sexta-feira, 8 de novembro de 2019

O Voo do Sabiá-Laranjeira


Tu não faz como o passarinho que fez um ninho e avoou, voou, voou, voou, voou...
                                                 
    De quando em vez, um passarinho novo despenca de algum ninho feito nas palmeiras ou nos coqueiros do nosso jardim. Ele tem de ter sorte para o encontrarmos antes dos muitos gatos que habitam o local. Então cuidamos e o entregamos ao serviço florestal, que assume a responsabilidade pela sobrevida do animal. Durante a última poda, no início da estiagem, quase pisoteei um recém-nascido, de quem, inadvertidamente, acabara de destruir o lar. O pouco tempo que ele ficou no chão foi suficiente para atrair dezenas de formigas que abusavam de seu fino tecido epitelial. Foi miraculosamente salvo; das formigas, da pisada, dos oito gatos e da cadela Rabisco. Há outros casos.
                                                                                       
    Há alguns dias, enquanto eu escrevia, pios desesperados cortaram a noite, vindos do fundo do quintal. Quando me levantei, já estavam mais próximos e mais estridentes e, de súbito, ecoavam alto pelo salão de casa. Era um passarinho adulto, e estava claro; não caíra de ninho algum, mas fora caçado, e agora se debatia na boca do Tomilho, um dos oito gatos da casa. Os demais vinham atrás, interessadíssimos em retalhar o aflito prisioneiro. Minha mulher surgiu nervosa à porta da sala: - Ele pegou um passarinho! Ele pegou um passarinho! - Avancei abruptamente sobre o Tomilho, que deu meia volta em direção à mesma janela pelo qual entrara. Seria o fim do passarinho, não fosse um grito meu que assustou o predador, fazendo-o abandonar a presa antes de saltar para a fuga.

    Era um sabiá-laranjeira, e me olhava furioso. Não me reconhecendo como seu salvador, bicava meus dedos enquanto a todo custo buscava se desvencilhar. Fui até a frente de casa para libertá-lo, mas não foi possível; a ave já não voava, mas se debatia. Analisei suas condições gerais e notei uma das garras imóvel, e as duas asas ensanguentadas na dobradura superior. Tomilho arrebentou com ele. 

    Quando criança, matava calangos com bodoque, sem nenhum dó. E até a caçar passarinho com espingarda de chumbinho eu me arvorei, em nome de minha ancestralidade sertaneja. Horas sob o sol inclemente do sertão baiano, rastejando no solo árido, como o bando de Lampião, e sequer me aproximar de um eu consegui! Não é como nos filmes e desenhos; na vida real, camarão não marca touca, e quando você pensa em tomar ar para a próxima rastejada, o passarinho voa. É humilhante. Ele sequer nos dá a chance de errar. Voltei com mais chumbinhos do que levara no bolso, pois achei uma caixinha cheia quase até a metade. Sorte minha: hoje tenho um carma a menos. De todo modo, quem me perdoa por matar os calangos não estenderia o perdão se as vítimas fossem os passarinhos. Hipócritas!

    Fato é que eu olhava para aquele sabiá, que agora me encarava a fundo, imóvel, e faria de tudo para que ele se salvasse do ignominioso ataque sofrido. Eu não costumava ser assim, preocupado com os bichos, mas aprendi a sê-lo por conta da natureza de minha companheira. Eu jamais ligaria para secretarias ambientais, polícias florestais, IBAMAs e que tais – eis a diferença entre pensar-se solidário e ser solidário; em ter ou não empatia pelos demais seres-vivos. Mas era noite de sexta-feira, e mesmo com toda consciência cristã planetária de Irmã Dulce, jamais conseguiríamos remetê-lo ao escrutínio de especialistas durante o fim-de-semana. Por ora, éramos nós os mantenedores de sua vida.

    O bicho foi alojado numa gaiola de gatos, e lá passou a noite, em jejum. Ao acordar, me senti angustiado e fui vê-lo, ansioso. Quando o encontrei, tombado de lado, temi pelo pior... Mas não era nada; estava vivo! Até aceitou a aguinha que lhe dei, embora tenha recusado banana e morango. Já não se debatia, e aceitava o calor de minhas mãos. 

