sábado, 29 de novembro de 2008

Esquina Paranóia Delirante


Praça da Sé, centro da capital paulista, sexta-feira, 14h.
Cinquenta funcionários públicos estaduais sentados na escadaria falam mal dos chefes, esculhambam o governador, trocam receitas culinárias, se dedicam a escrutinar a vida alheia, reclamam do sol forte, suspiram por causa do atraso.

Praça da Sé, centro da capital paulista, sexta-feira, 14h30.
Cinquenta sindicalistas estão de pé, circulando entre grupos pequenos, distribuindo panfletos e jornais, rindo muito, falando alto, falando que tem pouca gente, falando que o evento é um sucesso, se fica no falatório ou vai ter andança, anunciando a agenda pagã do ato público logo mais à noite, quando conseguirem terminar aquilo ali (e vamos terminar logo, diz o consenso).

Praça da Sé, centro da capital paulista, sexta-feira, 15h.
Centenas de funcionários públicos se misturam aos dirigentes sindicalistas, todos de pé, todos procurando uma sombra pra se proteger do sol tão forte que quebra a barreira da poluição paulistana. Escutam trechos do falatório, três ou quatro aplaudem quando é o seu presidente de sindicato quem fala, a conversa é diversa entre eles. Uns querem dar uma passadinha na feira hippie da praça, outros se preocupam porque deixaram o carro na zona azul e o cartão vai vencer, outros se gabam de ser inteligentes por terem vindo de metrô. Ainda tem gente distribuindo panfletos e jornais, o estoque parece ser ilimitado.
Tem um monte que segura faixa. Tudo quanto é faixa pede respeito, enquanto o segurador está com a mão por sobre os olhos protegendo-os do sol enquanto eles procuram um lugarzinho com sombra, alheio ao discurso que está sendo jogado às traças em cima de um caminhão panfletário.
Tem um monte que bate foto. Não sei onde vão parar essas fotos, nem sei porque se precisa de tantos fotógrafos num evento como esse. Quase tem mais fotógrafo que dirigente sindical, todos com cara séria, todos preocupados em pegar o melhor ângulo, alguns, mais despachados, de vez em quando conseguem flagrar alguma bunda bonita passando ao lado, com corpo e tudo. Sobe e desce o caminhão, vai à direita e à esquerda, fica no centro, se ajoelha, mas não reza: bate foto. Cara, é muita foto. Viva a máquina digital.
Na mesma praça, sem ser sindicalista nem servidor público nem fotógrafo, tem o pastor com seu auxiliar. Os dois chamam mais a atenção de seu público do que os dirigentes sindicais com seus mesmos discursos "improvisados" de sempre. O pastor berra e se faz ouvir. Consegue a atenção de quem tá só passando, não reclama do calor apesar do terno mal cortado e da gravata surrada. Não reclama do baixo salário e dá até para se pensar que sequer ganha algum. Não critica o governador porque o único que reconhece é o seu poderoso e supremo deus, a quem ninguém jamais conseguiu empulhar com alguma greve. Não reclama na verdade de nada, só quer aumentar o seu rebanho que nem seu é. O pastor.

Praça da Sé, centro da capital paulista, sexta-feira, 16h.
Retorno ao evento sindicalista e quase me surpreendo ao verificar que as centenas que conversavam em pé se transformaram em dezenas miúdas com cara de "chega". Dos sindicalistas lá em cima só sobraram os fraquinhos, aqueles que dizem "tchau, galera" e "vamos nos unir contra essa política de arrocho salarial". Do resto, nem sinal. Os que estavam sentados na escadaria da Sé continuam miraculosamente lá, e eu fico pensando se na verdade não são apenas figuras integrantes da paisagem (e que eu confundi como funcionários públicos). Nenhum fotógrafo à vista. O pessoal da faixa é que está em plena atividade, retirando o precioso material que será desenrolado no próximo ato numa sexta-feira qualquer talvez novamente ensolarada e com os mesmos figurantes.
Pego o metrô e venho embora pra casa. Fui esperta, fui de metrô ao evento.
E nem sou funcionária pública. Nem sindicalista. Nem fotógrafa. Nem crente.

