Se fosse vivo, teria feito ontem 76 anos. Hoje publicamos a história de Al Berto.
Quis o acaso que o poeta Al Berto, pseudónimo literário de Alberto Raposo Pidwell Tavares, nascesse em Coimbra, em 1948, onde o pai estudava medicina. Aos quatro anos ficou órfão de pai, tendo este falecido num trágico acidente de automóvel.
O escritor passou a infância e adolescência na vila da costa alentejana de Sines, de onde eram oriundos os progenitores. A mãe, ainda muito jovem, auxiliada pelos avós maternos, ficou a cuidar de Al Berto e de dois filhos mais novos, apesar dos avós paternos terem tentado tirar-lhe a custódia dos filhos.
Acabaram por repartir todos a educação das crianças: os Raposo, pelo lado materno, de baixo estrato social, e os Pidwell Tavares, uma família aristocrática de Sines, uma miscigenação de latifundiários e empresários da indústria conservaria. Da avó paterna, de origem inglesa, uma mulher de personalidade muito forte, ríspida e distante, mas muito rica: com casa senhorial, com biblioteca, quinta e jardim, criados e carro com motorista, jamais se esqueceria.
Al Berto começou a ler cedo e cedo a deixar-se viciar pelo prazer da leitura. Porém, brincou também muito, viu muito cinema, ouviu muita música, dançou muito, e passou por todos os exageros próprios dos adolescentes, com os irmãos e os amigos. Isto, sempre com o mar como pano de fundo. O mar do qual nunca conseguiu viver longe…Fez o ensino primário numa escola oficial em Sines e aos doze anos foi para um colégio interno.
Em 1965, dando expressão a um gosto muito grande pelo desenho, pelas aguarelas e pelos guaches, que lhe vinha da infância, entrou na Escola Artística António Arroio, em Lisboa. No ano seguinte frequentou também o Curso de Formação Artística da Sociedade Nacional de Belas Artes, na mesma cidade.
Em 1967, com 19 anos, exilou-se em Bruxelas, primeiro na qualidade de estudante – frequentou o curso de pintura monumental na École Nationale Supérieure d'Architecture et des Arts Visuels – e, como refugiado político, para fugir à incorporação militar e à Guerra Colonial. Eram os anos da utopia do Maio de 68: uma época de grande agitação social, política e cultural. Durante o exílio viajou com frenesi, efetuando uma série de viagens pela Europa: Espanha (sobretudo Málaga e Barcelona), Grécia, Países Baixos, Inglaterra, Itália… Nesse périplo europeu começou a escrever um diário. Hábito que nunca mais abandonaria… Nesse tempo iniciou o seu afastamento da pintura e a sua aproximação à escrita. Decisão que acabaria por concretizar-se em 1971: “Como a pintura é muito demorada de executar, requer outros meios, mais caros, à escrita basta o papel e caneta, começou assim a minha mudança para a literatura”, justificou. “E depois a isto tudo junta-se que de facto em 71 (…) havia um diário de viagens imenso. Não era só escrito era desenhado e era onde eu arrecadava praticamente tudo o que eu encontrava pelo caminho: desde fotografias a postais, a nomes de pensões, de ruas, mapas de cidades, etc. E comecei a me aperceber que nesse imenso diário, digamos assim, havia material que tinha uma qualidade e que não era propriamente um registo imediato, mas sim, apontava-me para outras preocupações.”
A passagem da pintura para a literatura implicou uma espécie de morte e renascimento, uma brecha que se abriu. Isso explica a adoção, a partir daí, do nome dividido em dois: Al Berto. Tal como explicou: “Senti necessidade de abrir a brecha com uma coisa que era muito minha e abri o nome ao meio, uma cisão num determinado percurso. Foi a maneira de não esquecer esse abismo. Depois, Al Berto, dito à francesa, Al Bertô, é mesmo árabe e é anónimo. E há qualquer coisa no anonimato que me seduz.