    Aproveitei o reconhecimento e lhe fiz longos carinhos na barriguinha alaranjada, e também na cabeça, que ele inclinava em sinal de aceitação. E a bicadas nos dedos agora se assemelhavam a suaves beijinhos de sabiá-laranjeira. Olhei nos olhinhos pretos dele e falei, “você vai ficar bem, passarinho”. E ele fechou os olhinhos, parecendo querer sorrir. Depois disso, até comeu um pouquinho de banana. E durante todo o sábado, a todo o momento, ia visitá-lo na tentativa de lhe oferecer água, frutas e carinho. Mais tarde, troquei os guardanapos sujos de sua gaiola e me despedi: - Aguente firme, passarinho. Só mais um dia!

    Na manhã seguinte, levantei-me da cama pensando nele. Sua presença agora me agradava, e eu queria muito vê-lo. Foi a primeira ação do dia. Estava tombado, como na manhã anterior. Então o peguei com carinho e fiquei encarando aqueles olhinhos por um bom tempo, até me dar conta que ele estava morto... As garras estavam endurecidas, mas a maior parte do corpo ainda não. Seu pescoço pendia de um lado para o outro, conforme eu o balançava, enquanto eu tentava identificar nisso algum movimento voluntário. “Poderia estar ainda vivo”. Toquei seu peitoral em busca de um coração saltitante, mas não havia nenhum sinal de vida. Senti uma dor no peito e também um pouco de culpa.

    Coloquei-o de volta na gaiola e fui até o quintal. Não queria que minha mulher e meus filhos o vissem assim. Quando as crianças acordaram, perguntaram por ele. Não pude mentir: 

   - Quando cheguei, ele já tinha voado, meus lindos...      



imagem: joão sassi

domingo, 27 de outubro de 2019

Torcedor do Flamengo: A Felicidade Existe?

Galera reunida após longo e tenebroso inverno.

    
    Foi como o amor: não se sabe muito bem como se deu ao certo, embora se bem saiba agora que muito certo se deu. As mais belas projeções não seriam capazes de predizer o que sente um adepto rubro-negro no atual estágio da temporada; tão ou mais feliz que um adolescente defronte o espelho se arrumando para ir passar uns dias enfurnado na casa da namorada cujos pais pegaram o último avião para o Nepal – sentiram a intensidade da emoção?

    Se o Mourinho fosse o portuga escolhido, haveria festa e a magnética se daria por satisfeita em ganhar o Brasileirão do Parmêra, na rodada derradeira, por um ponto, e chegar à final da Liberta, ainda que sem favoritismo, tendo ganhado muitas partidas por 1x0, sem encantar. Caso fosse El Cholo Simeone, idem. Com o Guardiola ou o Klopp (meu sonho de consumo), as expectativas cresceriam quanto aos placares e quanto ao ‘jogo bonito’, embora sem a projeção de um time tão aniquilador e encantador (afinal, o Fla não é o Barça ou o Liverpool). Mas quando se anunciou Jorgito Jesus Crist no comando, no que teriam pensado os torcedores do Flamengo? Eu mesmo pensei pitufas, senão um ‘Glória a Deux; melhor que o Abelão ele deve ser!’, pois não tinha a menor idéia de quem era ou do que ele poderia fazer pelo Mengão. Cheguei mesmo a suspeitar que pudesse ser uma barca furada, como foram as naus portuguesas que por estas paragens abarcaram em tempos recentes.

    Mas Jesus veio e, em parcos quatro meses (o que são quatro meses, galera?), transformou a rala e salobra água rubro-negra em denso e inebriante vinho do Porto, doutrinando jogadores, multiplicando gols, recordes e vitórias, convertendo jornalistas e santificando antigos pecadores aos olhos de devotos torcedores. Sabíamos que tínhamos potencial para produzir algo de qualidade, muito embora fosse imperioso admitir que nem mesmo a hiperbólica percepção de um Nelson Rodrigues colocaria o Flamengo nos píncaros do ludopédio continental em que ora se encontra.