Caê Jagger

Alguém pode me explicar porque sou obrigada a dominar outro idioma senão o do meu país, desde que vivo no meu país e não pretendo viver fora dele? Alguém me explica essa "necessidade", por favor?
Aproveite e explique também porque eu tenho que receber o turista falando o idioma dele, e não o meu próprio.
Vai te fuder com tanta subserviência.
Nasci sem grilhões, e viverei sem eles - sempre que puder optar, claro.
Pra vocês, Caetano:
Língua
Caetano Veloso

Gosta de sentir a minha língua roçar a língua de Luís de Camões
Gosto de ser e de estar
E quero me dedicar a criar confusões de prosódia
E uma profusão de paródias
Que encurtem dores
E furtem cores como camaleões
Gosto do Pessoa na pessoa
Da rosa no Rosa
E sei que a poesia está para a prosa
Assim como o amor está para a amizade
E quem há de negar que esta lhe é superior?
E deixe os Portugais morrerem à míngua
“Minha pátria é minha língua”
Fala Mangueira! Fala!
Flor do Lácio Sambódromo
Lusamérica latim em pó
O que quer, o que pode esta língua?
Vamos atentar para a sintaxe dos paulistas
E o falso inglês relax dos surfistas
Sejamos imperialistas! Cadê? Sejamos imperialistas!
Vamos na velô da dicção choo-choo de Carmem Miranda
E que o Chico Buarque de Holanda nos resgate
E – xeque-mate – explique-nos Luanda
Ouçamos com atenção os deles e os delas da TV Globo
Sejamos o lobo do lobo do homem
Lobo do lobo do lobo do homem
Adoro nomes
Nomes em ã
De coisas como rã e ímã
Ímã ímã ímã ímã ímã ímã ímã ímã
Nomes de nomes
Como Scarlet Moon de Chevalier, Glauco Mattoso e Arrigo Barnabé e Maria da Fé
Flor do Lácio Sambódromo
Lusamérica latim em pó
O que quer, o que pode esta língua?
Se você tem uma idéia incrível é melhor fazer uma canção
Está provado que só é possível filosofar em alemão
Blitz quer dizer corisco
Hollywood quer dizer Azevedo
E o Recôncavo, e o Recôncavo, e o Recôncavo meu medo
A língua é minha pátria
E eu não tenho pátria, tenho mátria
E quero frátria
Poesia concreta, prosa caótica
Ótica futura
Samba-rap, chiclete com banana
(Será que ele está no Pão de Açúcar?)
- Tá craude brô?
- Você e tu
- Lhe amo
- Qué queu te faço, nego?
- Bote ligeiro!
– Ma'de brinquinho, Ricardo!? Teu tio vai ficar desesperado!
- Ó Tavinho, põe camisola pra dentro, assim mais pareces um espantalho!
– I like to spend some time in Mozambique
– Arigatô, arigatô!
Nós canto-falamos como quem inveja negros
Que sofrem horrores no Gueto do Harlem
Livros, discos, vídeos à mancheia
E deixa que digam, que pensem, que falem.

sexta-feira, 28 de novembro de 2008

Mosaico


Quantos foram os humildes que pediram a meus pés,
E, por discurso, neguei?
Quantos choros retive por medo de me desmascararem,
Sem saber que não usava máscara alguma?
Quantas verdades e certezas joguei na cara dos outros
Sabendo serem falsas?
Quantas vezes deixei de escutar a quem precisava
Por uma pressa inútil?
Quantas vezes menti
Jurando sinceridade?
Quantos anéis arranquei de dedos amigos
Sem nem me dar conta disso?
Quantas vezes fugi da luta e abandonei o barco
Sem considerar a quem havia abandonado?
Quantos nãos eu disse em vida
A quem merecia meus sins?
Quantas vezes me iludi
Com minha falsa fortaleza?
A quem espero enganar
Com essa falsa confissão?
Quantos deuses penso copiar
Em minha liberdade?
A quantos precisarei perguntar
Quem sou eu, afinal?

Sinceramente


Não é teu choro que me comove,
É a tua sinceridade infantil.
Não é tua ausência que me dói,
E sim o teu egoísmo calhorda.
Não é por você que me dôo;
É pelo sonho que construí.
Nunca te traí
Porque jamais trairia a mim mesma.
Para sempre viveria contigo
Desde que o sempre fosse o amanhã.
Talvez eu te escutasse um dia
Se um dia você me enxergasse.
Não é a paixão que me arde,
Isso é loucura.
Não é a você que eu busco
E sim, a gota d´água do meu vazio.
Não é a você que eu amo:
Somente a tua imagem dissemelhante.
Não é por você que choro,
Mas pela tua imagem em meu espelho.
Não tenho esperança de que você me encontre,
Pois meu mundo é fora de teu umbigo.
Meu amor, não é a você que odeio,
É a mim, por amar a você.

quinta-feira, 27 de novembro de 2008

Êta trem bão, soul.


