipa de auditoria própria do Banco de Portugal.
A intervenção da KPMG no caso BES é também mais um elemento que comprova o papel das chamadas «quatro grandes» (Deloitte, E&Y, PWC e KPMG) como biombos que nos ocultam as práticas da banca privada, num contexto em que existe elevada rotatividade de quadros e interesses entre auditado e auditor, papel esse a que urge colocar um fim através de medidas de controlo público da banca.
O «currículo», ou talvez melhor cadastro, daquelas quatro multinacionais especializadas em auditorias, consultorias, e classificação dos «ratings» de Estados e empresas/grupos económicos, em particular na área financeira, evidencia a total fraude e mistificação que é a entrega ao capital privado, sujeito à lógica inexorável da maximização dos lucros, da monitorização e fiscalização da legalidade jurídica e cumprimento de normas administrativas e técnicas dos negócios do capitalismo internacional e nacional. A sua manutenção nessas funções de juízes da violação do ordenamento e regulamentação legais e constitucionais da actividade económica empresarial privada significa a total cumplicidade dos Estados das grandes potências. E torna irrecusável, perante os exemplos que se sucederam nas últimas décadas em Portugal e no mundo, a exigência de que tais competências e funções sejam realizados por entidades públicas, sujeitas ao escrutínio democrático dos cidadãos através dos órgãos legislativo, executivo e judicial de Estados soberanos. Eliminam-se assim radicalmente os riscos de corrupção, nepotismo e fraude? Não. Mas permitem que esses fenómenos sejam postos a nu, com outra prontidão e celeridade, avaliados e julgados através das instituições estatais sujeitas elas próprias à normatividade legal e constitucional do Estado de direito, mesmo no quadro, complexo e contraditório, dos interesses de classe que comandam o Estado capitalista.
Miguel Tiago
AbrilAbril, 5.11.2024