    Há quanto tempo você, torcedor de qualquer clube, não tem a escalação de seu time na ponta da língua? Vou além; qual a escalação de seu time quando do último título conquistado? Qual foi a última vez que seu time ‘fez história’ ou ‘marcou época’? Admitamos: a maioria nem sabe o que é isso, pois conta-se nos dedos de uma mão as esquadras que atingiram esse patamar nos últimos 150 anos de futebol jogado em solo tupiniquim. Só Santos e o São Paulo chegaram lá, além de nós.

    Entenda-se ‘chegar lá’ por dominar a cidade, o país, o continente e o mundo, colocando na roda os campeões da Champions, na final do Interclubes (atual Mundial de Clubes), como fizeram Pelé com o Benfica e Telê Santana com o Barça e o Milan. O Flamengo de Zico completa essa tríade; fomos os fodões do Bairro do Peixoto... 38 anos atrás! De lá para cá, sequer uma final continental voltamos a disputar, ao contrário dos dois paulistas, que voltaram e conquistaram novamente a Liberta, mesmo sem esquadrões foras-de-série como os de outrora. Isso nos coloca como um clube mediano no imaginário do torcedor, mundo afora. Quando não, totalmente insignificante – apesar do Zico!

    ‘Descobri’ isso num taller de periodismo entre jornalistas latino-americanos, em Cuba, em 2001 - portanto duas décadas após o baile em Tóquio. Ostentando o Manto Sagrado pelo salão, percebi que não causava qualquer sensação. Um equatoriano até sabia quem tinha sido o ‘Grande Zico’, mas não o Flamengo. Foi quando caiu a ficha de que meu Mengão fuderosão tricampeão (o Pet havia marcado o gol de falta naquela semana) não tinha qualquer representatividade ou reconhecimento no continente americano. Ou você, querido flamenguista, reconheceria o Argentinos Juniors como potência futebolística? Por que não? Os caras também foram campeões da Liberta na primeira participação deles (1985) e produziram um gênio da raça (Maradona), enquanto nós fizemos o mesmo em 1981 e revelamos o Zico. Sacaram? Somos um Argentinos Juniors da vida; ninguém bota fé, fora os próprios torcedores, os iludidos assumidos. Tudo bem que ganhamos umas copinhas do Brasil lá e cá, e outros tantos brasileirões aqui e acolá, mas e daí? Quem liga? Pior: chegando a algumas decisões como azarão (1992 e 2009)! São conquistas gostosas, mas pontuais; aliás, foras da curva (e nossa curva tende à mediocridade).

    Jorge Jesus está mudando isso. Hoje o nome do Flamengo corre pelos sete mares do Planeta. Ganhando a Libertadores e, sim, o Mundial, na negra do Liverpool, teremos assegurada nossa volta ao Olimpo, o que não estaria garantido somente pelas conquistas, senão pela forma encantadora como joga nosso time.

    O flamenguista, sem perceber, está finalmente se divorciando do paradigma de 81, ano do futebol-total, como quem deixa finalmente de pensar num antigo romance, seja por obra do tempo, seja pela aparição de um novo amor. Hoje, o flamenguista é aquele sujeito feliz e apaixonado, tal qual o adolescente do início do texto, mas não somente por estar próximo à consagração total, ou por ter sua paixão plenamente correspondida, senão por saber que ela, a paixão, pulsa em mais de quarenta milhões de corações, além de outros milhares, recém-convertidos, que têm se deixado encantar pela apoteose do Mais Querido. Como nos ensinou o jovem libertário estadunidense Cristopher McCandless - inspiração para o célebre livro ‘Na Natureza Selvagem’, de Jon Krakauer -: “a felicidade só existe quando é compartilhada”.

    Oh, meu Mengão, eu gosto de você; quero cantar ao mundo inteiro a alegria de ser rubro-negro...

Texto originalmente publicado no blog ludopédico BOROGODÓ FUTEBOL CLUBE