E o nome funciona bem em termos de se reter. ”Mais tarde, esclareceria: “Tinha medo de estar sozinho e escrevia. (…) Escrevia por medo e contra o medo. (…) Tenho o caderno onde escrevo assente numa prancheta de madeira. Espera-me uma infindável noite, escrevo contra o medo.”
O poeta regressou definitivamente a Portugal, sete meses após a revolução democrática, no dia 17 de novembro de 1975, instalando-se em Sines. Na vila, que se transformara de terra de pescadores e marinheiros num enorme complexo industrial, abriu uma livraria/editora, a que deu o nome de “Tanto Mar”. Aí, publicou livros seus e de outros autores, de certa forma marginais ao sistema editorial dominante, abordando sem pudor determinados tabus sociais e opostos às poéticas do rigor e da contenção.
O projeto da livraria durou apenas um ano. Em 1977 fechou-a e partiu para Lisboa. Iniciariam nessa época as suas deslocações pendulares entre Lisboa e Sines, numa inquietação permanente, numa busca sôfrega pela paz que nunca encontraria.
Quando Francisco José Viegas (em entrevista para a revista Ler nº 5, de 1989) lhe perguntou: “Quando está em Sines e quando está em Lisboa? Por que razão se divide entre Sines e Lisboa?”, responderia: “A noite tem a ver com o Genet. A fuga, com Rimbaud. O lado místico com Bataille. Sade, com o imprevisto. O lado excessivo (as drogas, o álcool, embora esteja muito calmo desde há dez anos…), com Baudelaire. Um dia vou para um convento. Visto um hábito branco, muito branco, e entro para um convento. Vai ser o meu futuro: para um convento que tenha uma escola de canto gregoriano… ”A literatura de Al Berto esteve sempre associada à sua vida, à aventura. Escrever nunca se dissociou de viver. Nos poemas retratava-se de corpo inteiro. Confessava-se. E confessava-se de um modo às vezes incómodo, pela marginalidade assumida. A narrativa do poeta maldito, melancólico-depressivo, atraído pelo abismo, apaixonado pela noite, pelo lado lunar: procedendo a uma violenta exaltação do seu sofrimento, do seu desamparo. Tornando-os insuportavelmente presentes. Escarafunchando a ferida, permanentemente aberta. Combatendo o mal com mal. Sem esperança.
Em 1981, voltou de novo a Sines e alojou-se na Quinta de Santa Catarina, a quinta dos avós Pidwell Tavares. Nesse ano, entrou para a Câmara Municipal de Sines como animador cultural. Mais tarde, entre 1992 e 1994, depois de ter coordenado o núcleo cultural da autarquia e de ter exercido diversas funções no Centro Cultural Emmerico Nunes (pintor modernista que curiosamente viria a casar com uma prima avó de Al Berto), que ajudou a criar, acabaria por assumir a presidência da direção do referido Centro. Entretanto, a sua popularidade como poeta foi aumentando e a sua poesia alvo de um crescendo constante nos elogios e nos destaques publicitários. Ao longo da sua vida, Al Berto colaborou em diversas revistas e jornais, participou em inúmeros debates, encontros de poesia e sessões de leitura, fez traduções e publicou alguns livros de prosa, teatro e, sobretudo, de poesia.
Em 1987, poeta já consagrado, foi galardoado com o prémio PEN-Club de Poesia, pelo livro “O Medo” que reúne todo o seu trabalho poético de 1974 a 1986 (sendo adicionados em posteriores edições novos escritos do autor), em 1992 recebeu de Mário Soares a medalha de Oficial da Ordem Militar de Sant'Iago da Espada, e em 1995 a Medalha de Mérito Municipal atribuída pelo executivo da Câmara Municipal de Sines.
Morreu em 1997, com 49 anos, em Lisboa, no dia 13 de junho, dia de Santo António, dia do nascimento de Fernando Pessoa, vítima de um linfoma que lhe tinha sido diagnosticado alguns meses antes. Al Berto passou poeticamente pelo mundo. Rebelde, errante, ávido, excessivo, solitário, ensimesmado, cheio de desejos libertários, consumido pelos sentidos da existência.
Paulo Marques
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