Meu amigo Dimas me provocou, ao dizer que eu andava com mineirices. Quer saber, Dimas? Aí vai sua resposta:

Ei, ó o auê aê, ô! Quéqué isso, cumpadi, tá com firula pra riba deu? Pia a peste, que praga de mãe! Ôrra!
Sabe o que é, Dimas? É que esse trem tem esse troço que faz a gente coisar assim desse jeito, no mais é quatro mais cinco noves fora zero, mano. É marromeno coisa de cabra bestaiado mermo.
Caraca, viu, é cada uma que acontece com o sujeito que, se eu não tivesse embaixo do céu e em cima da terra, não believava não. Se eu não fosse uma guria tão porreta, garanto que tu ia subir teu pneu na calçada na maior, da hora em que o quentão desabrocha até quando o caboclo chega pro chima.
Tá me estranhando, né não? Pra tu chegar assim todo faroleiro puxando o bode no quintal dos outros, se escangalhando do meu palavreado pernamineiro, tem que tá é muito seguro, com costa quente de dotô e tudo.
Óia, pia só um negocinho: eu posso estar morando onde a lombriga torce o rabo, o que importa é que eu vim donde vim, fui pronde fui, passei donde andei, juntei tudo, botei numa cumbuca e tô me refastelando que nem menino buchudo de beira de canal. E ói que o caldo inda nem ficou pronto - imagine quando eu fizer o pirão!

