quinta-feira, 15 de julho de 2010

O Senhor do Picolé


Faz um calor infernal. Um senhor sobe na condução com uma caixa de papelão e um picolé à mão.


Dentro da van, um ar abafado, intranqüilo, suado. O senhor, afobado, mais parece uma criança, de tão agitado, e não se intimida junto a tanto homem engravatado. Faz silêncio. A condução parte.


E se começa a escutar um barulho de língua. As pessoas se entreolham... Era o senhor do picolé. Lambe, chupa e deixa a dentadura ‘passear’ por sua boca, enquanto sorve o caldo geladinho de limão, cerrando os olhinhos por detrás dos óculos, com cara de pura satisfação. A loira, sentada à sua frente, faz que não entende; sentindo que não. Após breve silêncio, nova lambida - desta vez com mais saliva; é mais água que sua boca pode suportar, e o picolé começa a pingar.


O caldo escorre pelos dedos e pelas mãos, molhando a tampa da caixa de papelão. Ele limpa, todo lambão, e segue sua chupação. O silêncio só evidencia o sabor do picolé. São tantas lambidas, chupadas e mastigadas que ele pouco se importa com a tampa da caixa lambuzada. O olhar fixo para o sorvete revela um prazer genuíno, de quem não se sente constrangido pelo que quer que seja ou esteja à sua volta – ele apenas lambe e chupa, barulhentamente.


Antes que o último naco do doce gelado lhe caia ao chão, o senhor abocanha o palito inteiro, fazendo arregalar os olhos dos demais passageiros. Este último pedaço, come-o com mais vontade, enquanto limpa os dedos na tampa melada da caixa de papelão, fazendo sujar ainda mais a palma da sua mão.


Mas não se importa: mesmo comido, o picolé ainda existe em sua imaginação, o que é fácil de notar pela quantidade de vezes que o senhor suspira, abrindo e fechando a boca, como quem prolonga ao máximo o prazer da degustação. Quando se pensa que acabou, não: um pigarro... E mais outro. E mais ruídos de satisfação. Logo, uma coçada no nariz, limpando o bigode grisalho, como se houvesse cheirado rapé. E mais uma pigarreada.


E mais adiante, uma espirrada; daquelas de molhar a nuca de quem está à frente (até eu, que estava ao lado, limpei a minha, por puro reflexo) - mas a loirinha continuou se fazendo de desentendida, inocente. E o senhor, 'na dele', ajeita delicadamente o palito lambido numa fresta da caixa de papelão. Na hora de descer, arremata: -“Que calorão!”, e sai, animadamente. Os demais permaneceram em silêncio, e no calor.



Foto de joão sassi

Picolé de Limão

Faz um calor infernal.

Um senhor sobe na condução com uma caixa de papelão e um picolé à mão.

Dentro da van, um ar abafado, intranqüilo, suado. O homem, afobado, mais parece uma criança, de tão agitado, e não se intimida junto a tanto engravatado.

Faz silêncio. A condução parte.

E se começa a escutar um barulho de língua. As pessoas se entreolham; era senhor do picolé. Lambe, chupa e deixa a dentadura ‘passear’ por sua boca, enquanto sorve o caldo geladinho de limão, cerrando os olhinhos por detrás dos óculos, com cara de pura satisfação. A loira, sentada à sua frente, faz que não entende; sentindo que não.

Após breve silêncio, nova lambida - desta vez com mais saliva; é mais água que sua boca pode suportar, e o picolé começa a pingar. O caldo escorre pelos dedos e pelas mãos, molhando a tampa da caixa de papelão. Ele limpa, todo lambão, e segue sua chupação.

O silêncio só evidencia o sabor do picolé. São tantas lambidas, chupadas e mastigadas que ele pouco se importa com a tampa da caixa do lambuzada. O olhar fixo para o sorvete revela um prazer genuíno, de quem não se sente constrangido pelo que quer que seja ou esteja à sua volta – ele apenas lambe e chupa, barulhentamente.

Antes que o último naco do doce gelado lhe caia ao chão, o senhor abocanha o palito inteiro, fazendo arregalar os olhos dos demais passageiros. Este último pedaço, come-o com mais vontade, enquanto limpa os dedos na tampa melada da caixa de papelão, fazendo sujar ainda mais sua mão.

Mas não se importa: mesmo comido, o picolé ainda existe em sua imaginação, o que é fácil de notar pela quantidade de vezes que o senhor suspira, abrindo e fechando a boca, como quem prolonga ao máximo o prazer da degustação.

Quando se pensa que acabou, não: um pigarro... E mais outro. E mais ruídos de satisfação. Logo, uma coçada no nariz, limpando o bigode grisalho, como se houvesse cheirado rapé. E mais um pigarreada. Depois, por fim, uma tossida daquelas de molhar a nuca de quem está à frente (até eu, que estava, ao lado, limpei a minha, por puro reflexo) - mas a loirinha continuou se fazendo de desentendida, inocente.

E o senhor na dele, ajeita delicadamente o palito lambido numa fresta da caixa de papelão.

Na hora de descer, arremata: -“Que calorão!”