Memel, em sua primeira aparição, demonstra todo seu espanto; não foi um mar-de-rosas. |
Foi por vias tortas que ela veio parar por aqui. Dessas que
nascem não se sabe exatamente como, quando, onde e por que, mas nascem, e que logo
foi encontrada por dois irmãos que saracoteavam por aí, miando debaixo de algum
carro. Era pequenininha. Nascera, sei lá, há duas semanas, se tanto, e as
crianças se encantaram.
Levaram-na imediatamente para casa. Claro que a mãe enxotou a
gatonfinha. Duas crianças e uma gatinha linda; que situação. Sem nem
dizer mais nada, largou a infeliz com o porteiro, que agora, além de cuidar de
uma caixa de sapatos com um gato dentro e eventualmente abrir portas, teria ainda
de vigiar o estacionamento, carregar compras, levar o guarda-chuva para a
senhora, cortar a grama defronte ao edifício, passar o rodo pelo prédio,
resolver pepinos, e bajular o babaca do bloco por ignorância, complexo de
inferioridade ou pobreza de espírito. Claro que ele não tardaria a passar a
bichana adiante. Esse insensível não deve nem ter aberto a caixa.
O primeiro interfone que o cara tocou, sabedor que era do
histórico dos moradores, e ela acabava de ganhar um novo lar. Quando chegou,
era - como ainda é - a menor dentre cinco, a coisinha. Imagine se não sofreu na
mão das outras. Fazer o quê? É a lei dos bichos, tal como é a nossa. Os
baixinhos sempre se fodem, o que só muda quando ficam ricos, famosos ou
inteligentes; do contrário, pancada neles. Ela teria de esbanjar muita simpatia
para se criar “no meio da vagabundagem”. Passados alguns meses, parece que está
conseguindo. E como é esperta, meu deus!
Antes de sua chegada, as demais já estavam entrando numas,
acatando certas leis naturais artificialmente impostas pelos donos do lar, que
se julgam soberanos. A disputa é árdua; neguinho(a) é folgado que dói, então há
que se fazer manter o respeito – vide D2. Mas aí aparece esta criatura,
ignorando toda e qualquer norma anteriormente existente, e numa doçura que não
dá para crer, faz o que bem e mal entende.
Ela é inacreditável. E nem sabe que é linda assim.
Desrespeita todos os limites com naturalidade. Quer porque
quer se alçar ao ponto mais alto da casa, e geralmente o alcança. As outras,
macacas-velhas, observam passiva e tranquilamente. Assistem tudo sem um mio,
torcendo para que ela escorregue quando estiver por suplantar a ultima
escadinha de CDs empilhados; e o pior é que ela normalmente escorrega, o que
faz com que eu, vez ou outra, acorde em plena madrugada - “espero que não tenha
sido um dos bons”, penso então, já pegando no sono novamente.
O que marcou a vida das quatro “irmãs” mais velhas, ainda
antes da chegada de Memel, foi quando uma delas fez uma manobra infeliz, na vã
tentativa de subir no topo de uma antiga geladeira restaurada – um mimo que
ornamenta a sala. Ora, ora, os gatos não devem, jamais: 1) entrar no quarto de
dormir; 2)subir na pia da cozinha (a não ser quando a casa dorme, naturalmente)
e 3)subir na geladeira altona que está cheia de artefatos inadequados para
felinos.
Pois deu-se que um desses artefatos, numa dessas noites, fora
preenchidos por flores esbeltas, o que chamou tanta atenção que a curiosidade
quase mata o gato, literalmente. Era um belíssimo e pesado vaso de cristal –
que de tão bonito, nem sei nem se poderia ser chamado de vaso -, mas que mesmo
assim, foi ao que ela tentou se agarrar, no desespero de não se estabacar. Pois
vieram ao chão, a desastrada, o vaso com flores, água e tudo mais, destruindo,
no caminho, um antigo aparelho televisor P&B que, até aquele momento, tinha
chances reais de voltar à ativa. Tive de ter uma conversa séria com essa
coitada. Ela disse que sentiu muito por isso. E não é que falava sério? Nunca
mais se tentou a fazê-lo.
Pois qual não foi minha surpresa esta noite, quando nossa
adorável caçulinha astutamente aparece por lá, já quase botando abaixo alguns
porta-retratos caríssimos que mamãe mandou buscar em Paris! Descobriu uma
brecha do parapeito da janela que ia de encontro, vejam vocês, à parte superior
das grades detrás da geladeira, por onde calmamente passou, subindo com
facilidade ao campo minado.
Foi repreendida como não deveria, afinal, é apenas uma
gatônfia linda, feliz e maravilhosa que, como costuma dizer minha mulher, “somente conheceu o amor, desde o dia
que nasceu". Dá uma espécie de remorso, daqueles que mães conscientes sentem
quando porventura dão uma palmada no filho pequeno. Pelo menos assim que era lá
em casa. Lembro do dia em que minha mãe me deu uma chinelada; depois, ficou
meia hora chorando.
Pois Memel, em muito menos tempo que isso, mesmo após uma
tremenda broca – da qual pareceu não entender uma única palavras - já estava no
meu colo, fazendo dengo. Tão à vontade que, já sonolenta, quando ia se
escorregando por entre minhas pernas, fez trabalhar suas presas contra minha
carne. É dor pra mais de metro...
Entretanto, com toda a paciência e auto-controle que não tive
alguns minutos havia, e também por vê-la aproximar-se sem nenhuma mágoa, como
me ensinando como se deve agir, sempre amorosamente, não praguejei para além do
pensamento. Ao contrário, fiz com ela se reacomodasse, aninhando-se
graciosamente, e fingi que tudo seguia na mais absoluta normalidade.
Memel é foda.
foto: joão sassi