quinta-feira, 20 de novembro de 2008

Amigos

Quando eu conheci o Zé a gente nem tinha uma bola para poder brincar no quintal da casa. Éramos vizinhos. Filhos de pobres, os dois, cada qual com sua penca de irmãos e primos e tios e avós, tudo morando pertinho um do outro. Dava cada briga danada, daquelas que terminavam em correria, xingamento e intriga para o resto da vida que não existia mais em apenas duas horas. Eu e o Zé não, a gente nunca brigou. Teve uma vez só que ele ficou intrigado de mim, mas foi besteira e não demorou nadinha pra gente fazer as pazes de novo. O que aconteceu foi que ele pediu um pedaço do meu chiclete, que eu tinha ganho no troco do pão, e eu neguei. Eu queria fazer uma bola daquelas, das bem grandes, e com meio chiclete de troco de pão não dava. Zé na hora ficou com raiva, mas melhorou a cara quando eu prometi a ele que quando recebesse outro troco de chiclete, eu daria todinho a ele.
A gente cresceu assim desse jeito, como se fosse irmão um do outro. Gostava mais do Zé do que qualquer um dos meus irmãos de sangue, mas isso não quer dizer que eu não gostasse dos filhos dos meus pais. Gostava de todo mundo, mas Zé era meu irmão preferido. E eu sabia que o Zé gostava de mim assim também, como irmão predileto. Como a gente era o primeiro filho de cada família, a gente teve a sorte de ir pra escola desde cedo. Pai dizia que ao menos um tinha que ser estudado, que era pra eu me formar e ajudar os outros a estudarem também, pra tudinho melhorar de vida.
Todo dia eu ia pro grupo escolar, que depois mudou de nome e passou a ser chamado de escola municipal. Gostava de estudar, mas gostava mais mesmo era da hora do sino, quando a professora mandava a gente sair da sala pra dar descanso pra cabeça. Aí juntava os meninos todos e a gente brincava com a bola de Iraquitan, que era meio abestalhado. A gente não gostava de brincar com Iraquitan porque ele não entendia nada direito, tudo a gente tinha que explicar duas vezes para aquele bestado. Mas ele tinha a bola, só ele tinha a bola. Ele não era mais rico do que eu ou nenhum dos meninos. A bola que ele tinha, a mãe dele ganhou num bingo na festa da padroeira. Ela queria ganhar a cesta de comida, mas só tirou a sorte no prêmio da bola, e Iraquitan terminou ficando com o prêmio porque a mãe tinha pena dele, que era bestado.
Eu e Zé éramos bons alunos. Quando ficamos mais velhos, na idade em que não podia mais estudar no grupo, os pais da gente se juntaram e combinaram de mandar nós dois pra Recife, na pensão de uma mulher que era aparentada da prima de mãe e que ficava lá pros lados de Santo Amaro. A mulher tinha dito que fazia um precinho bom se os dois fossem dividir o mesmo quarto, aí o pai acho que era coisa boa de se fazer, e o pai de Zé também achou. E foi assim que a gente veio bater aqui na capital.
Foi difícil, eu não vou mentir aqui pra vocês. Toda vez que eu escrevia uma carta pra mãe, dizia que tava tudo bem, que não faltava nada, mas era pra mãe não se preocupar, coitada. A pensão era ruim, a comida era pior ainda. Ainda assim, a gente conseguiu estudar direitinho, conseguiu passar de ano todo ano. Namorada a gente não tinha, porque na cidade grande, naquele tempo, só namorava com moça de família quem era moço de família, e a gente não era. A gente fazia uns bicos quando aparecia a chance, e com o dinheiro a gente ia adquirindo umas coisinhas bestas, ou gastando com as putas do centro - que a essa altura a gente já era homem feito.
Só sei que nessa dificuldade toda a gente foi levando a vida do melhor jeito que dava pra levar. Como não tinha dinheiro pra se divertir direito, a gente enfiava a cara nos livros, e assim a gente conseguiu, logo de primeira, vaga na universidade. Zé foi estudar pra ser doutor, pra ser médico, e deixou todo mundo da família mais contente que pinto no lixo. Eu achava bonito ser advogado, e consegui me formar sem ser reprovado nenhuma vezinha. Pai e mãe quase morreram de felicidade quando eu contei que tava estudando.
Muita coisa boa e ruim aconteceu nesse tempo de faculdade. E eu e Zé sempre unidos, sempre irmanados, passando por tudo junto, um dando força ao outro, sempre na pensão de Santo Amaro. A gente era separado lá na faculdade porque era pobre. Na minha turma de aula, os outros queiram porque queriam que eu deixasse de falar "como matuto", como eles diziam, pra falar "como gente", ou seja, era para eu imitá-los. Não, moço: hoje eu uso até terno, mas nasci bicho do mato e vou morrer assim. É como eu gosto de ser, e se você não gostar, o problema é seu.
Lindaura gostava, no começo. Ela não implicava com meu jeito de falar, e dizia que gostava de mim. Eu mesmo acho que ela gostava mesmo. Não sei o que ela viu em mim, mas gostou e eu gostei dela também. A gente namorou com a permissão dos pais dela, tudo certinho. Só que de tanto a gente namorar, eu quis pegar mais intimidade com ela, e ela me apertou dizendo que se era pra começar com safadeza, era melhor casar. E foi por isso que eu casei. Pela primeira vez na vida, ia morar distante de Zé. A essa altura, eu recém-formado, já ganhava um dinheirinho. Aluguei uma casinha em Campo Grande e fui levar o resto da minha vida.
Zé demorou mais que eu a casar. Dizia que o curso exigia muito mais estudo, e eu acho que era verdade mesmo, porque Zé só fazia estudar, enquanto eu namorava com Lindaura. Zé só foi sair da pensão quando já tinha mais de 30 anos. A essa altura ele já tinha um monte de emprego e ganhava um dinheiro bem bom, mas só queria saber de juntar dinheiro e de trabalhar, trabalhar, trabalhar. A gente ficou meio afastado nesse tempo. Aí um dia ele teve lá em casa, Lindaura já esperava nossa primeira filha, e disse que tinha encontrado uma moça boa e ia se casar.
A moça era boa mesmo, parecia. Zé casou com ela. E essa foi a nossa desgraça.
Hoje eu já tô cansado de contar história da minha vida. Outro dia eu termino essa conversa.
Boa noite procês tudo.

quarta-feira, 19 de novembro de 2008

Tá todo mundo louco, oba!


19/11/2008 - 08h38
Dantas pagou R$ 18 milhões em propinas a políticos, juiz e jornalistas, diz PF
Publicidade

RUBENS VALENTE, da Folha de S.Paulo
O delegado da Polícia Federal Carlos Eduardo Pellegrini, que atuou na Operação Satiagraha, revelou que a PF apreendeu documentos no apartamento do banqueiro Daniel Dantas que apontam pagamento "de propinas a políticos, juiz, jornalistas".

Cadê a lista dos coleguinhas que receberam propina? Se fosse só de políticos e juízes, os nomes estavam bombando em tudo que era canto.

