É meio-dia. Estou ao volante. Dou
seta, reduzo a marcha e sinto o motor reverberar, produzindo um ronco maneiro.
O carro está sem escapamento. Entro à direita e desemboco numa estradinha
vicinal de terra batida, bem irregular, cheia de pedras. É uma subidinha
capciosa. Engato a primeira e vou em frente, curtindo a vinheta de abertura de
um programa de rádio, e também o barulhinho gostoso do pneu rolando sobre o
cascalho solto.
A escolinha do Zé Bigorna é hari-bô; fica
no meio do mato. Se o motor do meu carro não morresse tanto eu poderia usufruir
mais da estradinha. Sobre o banco do passageiro repousam duas fatias quentinhas
de pão integral com um pouquinho de manteiga. Estão embrulhadas em duas folhas
de papel-toalha. Quando é só uma, o farelo cai e o carro vira um formigueiro.
A vinheta é muito boa; tem uma levada
natalina que nos enche de esperança vazia e passa a sensação de que toda a
inépcia da politicagem tupiniquim, no bojo, é coisa pequena que não afetará em
nada nossa vida. Suas indefectíveis notas xilofônicas enlevam nosso espírito. Surge ao fundo do patrocinador, e depois se funde com a vinheta nacional,
com um leve delay, aumentando a
sensação inequívoca do ouvinte de estar em rede. É peculiarmente prazerosa essa
sobreposição, como se fossem duas fitas magnéticas emendadas por durex, que em
sua imperfeição transmitem a ideia de que, afinal, nem tudo é linear no mundo digital.
Com menos de um mês levando e buscando Zé Bigorna na
“colinha” dele, já perdi o escapamento do automóvel. Deu pra ver pelo
retrovisor quando ele caiu e se acomodou às margens da estradinha empoeirada.
Passei a andar bem mais devagarzinho, e quando o sujeito, em sentido contrário,
passa na tora, me reto, e penso logo na hipocrisia inerente à natureza da
gente, contraditória, que matricula um filho numa escola alternativa à neurose
social em voga, enquanto replica em nosso mundinho perfeito o pior do modelo vigente
– modus horribilis. Mas faço questão
de cumprimentar a todos. Os mais velhos agradecem a distinção demonstrando
aceitação à boa conduta. Os menos, muitas vezes passam com vidros e óculos
escuros – as novas gerações sempre tem uma empáfia genuína quando comparadas às
antecedentes.
Entrementes, o apresentador do nosso
programa atinge o limite máximo do reacionarismo suportável, tornando-se um mau
carona. Desligo bem a tempo de evitar o comentarista de política - diz-se, à
boca miúda, que neguinho anda trocando o chá pelo purgante, nas reuniões da
ABL, só para evitar o fleumático membro. Fiquemos apenas com os cascalhinhos e
o motor desregulado.
Chegando à “colinha”, é hora de ir ter com
o Bigorna. Antes de mostrar a cara, namoro, como um sujeito apaixonado, aquela
linda figura, à distância. Jamais o flagrei em apuros, zangado ou
choramingando, e quando apareço, sorrimos juntos. Ele corre ao meu encontro e
eu o sufoco com tantos beijos e cheiros; é a coisa mais deliciosa do mundo! De
repente ele se lembra de algo e suspende o dengo. Me encara com certa tensão no
olhar e me segura pela barba, com as duas mãos, trazendo meu rosto para perto do
dele:
- Pão! Pão! Pão!... – clama.
- Estão lá no carro, à sua espera, meu lindo...
– E ele sorri de mostrar os dentes.