Tu não faz como o passarinho que fez um ninho e avoou, voou, voou, voou, voou... |
De quando em vez, um passarinho novo
despenca de algum ninho feito nas palmeiras ou nos coqueiros do nosso jardim.
Ele tem de ter sorte para o encontrarmos antes dos muitos gatos que habitam o
local. Então cuidamos e o entregamos ao serviço florestal, que assume a
responsabilidade pela sobrevida do animal. Durante a última poda, no início da
estiagem, quase pisoteei um recém-nascido, de quem, inadvertidamente, acabara
de destruir o lar. O pouco tempo que ele ficou no chão foi suficiente para
atrair dezenas de formigas que abusavam de seu fino tecido epitelial. Foi
miraculosamente salvo; das formigas, da pisada, dos oito gatos e da cadela
Rabisco. Há outros casos.
Há alguns dias, enquanto eu escrevia, pios
desesperados cortaram a noite, vindos do fundo do quintal. Quando me levantei,
já estavam mais próximos e mais estridentes e, de súbito, ecoavam alto pelo
salão de casa. Era um passarinho adulto, e estava claro; não caíra de ninho
algum, mas fora caçado, e agora se debatia na boca do Tomilho, um dos oito
gatos da casa. Os demais vinham atrás, interessadíssimos em retalhar o aflito
prisioneiro. Minha mulher surgiu nervosa à porta da sala: - Ele pegou um
passarinho! Ele pegou um passarinho! - Avancei abruptamente sobre o Tomilho,
que deu meia volta em direção à mesma janela pelo qual entrara. Seria o fim do
passarinho, não fosse um grito meu que assustou o predador, fazendo-o abandonar
a presa antes de saltar para a fuga.
Era
um sabiá-laranjeira, e me olhava furioso. Não me reconhecendo como seu
salvador, bicava meus dedos enquanto a todo custo buscava se desvencilhar. Fui
até a frente de casa para libertá-lo, mas não foi possível; a ave já não voava,
mas se debatia. Analisei suas condições gerais e notei uma das garras imóvel, e
as duas asas ensanguentadas na dobradura superior. Tomilho arrebentou com ele.
Quando
criança, matava calangos com bodoque, sem nenhum dó. E até a caçar passarinho
com espingarda de chumbinho eu me arvorei, em nome de minha ancestralidade
sertaneja. Horas sob o sol inclemente do sertão baiano, rastejando no solo
árido, como o bando de Lampião, e sequer me aproximar de um eu consegui! Não é
como nos filmes e desenhos; na vida real, camarão não marca touca, e quando
você pensa em tomar ar para a próxima rastejada, o passarinho voa. É humilhante.
Ele sequer nos dá a chance de errar. Voltei com mais chumbinhos do que levara
no bolso, pois achei uma caixinha cheia quase até a metade. Sorte minha: hoje tenho
um carma a menos. De todo modo, quem me perdoa por matar os calangos não
estenderia o perdão se as vítimas fossem os passarinhos. Hipócritas!
Fato
é que eu olhava para aquele sabiá, que agora me encarava a fundo, imóvel, e
faria de tudo para que ele se salvasse do ignominioso ataque sofrido. Eu não costumava
ser assim, preocupado com os bichos, mas aprendi a sê-lo por conta da natureza
de minha companheira. Eu jamais ligaria para secretarias ambientais, polícias
florestais, IBAMAs e que tais – eis a diferença entre pensar-se solidário e ser
solidário; em ter ou não empatia pelos demais seres-vivos. Mas era noite de
sexta-feira, e mesmo com toda consciência cristã planetária de Irmã Dulce, jamais conseguiríamos remetê-lo ao escrutínio de especialistas durante o fim-de-semana.
Por ora, éramos nós os mantenedores de sua vida.
O
bicho foi alojado numa gaiola de gatos, e lá passou a noite, em jejum. Ao
acordar, me senti angustiado e fui vê-lo, ansioso. Quando o encontrei, tombado
de lado, temi pelo pior... Mas não era nada; estava vivo! Até aceitou a aguinha
que lhe dei, embora tenha recusado banana e morango. Já não se debatia, e
aceitava o calor de minhas mãos.
Aproveitei o reconhecimento e lhe fiz longos
carinhos na barriguinha alaranjada, e também na cabeça, que ele inclinava em
sinal de aceitação. E a bicadas nos dedos agora se assemelhavam a suaves
beijinhos de sabiá-laranjeira. Olhei nos olhinhos pretos dele e falei, “você
vai ficar bem, passarinho”. E ele fechou os olhinhos, parecendo querer sorrir. Depois
disso, até comeu um pouquinho de banana. E durante todo o sábado, a todo o
momento, ia visitá-lo na tentativa de lhe oferecer água, frutas e carinho. Mais
tarde, troquei os guardanapos sujos de sua gaiola e me despedi: - Aguente
firme, passarinho. Só mais um dia!
Na manhã seguinte, levantei-me da cama
pensando nele. Sua presença agora me agradava, e eu queria muito vê-lo. Foi a
primeira ação do dia. Estava tombado, como na manhã anterior. Então o peguei
com carinho e fiquei encarando aqueles olhinhos por um bom tempo, até me dar
conta que ele estava morto... As garras estavam endurecidas, mas a maior parte
do corpo ainda não. Seu pescoço pendia de um lado para o outro, conforme eu o
balançava, enquanto eu tentava identificar nisso algum movimento voluntário. “Poderia
estar ainda vivo”. Toquei seu peitoral em busca de um coração saltitante, mas
não havia nenhum sinal de vida. Senti uma dor no peito e também um pouco de
culpa.
Coloquei-o
de volta na gaiola e fui até o quintal. Não queria que minha mulher e meus
filhos o vissem assim. Quando as crianças acordaram, perguntaram por ele. Não pude mentir:
- Quando cheguei, ele já tinha voado, meus lindos...
- Quando cheguei, ele já tinha voado, meus lindos...
imagem: joão sassi