As revelações de Pellegrini, que não citou nomes,

Por que não citou nomes? E cadê esses nomes agora? Falar nisso, alguém já ouviu falar da lista de coleguinhas que recebem o plano de saúde da Câmara? Não? Pois é... mas os nomes dos beneficiários é segredo de estado.

estão gravadas na fita que documentou a reunião ocorrida no dia 14 de julho na sede da PF paulistana, que selou o afastamento do delegado Protógenes Queiroz do comando da investigação.
Leiam "O Processo", de Kafka, e vão entender melhor o por quê do delegado que investiga estar sendo escrachado pelas autoridades, enquanto o banqueiro - ladrão corrupto e outros sinônimos tais - está realizando jantares de confraternização.
Pellegrini disse à Folha

corrigindo: à Falha

na quarta-feira que não se recorda de ter dito isso na reunião.

Falha de memória é comum. Muito estresse, sabe cuméqueé.
"É um grupo muito forte. Eu fui executar a prisão [de Dantas] lá no [escritório do advogado] Nélio Machado [em SP] e tinha dois desembargadores aposentados e um juiz do Rio. Na casa do Dantas eu achei vários documentos --o Vitor achou de 2004--, de 2007, R$ 18 milhões de pagamento de propinas para políticos, juiz, e jornalistas no ano de 2007", disse Pellegrini.

Aliás, diz o anedotário universitário: sabe o que acontece com jornalista apadrinhado quando é pego com a mão na botija de porcelana chinesa? Vira correspondente internacional (opa, a maioria dos correspondentes são sérios, mas sempre não é todo dia), tira férias de seis meses ou vira comentarista. Não é uma Gracinha, Alexandre?

terça-feira, 18 de novembro de 2008

Domingão

Quando acordei senti aquele troço peludo entre minhas pernas. Quente, macio, mas incômodo. Quis me virar e não consegui com aquele peso me prendendon as pernas. E eu queria dormir mais. Eu podia dormir mais: era domingo e eu não tinha nenhum compromisso. Ia passar o dia todo de bobeira dentro de casa, fazendo nada, que é uma das coisas que mais gosto de fazer. Merda, aquele troço me prendendo as pernas, me tirando o sono, me tirando o humor. E nem de gato eu gosto. Aliás, o que esse gato está fazendo em cima da minha cama, no meio das minhas pernas?
Fecho os olhos. Engraçado, olhos abertos ou fechados não devem interferir em nada o nosso pensamento. Mesmo sabendo disso, fecho os olhos sempre que quero me concentrar demais em alguma coisa. E agora eu quero me concentrar pra saber o que diabos essa coisa peluda e de unhas afiadas está fazendo em cima de mim. Ah sim - lembro: dormi na casa de uma amiga. E ela tem um gato. Ou melhor, uma gata, Chuchu.
Forço um pouco mais minha concentração. Minha amiga deve estar dormindo. Não escuto nada, nenhum barulho. Não vai ver se eu matar a gata. Não, não precisa matar. Basta esganar e jogar a uma distância mínima de cem metros. O que acontecer no trajeto (meio ou fim) não me diria respeito. Só respondo pelo que acontecer na saída. Sou igualzinha a vendedora de McDonalds, não me importo com sabor, textura ou temperatura - afinal, o cliente primeiro passa no caixa e só depois é que faz o pedido. E quem gasta 13 contos pra comer aquilo, merece mesmo esse tratamento.
Desisto do plano. Sinceramente? Sempre soube que não o cumpriria mesmo. Todo mundo sabe disso, que sou espalhafatosa e bocuda, mas no fundo eu só tenho é tamanho mesmo. Epa, não tamanho de fundo, tamanho no fundo. Quer dizer, na verdade eu só tenho tamanho. Ah, vocês entenderam. Jamais faria uma maldade com um bicho. Talvez alguma maldade com o bicho-homem. Talvez muita maldade com esse animal, no entanto, ele sempre merece. Quando ele sacaneia, é de caso pensado, com argumento e tudo. Por isso sacaneio esse bicho: porque sou da mesma laia que ele. Um pouquinho melhor que um bocado deles, um tantinho pior do que um monte, mas no geral, tirando dois botando cinco e multiplicando por zero, igualzinha aos meus. Quem sai aos seus não degenera, dizem.
Tiro cuidadosamente a gata de cima das minhas pernas com um pouco de medo. Tenho medo de felinos, eles são muito ágeis demais da conta pro meu gosto. Quando eu penso que vou receber uma lambida (sem sacanagem) posso levar uma unhada, e visse o verso. Desssa vez fui cheia de cuidados e a gatinha correspondeu toda dengosa, esfregando a cara em minha mão, pedindo só um pouquinho de carinho pelamordedeus. Ai que lindinha... tão fofa... mas peraí, essa coisa peluda me acordou cedo num domingo preguiçoso e sem compromisso, a filha da puta.
Tiro a gata de cima da cama, levanto, estico os músculos igualzinho à gata. Vi ela se espichando toda num espreguiçar de dar inveja, e deu. Inveja, claro. E fiz. Igualzinho, mas do meu jeito, me estiquei e até pensei que o molar direito tinha se esticado um pouquinho também. Vou ao banheiro fazer o xixi sagrado (sempre essa maldita impressão ao acordar: se eu tivesse dormido mais cinco minutos, mijaria na cama). Escovo os dentes antes mesmo de colocar qualquer comida na boca. Tenho essa mania: acorda, escova os dentes. Come, escova os dentes. Vai deitar, escova os dentes. Vai sair, escova os dentes.
Tomo um banho, visto o camisão de novo. A seguir, o gesto fatal de intimidade: vou na cozinha, vasculho tudo até encontrar cafeteira, filtro de papel e pó de café. Sem o café da manhã não sou nada, sem o café da manhã eu não acordo, sem o café da manhã fico com dor de cabeça o dia todo. E ficar com dor de cabeça num domingo que não se tem porra nenhuma pra fazer é lasca.
Peraí... se é domingo, se eu não tenho compromisso, se não tem nada pra fazer, o que é que estou fazendo em pé às 8 da madrugada, já de banho tomado? Ah, a gata.
- Chuchu! Chuchu! Vem aqui, gracinha... vem, Chuchu...
Lembrei. Agora eu juro que mato ela.

Dimas, esse é o primeiro exercício que eu faço com o seu novo método de escrita. Saiu assim fácil, fácil. Gostei.

segunda-feira, 17 de novembro de 2008

Decisão


Reencontrei minha esperança numa encruzilhada
Bem no meio do transtorno de duas avenidas
De braços dados com o sorriso e sendo puxada pelo pranto
Imune à realidade, como quase sempre.
Tinha na mente o futuro
E arrastava o passado nos pés inchados, maltratados, imundos.
Os olhos buscavam o movimento à procura de quietude
Contrariando sua natureza arisca e imprudente.
O próprio corpo se rebelava, desejando o verso,
Como se não pudesse unir antes o que era e o que devia ser
Numa única existência, ainda mais curta que a minha e a sua.
E tudo isso parado, em pé, numa encruzilhada qualquer.
À direita, viu a decepção gingando com bossa, se aproximando;
Do outro lado, a coragem chegava.
Entre uma e outra, nenhuma:
Tomou impulso e correu pra frente. Foi.
Entre o desespero e a coragem, nada.
Entre ser e não mais ser, a desistência.
Toda a minha esperança esmagada
Ali, naquela qualquer encruzilhada.

segunda-feira, 10 de novembro de 2008

Ah, se Nelson Rodrigues estivesse vivo...


Louca é a vida real, não a imaginação - esta sim, limitada. Tem dúvida? Pois olha só o que aconteceu de ontem para hoje no mundo - só uma pequena amostra, claro. Notícias retiradas do site G1.


1) "Você vem comigo!"

Idosa morre ao ser atingida pelo caixão do companheiro
Uma mulher de 67 anos morreu na madrugada desta segunda-feira (10), depois de ser atingida pelo caixão do seu companheiro. Segundo a assessoria de imprensa do Comando Rodoviário da Brigada Militar, a idosa estava no veículo da funerária, que transportava a urna de Tapes para Alvorada (ambas no Rio Grande do Sul), pela RS-717. Um carro bateu na traseira e o caixão acabou se deslocando e atingindo a vítima.


2) O que acontece quando não se tem uma lista telefônica:

Um homem que era mantido refém desde sábado (8) em Santo Anastácio, a 589 km de São Paulo, foi libertado na tarde deste domingo (9) pela Polícia Militar. De acordo com a polícia, dez pessoas, entre elas cinco adolescentes, foram flagrados agredindo e torturando a vítima. Todos foram presos. Segundo a vítima, os suspeitos queriam que ele fornecesse nomes, endereços e dados pessoais de alguns de seus parentes, que são agentes penitenciários. Como a vítima havia se recusado, mesmo tento sido agredida com choques elétricos, os criminosos se preparavam para matá-la.

3) Deus precisa tomar uma providência!

(...) Lula também falou no “Café com o presidente” sobre a viagem que faz para a Itália nesta segunda. De acordo com ele, no país europeu serão discutidas com empresários a possibilidade de investimentos no Brasil. O presidente também terá um encontro com o papa Bento XVI, em que será assinado um acordo entre o Estado brasileiro e o Estado do Vaticano. Lula disse que aproveitará para falar com Bento XVI sobre a crise econômica.


4) Vários coelhos com uma dinamitada só:

Criminosos invadiram a Delegacia de Entorpecentes de Botucatu, a 238 km de São Paulo, na madrugada desta segunda-feira (10). Quando deixavam o local, eles usaram dinamite para destruir o prédio, que corre o risco de desabar. Eles chegaram em uma caminhonete, arrombaram a porta da frente, roubaram o cofre onde ficavam guardadas as drogas apreendidas e também levaram as armas. Depois, queimaram todos os inquéritos e boletins de ocorrência que estavam na delegacia.


5) Pra que lado a corda arrebenta mesmo? Vide Kafka.

A Polícia Federal (PF) deverá indiciar ainda esta semana o delegado Protógenes Queiroz, responsável pela Operação Satiagraha , por cinco crimes: quebra de sigilo funcional, desobediência, usurpação de função pública, prevaricação, grampos e filmagens clandestinas. A operação efetuou a prisão do banqueiro Daniel Dantas. Se condenado por todos os crimes, como deseja a própria PF, Protógenes pode pegar as penas mínimas, somadas, de três anos, seis meses e 15 dias de prisão.

6) Barganha da Universal Pictures.

Uma famosa série infantil de TV está proibida para menores de 18 anos na Finlândia. A versão em DVD de "Little House on the prairie", que no Brasil foi traduzido como "Os pioneiros", não foi submetida à classificação etária e acabou recebendo o carimbo com a marca "só para adultos".
Meri Suomela, gerente de marketing da Universal no país, diz que a empresa decidiu não enviar a série aos órgãos de classificação porque queria economizar dinheiro. As autoridades finlandesas cobram o equivalente a US$ 2,57 por minuto de duração de cada obra audiovisual submetida à análise. Distribuidores que se recusam a ter um produto analisado são obrigados a vendê-lo com o selo "proibido para menores de 18 anos".


7) Tem certeza que não é meu???

Flagrado por um policial em Fairbanks, no Alasca, um motorista se disse surpreso de estar dirigindo um carro roubado. Charles J. Schultz, 27, afirmou ter certeza de que estava em seu Chevy Cavalier quando foi informado de que na verdade dirigia um Escort, da Ford. Apesar de suas afirmações, o homem responderá na Justiça por furto de automóvel e por dirigir sob efeito de substâncias químicas. Testes de sangue feitos no rapaz mostram que ele havia ingerido duas vezes mais álcool do que poderia, antes de dirigir.


8) Flanelinhas, unidos, jamais serão vencidos!

O Sindicato dos Guardadores de Automóveis (Singaerj) informou que 90% dos estacionamentos rotativos da Zona Sul continuam sendo ocupados por guardadores autônomos. Nesta segunda-feira (10), estava previsto o início do novo sistema, administrado pela empresa Embrapark. Às 7h, os guardadores, segundo o presidente do Singaerj, José Vieira, começaram a ocupar seus pontos do Leme a São Conrado, impedindo que os funcionários da nova empresa começassem a trabalhar. Mas segundo ele, não houve tumulto. Somente em Copacabana houve discussão e o caso, de acordo com Vieira, foi levado à 13ª DP (Ipanema). “Estamos lutando por nossos direitos. Essa empresa ganhou a licitação de forma irregular, segundo o próprio Tribunal de Contas do Município (TCM). A prefeitura não deveria permitir isso. Entramos com recurso contra a empresa, mas ele ainda não foi julgado. Queremos garantir o emprego 1.800 guardadores autônomos”, disse Vieira.


9) PAULO COELHO ironiza o vazio existencial do mundo fashion!

