A MP e a VL ofereceram-me Uma Morte Acidental (título original: The Casual Vacancy), de J. K. Rowling, Lisboa, Editorial Presença, 2012. Os jornais tinham anunciado a primeira obra “para adultos” desta autora, o que já era motivo razoável de curiosidade; mas a mim interessava-me sobretudo perceber – mais do que isso: confirmar – que o talento de bem engendrar e de bem contar histórias não se esgota num público-alvo específico (etário ou outro). Sim, eu lera alguns livros da saga Harry Potter e encantara-me já com a evidente capacidade de invenção de plots e com a brilhante destreza narrativa de Rowling. Tratava-se agora, segundo anunciavam os jornais, de uma obra de cariz realista, com personagens e contextos da actualidade. Adivinhei que vinha aí coisa válida e, para o Natal, sugeri à MP e à VL este presente.
É um volume com 497 páginas, aviso. Mas desde o primeiro capítulo que a teia mágica da intriga nos agarra. Aprendemos os nomes e os tiques de umas vinte personagens, familiarizamo-nos rapidamente com uns dez (ou mais) cenários de acção, partilhamos ou abominamos algumas idiossincrasias particulares de uma cidadezinha inglesa (que me pareceu, por vezes, uma aldeia de Júlio Dinis) e, enfim, tornamo-nos moderados habitantes de Padford.
À roda da morte súbita de um notável da cidade (odiado & amado por outros notáveis), constrói-se um novelo riquíssimo de histórias - que passam por ridículas ambições políticas (à Eça), pela fome de brilho mundano (à Garrett), por certa degradação neo-realista da sociedade moderna (à Soeiro Pereira Gomes), pela violência doméstica (à Lídia Jorge), pelo mistério de laços familiares (à Camilo), pelo amor (à Yourcenar) e pela tocante fragilidade de que somos todos feitos (à Vergílio Ferreira).
O estilo de Rowling é simples e competente (à Júlio Dinis, à David Lodge), preterindo eventuais grandes arroubos de linguagem em favor da clareza da história, das histórias.
Para mim, que ando à procura de escrever o (meu) romance sonhado, a obra de Rowling recordou-me algumas noções fundamentais sobre este território genológico – nomeadamente, a importância de tornar familiares os espaços literários da intriga (“familiares” não significa conhecidos, note-se; significa “reconhecíveis” no universo da obra), a importância de distribuir generosamente a atenção do narrador por várias personagens, complexificando-as (de modo a aproximar cada ser ficcional da condição complexa e rica de seres humanos), a importância do saudável convívio e concomitância entre acção principal e acção secundária (ou “acção” e “intriga”, como diria Carlos Reis; ou “intriga nuclear” e “intriga periférica”, como escrevi eu próprio, na minha tese sobre Júlio Dinis).
De menos positivo, para além da obediência ao novo acordo ortográfico, talvez o facto de a narração compreender demasiados casos dramáticos (e até trágicos), o que – num contexto geral representativo de certa rotina existencial – é susceptível de banalizar (e, ergo, de comprometer, desvalorizando) o acontecimento extraordinário.
Li Uma Morte Súbita entre as duas horas do dia 25 e as sete horas de hoje, dia 29. Quando acabei a leitura, já a luz decembrina da minha rua iluminava o quarto. E a própria luz romanesca era, como agora percebo, tão fresca como aquela manhã.
PS: A tradução desta obra foi certamente difícil. Gostei do modo como se representou-enunciou, em Português, a variedade de registos linguísticos, os regionalismos e o calão. Também a escolha de Uma Morte Súbita para título é um verdadeiro achado. Contudo, talvez pressionada por alguma urgência editorial, a equipa de tradutores (Alberto Gomes, Manuel Alberto Vieira, Marta Fernandes e Helena Sobral) fez, aqui e ali, várias opções manifestamente desaconselháveis (sublinhei cerca de quinze casos de tradução menos feliz). Mas são, repito, 497 páginas – e nisto de avaliação de traduções é tudo tão subjectivo…
Coimbra, 29 de Dezembro de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho