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terça-feira, 28 de janeiro de 2014

Exegese do coração


Gosto de imaginar Deus como um Grande Leitor. Leitor, diga-se, do imenso, absoluto, infinito, cósmico Livro dos Tempos. Imagino-O a folhear o Seu livro à hora do morno entardecer do Paraíso. Nós somos personagens - umas vezes principais, outras secundárias. Deus ri-se connosco, zanga-se, comove-se, surpreende-se, castiga-nos, perdoa-nos, perde-se na leitura e volta, uma vez por outra, atrás (divinas analepses,estas).
Quando está cansado, interrompe a leitura e dorme placidamente na sua nuvem preferida (que tem a forma do colo de minha Mãe, há meio século, no quarto humilde da nossa casa). Voltará à leitura apenas quando Lhe apetecer. 
Só no fim dos tempos Ele preencherá a ficha de leitura sobre esta narrativa. E só então saberemos, ó personagens distraídas como eu, o que o Grande Leitor achou do que fomos. Isto é: do que, nesta ilusão chamada Presente, somos.
A eternidade é talvez isso: a ideia com que o maior leitor do universo ficou, ficará de nós.

Ribeira de Pena, 28 de Janeiro de 2014.
Joaquim Jorge Carvalho

[Este texto foi originalmente publicado (com ligeiríssimas diferenças) no jornal da Escola Básica de Arco de Baúlhe,o Arco-Íris, em Julho de 2007.A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.escritoradeartes.com]

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

A Casa misteriosa


Quando chegou ao País da Sabedoria, Rui estranhou o facto de haver tão poucas casas. Uma senhora elegante e amável esclareceu-o:
- Muitos dos nossos habitantes partilham o mesmo tecto…
À frente de uma linda casa, à entrada da rua principal da cidade mais antiga do País, o rapaz viu um senhor muito bem vestido, de modos correctos, que observava algo nos céus. Ao fim de dois minutos, o homem entrou.
A senhora elegante e amável explicou quem era aquela figura tão delicada e firme:
- É o senhor António Média. A sua profissão é informar. Precisamos muito dele em casa. Dá-nos factos, faz-nos relatos de acontecimentos, mantém-nos sempre actualizados.

Depois, chegou uma menina vestida de azul e verde, linda como uma manhã de Primavera. O Rui suspirou, sentindo palpitações no coração.
- Quem é aquela?
- É a menina Sofia Poesia – disse a senhora amável. – Passeia pelos bosques, pela cidade, pela praia, e traz, a cada nova viagem, uma canção, um poema, uma forma única de olhar para o mundo que oferece aos habitantes da casa. Sem ela, não saberíamos, tantas vezes, como explicar verdadeiramente o que sentimos ou somos.

Logo a seguir, chegou um casal de velhinhos muito simpáticos, que cumprimentaram quem passava antes de entrarem na casa. O Rui já nem teve de perguntar fosse o que fosse, pois a senhora amável de imediato satisfez a sua curiosidade:
- Aqueles são o casal Narrativa. Ela é Maria dos Contos e Lendas. Ele é o José dos Romances. São um precioso tesouro da casa, porque estão sempre a lembrar-se de histórias maravilhosas, que partilham com quem os quer ouvir. São sempre belas histórias que descobriram ou que simplesmente inventaram. Ouvindo-os, é como se o mundo recuperasse, no nosso entendimento, alguma espécie de ordem e de claridade.

Finalmente, era já quase noite, chegou uma senhora loira com os seus muitos filhos alegres e barulhentos. Ao caminhar, a mãe ia dizendo, segundo pareceu a Rui, frases admiráveis, porque as crianças à volta soltavam interjeições de espanto (oh!, ah!, ui!, eh!) e, por vezes, batiam palmas.
- É a madame Núria Teatro. Diverte muito os habitantes da casa e do nosso País em geral. Nos seus gestos, nas suas palavras, até nos seus silêncios, vemos reflectida a nossa vida essencial.

O Rui estava muito impressionado. E fez uma última pergunta:
- Mas, afinal, como se chama esta casa, minha senhora?
A dama, sempre amável, respondeu:
- Chama-se Livro. Sou eu a sua guardiã, a mademoiselle Leda Leitura. Podes visitar-nos sempre que queiras.

Arco de Baúlhe, 19 de Novembro de 2013.
Joaquim Jorge Carvalho

[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em gabigabiruska.com. Este texto foi elaborado no âmbito do trabalho da promoção da leitura que venho levando a cabo, no seio da Biblioteca da minha Escola.]

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Os Cinco, de Enid Blyton: a aventura de ler

Enid Blyton nasceu em Londres, em 1897. Embora a sua escrita se tenha destinado, maioritariamente, aos mais jovens, é hoje um dos nomes mais populares da literatura universal. Desde cedo revelou uma capacidade notável para criar histórias cheias de aventura e emoção. Os seus heróis não se limitavam, na maior parte dos casos, a uma história em particular: a autora parecia não ser capaz de se desligar tão facilmente destas personagens tão cheias de vida, pelo que em muitos casos um título dava início a uma série de volumes. Foi o caso, por exemplo, de Noddy, Os Cinco, Os Sete, ou As gémeas.
Enid Blyton foi um fenómeno em matéria de imaginação e labor. Ao longo da sua existência de 71 anos, escreveu cerca de 800 livros. As suas obras estão traduzidas um pouco por todo o mundo, em mais de noventa línguas.
Esta autora inglesa marcou maravilhosamente a minha infância e o meu princípio de adolescência. Habituei-me a comprar, um a um, os livros da colecção “Os cinco” e muitas vezes tive a sensação de que o Júlio, a Ana, o David, a Zé e até o cão Tim eram meus colegas diários de brincadeiras e cumplicidades.
Quando casei, tinha um irmão pequeno, de dez anos apenas. Notei que ele estava triste por eu sair de casa e, num rasgo emotivo, ofereci-lhe os vinte e um volumes da coleção de “Os cinco”. Ele, infelizmente nunca foi dado à leitura e, como me confessou mais tarde, não chegou a ler um dos voluminhos sequer. Mas, doze anos mais tarde, na altura do seu próprio casamento, teve também um gesto sublime: sabendo que a minha filha, então já com nove anos, adorava ler, veio a minha casa e ofereceu-lhe os vinte e um livros da colecção…
As aventuras destas cinco personagens (sim, o fiel e corajoso Tim também é uma personagem) têm uma dimensão de “policial”, mistério e suspense. Mas são sobretudo viagens por lugares interessantíssimos, em que os jovens primos (Júlio, David e Ana são primos da simpática e “arrapazada” Zé) vivem histórias emocionantes, separados da autoridade e conforto das respectivas famílias, solucionando enigmas ou reparando injustiças com esforço, bravura e inteligência.
Como eu invejei, tantas vezes, as merendas deliciosas que, no intervalo ou no fim das aventuras, as mães da Zé ou dos outros três primos preparavam para os esfomeados jovens!
Sei que houve já uma série televisiva inspirada nestes heróis e que hoje podemos rever as histórias em DVD. Mas nada – nada mesmo! – consegue substituir a magia de, pela leitura, viajarmos com os primos mais aventureiros que jamais conheci!
A colecção completa compreende os seguintes títulos: Os Cinco na Ilha do Tesouro (1942); Os Cinco numa Nova Aventura (1943); Os Cinco Voltam à Ilha (1944); Os Cinco e os Contrabandistas (1945); Os Cinco e o Circo (1946); Os Cinco e os Espiões (1947); Os Cinco e os Comboios Misteriosos (1948); Os Cinco Metem-se em Sarilhos (1949); Os Cinco e a Cigana (1950); Os Cinco e as Jóias Roubadas (1951); Os Cinco Divertem-se a Valer (1952); Os Cinco e a Luz Destruidora (1953); Os Cinco no Pântano Misterioso (1954); Os Cinco numa Aventura Americana (1955); Os Cinco e as Passagens Secretas (1956); Os Cinco e os Aviadores Desaparecidos (1957); Os Cinco e o Mistério na Neve /1958); Os Cinco e os Gémeos Silenciosos (1960); Os Cinco nos Rochedos do Demónio (1961); Os Cinco e a Ilha dos Murmúrios (1962); Os Cinco e o Cientista Distraído (1963).
No ano em que Enid Blyton publicou o último livro de “Os cinco”, nascia em Coimbra um bebé gordinho a quem deram o nome de Joaquim Jorge Carvalho. Mal sabia ele que, à sua espera, estavam vinte e uma aventuras prontinhas a consumir…

Arco de Baúlhe, 06 de Novembro de 2013.
Joaquim Jorge Carvalho
[Texto elaborado no âmbito da promoção da leitura na Escola Básica de Arco de Baúlhe.]



O Soldado João, de Luísa Ducla Soares: literatura contra a guerra



Luísa Ducla Soares nasceu em Lisboa, a 20 de julho de 1939. Licenciou-se em Letras, em Filologia Germânica. Iniciou a sua atividade profissional como tradutora, consultora literária e jornalista. Foi diretora da revista de divulgação cultural Vida, entre 1971 e 1972. Escreveu para diversos jornais e revistas. No campo da criação literária, estreou-se com um livro de poemas, intitulado Contrato, em 1970. Trabalhou, como secretária adjunta no Gabinete do Ministro da Educação (entre 1976 e 1978). Trabalha, desde 1979, na Biblioteca Nacional.
Como escritora, orientou a sua atividade para a literatura destinada a crianças e jovens, tendo publicado mais de 80 obras. A sua obra foi considerada, desde cedo, uma das mais importantes na área da literatura infanto-juvenil de língua portuguesa. Recusou, por motivos políticos, o Grande Prémio de Literatura Infantil que o governo de Marcelo Caetano quis atribuir-lhe, em 1973, pelo seu livro História da Papoila. Recebeu o Prémio Calouste Gulbenkian para o melhor livro do biénio 1984-1985 por 6 Histórias de Encantar e, em 1996, foi galardoada com o Grande Prémio Calouste Gulbenkian pelo conjunto da sua obra. Em 2004 foi selecionada como candidata portuguesa ao Prémio Hans Christian Andersen.
O livro O Soldado João relata-nos uma simples e interessantíssima história sobre um certo militar que, no quotidiano da guerra, adota uma atitude profundamente humanista e divertida, muito diversa da que seria previsível e normal para um combatente. No início, os seus superiores reagem negativamente àquele comportamento tão pouco convencional e, no âmbito da atividade guerreira, tão pouco produtivo. No final da história, contudo, acaba por ser ele a promover, com as suas ações originais e surpreendentes, a apetecida paz.
Pormenor interessante: esta formosa história, que Luísa Ducla Soares tão bem conta (e Assunção Melo tão bem ilustra), lê-se em menos de meia hora.
Conselho de Amigo para os meus queridos alunos: vão à prateleira certa e escolham O Soldado João. Vale muito a pena.

Arco de Baúlhe, 22 de Outubro de 2013.
Joaquim Jorge Carvalho
[Texto elaborado no âmbito da promoção da leitura na Escola Básica de Arco de Baúlhe.]

sábado, 18 de maio de 2013

Dívida a Júlio Dinis



Há muitos anos, fiz algo de que me orgulho muito e de que me não orgulho coisa nenhuma: roubei um livro. Eu sei que roubar é feio, que roubar é errado, que roubar é indigno. Nem a desculpa de, à época, eu ter apenas uns oito ou nove anos, é desculpa que se diga. Mas o livro chamava-se As Pupilas do Senhor Reitor, tinha uma capa bonita que sugeria histórias interessantes, ricas, coloridas, aquele quiosque da Rua da Sofia (em Coimbra) era pouco vigiado – e eu, enfim, Deus me perdoe, roubei aquele romance.
A proeza custou-me, nem dez minutos depois, um valente tabefe da minha mãe e a ameaça de que, em regressando à baixa coimbrinha, haveria de devolver o livro, sofrendo a vergonha provável das testemunhas que ali houvesse. Nunca o devolvi. Fiquei, digamos assim, em dívida.
O tempo, paciente, passou.
Li esse livro roubado com o prazer que só as experiências mais lindas e queridas podem provocar. Descobri que Júlio Dinis era (e é) um dos melhores contadores de histórias da nossa literatura. Não do século XIX, atenção. De sempre!
Fiquei tão apaixonado pela sua prosa que, à medida que tinha dinheiro e oportunidade, dei por mim a comprar tudo quanto o autor escrevera. E que pena foi ele ter morrido tão jovem (com cerca de 30 anos) – tanto que decerto ainda teria escrito, para eu ler, para nós lermos!
Sabei que o primeiro romance que Júlio Dinis escreveu não foi As Pupilas do Senhor Reitor. Foi um outro intitulado Uma Família Inglesa. Mas ele quis publicar, em primeiro lugar, As Pupilas. Teve, digo eu, a clara noção de que, no panorama literário português, era com esse romance que impressionaria o público leitor. Tratou-se, digamos assim, de um “cartão de visita” que fabricou e apresentou ao seu mundo, à sua época. Algo como isto: “Olá. Chamo-me Júlio Dinis. Escrevo assim… Gostam?”
No romance, a história fundamental passa-se no campo (talvez na região do Minho). Tudo começa com a vocação de Daniel para os estudos e para os amores. Depois, através da pena genial do escritor, temos numerosos episódios ora divertidos, ora dramáticos: namoros, discussões, anedotas, passeios, uma desfolhada, alguns conflitos, doces reencontros.
Página a página, há um Portugal colorido e vivíssimo que, ao ritmo apaixonado da leitura, nos entra olhos e alma adentro. Nunca talvez o mundo rural foi tão humanamente contado e mostrado como nos contos e, sobretudo, nos romances de Júlio Dinis.
Não por acaso, cerca de 35 anos depois do roubo que acima recordei, eu defendi uma tese de doutoramento, na área da Literatura Portuguesa – e chamei-lhe “Acção, Cenas e Personagens na Narrativa Dinisiana: As Pupilas do Senhor Escritor”. Foi a minha forma de pagar aquela dívida antiga.
Garantia para os meus jovens alunos: vale muito a pena ler este romance. E não é só para quem goste da maravilhosa magia de uma boa narrativa. É também, ainda, para quem (como eu) gosta da ideia – imaginária ou real – de um mundo simples e belo, em que as pessoas vivem simplesmente, formosamente, naturalmente. O mundo em que, afinal, todos nós gostaríamos de viver.
  
Arco de Baúlhe, 17 de Maio de 2013.
Joaquim Jorge Carvalho

[Texto no âmbito da promoção da leitura que venho a levando a cabo na minha Escola, com outros colegas.]

sexta-feira, 12 de abril de 2013

Elogio do Dicionário


Eu gosto de dicionários.
Mais do que todos, gosto do Dicionário de Língua Portuguesa. Habituei-me, desde muito novo, a consultá-lo, a confiar no que ele me dissesse, a colher nele a sabedoria que normalmente só encontramos em pessoas muito velhinhas e muito inteligentes.
Bem sei, hoje há - na internet - o Google e outros motores de busca. Mas não é a mesma coisa. O meu Dicionário-livro tem um ritmo adequado às minhas dúvidas e à minha curiosidade. Não está dependente da electricidade, do alcance de rede, da meteorologia, de tarifário & saldo, da eventual existência de pirataria informática ou erros de informação. Bato à porta da sua sabedoria, entro nele com olhos, dedos, cérebro – e beneficio sempre da sua luz como uma planta do sol.
Encanta-me a possibilidade de conhecer o sentido de algumas palavras em que, leitura a leitura, vou tropeçando no meu quotidiano leitor. E também me acontece, por acaso, enquanto ando à procura do significado de certos vocábulos, descobrir novos termos, que depois utilizo gulosamente, adequadamente, orgulhosamente.
Por exemplo, gostei muito de saber que havia uma palavra para dizer alma grande (bondosa, generosa, amável): longanimidade. Ou, há muito mais tempo, que obsoleto quer dizer ultrapassado, fora de moda, inútil (e que o nome certo relacionado com esse adjectivo é obsolescência).
Comoveu-me a ideia de que tristeza já foi (e ainda é, se quisermos) tristura. Que beleza também se pode dizer pulcritude. E que há outros preciosos substantivos (nomes) terminados em ude: atitude, beatitude, similitude, plenitude, completude.
Desconhecer palavras é um pouco como andar perdido no universo da linguagem. O Dicionário é uma luz, uma saída segura e certa. Também é, de certo modo, uma espécie de oxigénio da comunicação: conhecemos mais palavras, respiramos melhor. Vamos mais longe, mais alto, mais fundo, porque temos fôlego para tal.
É muito bela a minha, nossa Língua Portuguesa. Digo bela, mas poderia igualmente dizer linda, ou formosa, ou melodiosa, ou até amada. O Dicionário oferece-me mil adjectivos para exprimir o meu amor e a minha admiração. (Mil adjectivos é uma hipérbole. Hipérbole é um recurso estilístico que consiste numa forma de exagero retórico. Sei isto porque, há muito tempo, consultei o Dicionário e aprendi.)
O Dicionário é meu Amigo com maiúscula. Amigo ínclito. Ínclito significa ilustre e celebrado. Se não acreditas, vai ao Dicionário.           

Arco de Baúlhe, 12 de Abril de 2013.
Joaquim Jorge Carvalho
[Texto elaborado para a Biblioteca da Escola Básica de Arco de Baúlhe, no âmbito do trabalho de promoção da leitura.]

sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

Gianni Rodari ao telefone



Descobri, há uns vinte anos, um escritor italiano chamado Gianni Rodari. Andava pelas prateleiras de uma livraria em Coimbra, à cata de autores e títulos que me despertassem a curiosidade e dei de caras com um título original: Histórias ao telefone (título original: Favole al Telefono). De pé, junto da estante, li um pequeno conto do volume com o nome “O caçador desafortunado”. A história era a de um caçador cuja espingarda se recusava, de certo modo, a funcionar. Melhor: era a história de uma espingarda que, em vez de matar, divertia e, portanto, em vez de fazer vítimas, antes lhes provocava alívio e as fazia rir.

O autor explicava que as histórias tinham sido fabricadas por um caixeiro-viajante (o senhor Bianchi, da cidade de Varese), o qual, em obediência a um pedido da filha, arranjava sempre uma fábula para cada noite. Como estava muitas vezes ausente em viagem, o homem recorria frequentemente ao telefone…

Comprei o livrinho, claro. E, já em casa, deliciei-me com outras pequenas e extraordinárias narrativas: “O palácio de sorvete”; “O passeio de um distraído”; “A casa de estragar”; “A mulherzinha que contava os espirros”; “O país sem ponta”; “O des-país”; “Os homens de manteiga”; “Alice Trambolhona”; “A estrada de chocolate”; “A inventar números”; “Brif, bruf, bruf”; “A compra da cidade de Estocolmo”; “Para tocar no nariz do rei”; “A famosa chuva de Piombolino”; “O carrocel de Cesanatico”; “Na praia de Óstia”; “O rato da banda desenhada”; “História do reino de Comilónia”; “Alice cai ao mar”; “A guerra dos sinos”; “Uma violeta no Pólo Norte”; “O jovem caranguejo”; “Os cabelos do gigante”; “O nariz desertor”; “A estrada para lado nenhum”; “O espantalho”; “A brincar com a bengala”; “Velhos provérbios”; “Apolónia das compotas”; “A velha tia Ada”; “O sol e a nuvem”; “O rei condenado à morte”; “O mágico dos cometas”.

Naturalmente, cada uma destas histórias não tem mais de duas-três páginas. O próprio autor o explica, naquela espécie de introdução em que se fala do senhor Bianchi: tratando-se de narrativas transmitidas “ao telefone”, nunca poderiam ser relatos muito extensos…

Ao longo dos anos seguintes, em muitas ocasiões, dei a conhecer estas histórias aos meus alunos. A minha mulher, que também é professora de Português, fê-lo igualmente. E não me lembro de um só leitor que, no final de cada leitura, não se tenha deixado seduzir pelo modo engraçado e inteligente de contar histórias que caracteriza a literatura de Gianni Rodari.

No livro Histórias ao telefone, que recomendo aos leitores com fome de fantasia, há lugar para o humor e para a diversão – mas também para brilhantes notas poéticas que nos deixam a pensar, comovidos e encantados. Ofereço-vos, já agora, um formoso passo que encontrarão nas páginas 33-34, no final de uma história intitulada “A inventar números”: 

«- Quanto pesa uma lágrima?

- Depende: a lágrima de um menino mimado pesa menos que o vento, a de um menino esfomeado pesa mais que toda a Terra.»
(Histórias ao Telefone, de Gianni Rodari, Lisboa, Editorial Teorema, 1987.)
 
Arco de Baúlhe, 25 de Janeiro de 2013.
Joaquim JOrge Carvalho

sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

Bichos, de Miguel Torga

Leitores ao espelho de si próprios


Miguel Torga é um dos grandes escritores portugueses de sempre. Cultivou vários modos literários – drama, poesia, ensaio, diarística, narrativa.
No território da narrativa, embora também tenha escrito romances, foi talvez no género conto que o seu génio mais se notou. Contos da Montanha, Novos Contos da Montanha e Bichos são volumes que têm encantado sucessivas gerações de leitores e que não cessam de surpreender pela riqueza das histórias narradas (fundadas na experiência pessoal do autor e numa extraordinária imaginação e competência literária) e pelas lições de vida compreendidas em cada conto.
Só aparentemente as histórias se reduzem ao domínio da fábula tradicional. Embora, na maior parte dos casos, encontremos animais como protagonistas, a verdade é que todos os contos estão carregados de uma humanidade próxima e facilmente reconhecível. As emoções de Nero (um cão) ou de Tenório (um galo); as peripécias de um burro ou de um pardal; a teimosia e coragem do corvo Vicente ou o ímpeto inevitável de uma cigarra cantadora – tudo é, afinal, um mundo simbólico que profundamente retrata ou evoca a vida humana, uma sociedade cheia de alegrias e tristezas, sonhos e medos, fúrias e amores.
Acontece-me com Bichos o que me acontece com grandes obras de arte – filmes, pinturas, música, grande arquitetura, literatura: de cada vez que nos encontramos (eu e a obra de arte), dá-se o milagre da novidade. E o milagre, a cada leitura (a cada encontro), renova-se.
Bichos é, de facto, um grande, grande livro da literatura portuguesa!


Arco de Baúlhe, 10 de janeiro de 2013.
Joaquim Jorge Carvalho
[Texto elaborado para a Biblioteca da minha Escola, no âmbito da promoção da leitura.]

sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

Convite simples para ler Poesia



A poesia é feita de corações em forma de linguagem
Ou da luminosa inteligência soando como grito.
Às vezes, é a música dos passos em viagem
Ou o regaço sereno do mar infinito.

O poema és tu, sou eu, a humanidade:
As dores ou os sonhos que há em nós
A palavra certa, a grata verdade
A música dos versos, nossa voz.

O poeta revela-se revelando-nos também -
O poema é o verso e o reverso de si.
Lemos mais do que o poeta, se o lermos bem:
Olha ali a sua vida, olha nós ali.

Arco de Baúlhe, 07 de Dezembro de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[Contributo para a promoção da leitura, feito no âmbito do meu trabalho
na Biblioteca da Escola Básica de Arco de Baúlhe)

sexta-feira, 23 de novembro de 2012

A MONTANHA DA ÁGUA LILÁS, de Pepetela: a história e as lições que uma história oferece



Artur Carlos Maurício Pestana dos Santos, mais conhecido como Pepetela, nasceu no dia 29 de outubro de 1941, em Angola. Em 1960, entrou na Faculdade de Engenharia de Lisboa, mas acabou por optar por Letras e, mais tarde, enveredou por uma carreira política, vindo a ingressar no MPLA – Movimento Popular para a Libertação de Angola, em 1963. Lutou pela independência de Angola e, por esse motivo, foi obrigado a fugir para França e para a Argélia. Após a libertação de Angola, o romancista foi para o seu país, em 1975, sendo então nomeado vice-ninistro da Educação, durante a presidência de Agostinho Neto. Durante o exílio, licenciara-se em Sociologia na Universidade de Argel, tornando-se mais tarde, já em Angola, professor na Faculdade de Arquitetura de Luanda.
Em 1997, Pepetela venceu o Prémio Camões, um dos mais importantes da língua portuguesa. Esta distinção ajuda a consagrálo como um nome muito importante da nossa literatura.
A Montanha da Água Lilás é uma espécie de fábula em que o escritor, para, além de contar uma história divertida, passada na selva, consegue fazer pensar os leitores em assuntos fundamentais da vida em geral (dos animais e – sobretudo – dos humanos).
A comunidade de macacos representa a própria organização das sociedades humanas. Há naquela sociedade da montanha diferentes modos de ser, de agir, de pensar. Há os que mandam e os que obedecem. Há os que gostam de trabalhar e os que são preguiçosos. Há os que são amáveis e generosos, há os que são arrogantes e agressivos. Quando se dá a descoberta de uma riqueza (a água lilás, que tem propriedades maravilhosas), deveríamos esperar, em princípio, uma melhoria significativa da vida da comunidade. Contudo, a novidade acaba por provocar transformações que, pouco tempo depois, significarão uma verdadeira degradação da vida do povo “lupi” e de todos animais em geral.
O livro acaba por ser, pois, uma lição sobre os perigos da ambição desmedida, do egoísmo, da inveja, da arrogância, da intolerância e da vaidade.
Os únicos seres que parecem resistir ao mal são um Pensador e um Poeta. O Pensador representa, claramente, a Filosofia (a capacidade de refletir sobre a vida e sobre o comportamento das sociedades e dos indivíduos). É a voz da Razão: vê, desde logo, o perigo que há em ceder à preguiça, ao egoísmo, à inveja, ao culto do lucro fácil, à arrogância.
Por sua vez, o Poeta (representante da Poesia, da Arte e do Sonho) tem, para além da sua natural inteligência, uma sensibilidade particularmente apurada que lhe permite saber, com antecipação, o que irá acontecer no futuro se os seus semelhantes teimarem em perseguir apenas a riqueza material, sem terem em atenção o bem-estar físico e psicológico dos seus semelhantes.
No fundo, o Pensador e o Poeta são, ali, os últimos resistentes. São, no fundo, os que sobrevivem sem perder o sentido ético (o sentido do Bem, da Verdade e da Justiça) e o sentido da Liberdade (pensar pela própria cabeça, sem medo de castigos e sem medo do esforço que uma vida livre e digna exige).
Não ler este livro é perder uma excelente história. E é também desperdiçar a oportunidade de dialogar com um importante escritor da língua portuguesa.

Arco de Baúlhe, 23 de Novembro de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho

sexta-feira, 2 de novembro de 2012

Esteiros, de Soeiro Pereira Gomes

Soeiro Pereira Gomes nasceu no dia 14 de abril de 1909 e morreu no dia 05 de dezembro de 1949.
Ao longo da sua vida, não chegou a publicar muitos livros, mas nem por isso deixou de ganhar um lugar de grande relevo na literatura portuguesa do século XX.
Pertenceu a uma corrente de escritores neo-realistas, isto é, autores que – numa espécie de regresso ao realismo literário do século XIX –  pretendiam inscrever, na sua arte, marcas da vida real que permitissem aos leitores uma mais imediata e franca identificação com temas, acontecimentos e personagens.
O romance Esteiros conta a história de um rapaz (o “Gaitinhas”), que, apesar de excelente aluno, é obrigado a desistir da escola por ser pobre. O pai é emigrante, no estrangeiro; a mãe é tuberculosa – e Gaitinhas não tem outro remédio senão ir trabalhar.
Apesar das dificuldades económicas e dos múltiplos motivos para a tristeza e até o desespero, o rapaz tem também espaço para se divertir com os amigos, frequentando festas populares, indo ao cinema, tocando alegremente a sua “gaita de beiços”.
Toda a história é uma espécie de grito contra as injustiças de uma sociedade desigual e aviltante, que condenava os pobres a um destino de escravidão e indignidade.
O trabalho infantil e juvenil, hoje felizmente ilegal e de modo geral combatido pelos países desenvolvidos, é um dos temas fundamentais do livro. Não por acaso, o autor dedica a sua obra “A todos os homens que nunca foram meninos”.
Li o romance aí pelos meus doze anos e já o reli muitas vezes.
Recomendo-o agora a todos os meus amigos (alunos e colegas, sobretudo). É que deixar por ler um grande livro é condenarmo-nos à mais triste das ignorâncias - a ignorância voluntária.

Arco de Baúlhe, 26 de outubro de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[Texto expressamente elaborado para a Biblioteca da minha escola, no sentido de contribuir para a divulgação de obras literárias que, no entender dos professores/educadores, vale muito a pena ler.]