Para escrever o livro “O vencedor está só”, cujo tema central é o culto das celebridades, precisei fazer uma interessante pesquisa sobre a rotina daquelas que habitam o imaginário coletivo: a modelo fotográfica. Por mais diferentes que sejam, existe um invariável padrão de comportamento que reproduzo aqui:
A] antes de dormir, usam vários cremes para limpar os poros e conservar a pele hidratada – viciando desde cedo o organismo à dependência de elementos externos. Acordam, tomam uma xícara de café preto, sem açúcar, acompanhada de frutas com fibras – de modo que os alimentos que vão ingerir durante o dia passem rapidamente pelos intestinos. Sobem na balança três a quatro vezes por dia; entram em depressão por causa de cada grama a mais que o ponteiro acusa.
B] Todas estão conscientes de que em breve serão ultrapassadas por novos rostos, novas tendências, e precisam urgentemente mostrar que o talento vai além das passarelas. Vivem pedindo às suas agências que consigam um teste, de modo que possam mostrar que são capazes de trabalhar como atrizes – o grande sonho.
C] Ao contrário do que diz a lenda, pagam suas despesas – passagem, hotel, e as saladas de sempre. São convocadas pelos assistentes de estilistas para fazer o que chamam de casting, a seleção das que serão escolhidas para enfrentar a passarela ou a sessão de fotos. Neste momento, estão diante de pessoas invariavelmente mal-humoradas que usam o pouco poder que têm para extravasar as frustrações diárias, e jamais dizem uma palavra gentil ou encorajadora: “horrível” é geralmente o comentário mais escutado.
D] Seus pais se orgulham da filha que começou tão bem, e se arrependem de terem comentado que eram contra aquela carreira – afinal de contas, estão ganhando dinheiro e ajudando a família. Seus namorados têm crises de ciúmes, mas se controlam, porque faz bem ao ego estar com uma profissional da moda. Suas amigas as invejam secretamente ou abertamente.
E] Freqüentam todas as festas para que são chamadas, e se comportam como se fossem muito mais importantes do que são, um sintoma de insegurança. Ali estão sempre com um copo de champanhe nas mãos, mas isso é apenas parte da imagem que desejam passar. Sabem que o álcool tem elementos que pode afetar o peso, de modo que a bebida preferida é água mineral sem gás – o gás, embora não afete o peso, tem conseqüências imediatas sobre o contorno do estômago.
G] Dormem mal por causa dos comprimidos. Escutam histórias sobre anorexia – a doença mais comum no meio, uma espécie de distúrbio nervoso causado pela obsessão com o peso e com a aparência, que termina educando o organismo a rejeitar qualquer tipo de alimento. Dizem que isso não acontecerá com elas. Mas nunca notam quando os primeiros sintomas se instalam.
H] Saíram da infância diretamente para o mundo do luxo e glamour, sem passarem pela adolescência e juventude. Quando lhes perguntam quais os planos para o futuro, têm sempre a resposta na ponta da língua: “faculdade de filosofia. Estou aqui apenas para poder pagar meus estudos”. Sabem que não é verdade. Não podem se dar ao luxo de freqüentar uma escola – há sempre um teste pela manhã, uma sessão de fotos à tarde, uma festa em que precisam estar presentes para serem vistas, admiradas, desejadas.
As pessoas acham que vivem uma vida de contos de fada. E elas querem acreditar nisso. Até que um escritor mais curioso resolve não desistir, e ir adiante nas perguntas. Depois de muita hesitação, terminam dizendo: “nasci para ser atriz. Portanto, sou capaz de fingir que esta miséria é a profissão mais glamourosa do mundo”.

..................................................................................................

Depois dessa, chega né?

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

Reação

Quanto mais me dói,
Mais valorizo minha liberdade.
Quanto mais me machuca,
Mais me amo.
Quanto mais me irrita,
Mais desabafo e brigo.
Quanto mais me provoca,
Menos penso em ceder.
Quanto menos me valoriza,
Sou muito mais eu.
Posso até chorar,
Mas será sempre menos que você.

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

Raiva

Tem o suor.
O calor avermelha o rosto
O ar foge do seu alcance
A visão torna-se turva
O cérebro acelera
Tudo fica limpidamente confuso.
A profusão das peças que compõem o quebra-cabeça.
Nem dá para sentir o amor indo embora
A consideração, o respeito se esvaindo
A mente trocando de dono
E o olho que só enxerga o alvo.
Nem se pode lembrar de outra coisa qualquer
Que esteja fora daquele instante.
O animal se impõe quase absoluto.
O que ainda há de humano
Forma migalhas invisíveis pelo ar
Presas a uma única e frágil raiz,
Um simples resto de racionalidade.
A cobiça se foca no mal ao outro
O orgulho só deseja a vingança,
O décimo segundo que certifica o nocaute.
A passividade se reverte em ação
A lógica sobe na corda bamba
Frustrações antigas se agrupam rapidamente
E tudo forma um conjunto sólido
A reverberar o sentimento
Que liberta a fera acossada
Que normalmente ruge e toma seu destino,
Mas que, hoje, só se contenta com a carniça.
É a transmutação do medo,
A justiça em meio à impunidade,
A sobressalência do eu,
A reação.