Zé Biga: pinta de craque aos dois anos. |
Não deixa de ser, da minha
parte, uma conquista pessoal, empenhado que estou nessa missão desde o seu
nascimento, há cinco anos, quando estendi o manto rubro-negro no quarto da
maternidade. A partir de então, todas as minhas bolas de estimação passaram a ser dele,
e também as muitas outras que comprei pelo caminho – mais bolas que eu amealhara
em toda a minha carreira.
Aos quatro meses de vida, pela
primeira vez ele viu nosso time se sagrar campeão, assistindo comigo à final da
Copa São Paulo de Juniores. Antes mesmo de saber ficar de pé, conduzia a pelota
sobre o tapete colorido de poliuretano enquanto se deixava pendurar pelos
braços. Certa vez, minha unha grande do dedão machucou seu calcanhar, e ele me
olhou com uma cara feia da porra. Passei a cortar a unha.
E quando ele aprendeu a gritar
“gol”, me soou tão agradável como quando aprendeu a falar “papai”. Comprei
camisa do Flamengo e jogo de botão, além de construir um campinho de futebol no
quintal de casa, com as próprias mãos, e batizá-lo em sua homenagem: Campinho do Zé Bigorna; tudo por ocasião
do seu segundo aniversário, de temática futebolística, claro. Da festa,
sobraram as traves de golzinho que passaram
a ornamentar o campinho onde ele aperfeiçoava seus arremates, enquanto eu
esperava pacientemente que ele crescesse o suficiente para que pudéssemos
disputar uma partida à vera.
O nascimento da irmã atravessou o caminho entre ele e o gol, pois eu já não dispunha do tempo necessário e não podia mais lhe dedicar atenção exclusiva. Quando íamos a campo, com a presença da pequena, a brincadeira se tornava caótica e sem a fluidez que ele desejava, causando mais contratempo que aperfeiçoamento. Eu falava de Zico e o trazia ao colo para assistir os jogos do Mengão, aos quais ele passou a rechaçar, com ciúmes dela, que se aninhava em meu peito para acompanhar cada concerto do time de Jorge Jesus. E nem mesmo um ano épico como o de 2019 foi suficiente para trazê-lo de volta à baila, com os dois gols de Gabigol contra o River tendo recebido mais atenção da caçula, de apenas um ano e meio, que do próprio guri. O campinho caía no esquecimento, e até as traves do golzinho eram corroídas pelo tempo, escoradas no muro cinza como esqueletos insepultos.
Até que neste vinte e cinco de novembro, algo de espantoso aconteceu.
Pela manhã, fazendo a marcação ilustrativa da baliza de futebol society que lhe seria presenteada pelo avô, lancei mão de dois cabos de vassoura fincados no gramado para que ele tivesse a noção do que está por vir, e posicionei a bola para que ele me experimentasse no gol. Sei que muitos dos pais que ora me lêem estão me julgando, “mas como esse pangó não pensou nisso antes?”. É, talvez eu tenha dado mole ao me amparar nas traves do golzinho, embora isso já não importasse diante das expressões de contentamento esculpidas na cara dele, revelando uma satisfação infantil despudorada.
Após ter as primeiras cobranças
defendidas, marcou três gols em sequência, o que o levou ao êxtase, dada sua
natureza ultra-competitiva e o desafio que se impunha. Afinal, não era mais a
monotonia do adversário molenga que eu interpretava jogando golzinho, e sim o
papai dando tudo de si, propiciando inéditas injeções de adrenalina na corrente
sanguínea, além de uma sensação desconhecida de êxito no semi-zerado córtex
cerebral do Zé Bigorna. Então, após meter uma bola que bateu no pé da trave e
entrou (apesar do meu pulo performático), vi sua boca se arqueando e os olhos se
esbugalhando, empolgado como jamais havia estado. Nunca estivera tão entretido
com o jogo, tão entregue ao deleite ludopédico. A irmã se esbaldava na piscina,
concedendo a ele a liberdade de dar quantos chutes quisesse, e assim foi até a
hora do almoço: “De tarde a gente joga mais, né, papai?”, assegurou-se,
saltitante, com a bola sob o braço (e não largada ao sol, como era seu costume).
À noite, emocionado pela morte de Maradona, mostrei a ele um videozinho de Don Diego fazendo aquecimento antes de um jogo pelo Napoli, com malabarismos virtuosos, como se estivesse se enroscando a um macaquinho de estimação, em assombrosa exibição de intimidade e sintonia com a bola e as leis da física. Ele se esticou em meu colo, aproximando o rosto da tela:
- Quem é ele? – interessou-se, seduzido pelo
novo mundo que se abria.
- Maradona – respondi, sentindo o peito
apertar.
- Quero jogar igual a ele quando eu crescer
– manifestou, impressionado com a sequência de embaixadinhas alternadas entre uma
coxa e outra empilhadas pelo gênio atarracado.
- Tem que treinar muito, meu lindo...
Ele ficou assistindo o restinho
do vídeo, compenetrado, após o qual se virou e, com olhos de deslumbramento
fixados nos meus, ratificou o desejo:
- Papai, eu quero jogar igual a
ele quando eu crescer!
Cúmplice em sua descoberta de
um herói de carne e osso, respirei sua alegria misturada à dor da realidade, e
lutei para manter o sorriso. Abracei-o com carinho, contendo o choro, hesitante,
sem coragem de lhe dizer que seu primeiro ídolo acabara de morrer.