Os pássaros regressam aos ninhos porque a noite afugenta a tarde. Por isso as telhas e as árvores são casas de fados. No asfalto, os sapatos da menina Alzira, que passam muitas noites ao relento, varrem as folhas amarelas e os ramos apodrecidos. O objectivo não é limpar a rua que é quase uma travessa. O objectivo é pedir ao tempo que marque, no relógio, a hora de abrir “O teu cabelo está em boas mãos”. O cabeleireiro da dona Maria, inaugurado com champanhe francês e camarão grelhado, fora o ponto de encontro das coquetes, na época em que o dinheiro empanturrara carteiras inertes. Mais tarde, quando a crise chacinava o despesismo, tudo mudou. Até o sorriso da dona Maria. Mas o Zé da Tina, habituado às coisas difíceis, descobriu a forma de a esposa voltar a ter a Primavera no rosto.
Por fim, o sino da igreja toca. Toca para logo ficar calado. Ao fundo da rua, a dona Maria faz crescer as sombras que saltam das casas. Nas fachadas, o silêncio, a viver por detrás das janelas, observa o cabelo a saltitar. Quando a menina Alzira a encontra, dá um suspiro. Um suspiro grosso, quase violento. É um gesto estranho, que roça no exagero ao de leve, mas a ânsia de afogar as brancas na cor do chocolate explica-o por completo. A dona Maria apercebe-se disso, mas faz de conta que não o viu.
O cabeleireiro é um quadrado. Um quadrado com duas portas na parede dos fundos. A decoração é simples, talvez em demasia, mas o bar tem pormenores geniais. O estabelecimento tem então duas margens, e está, como tal, a léguas dos outros tempos. No centro está a máquina que dá banho ao cabelo. A menina Alzira senta-se nela, usando gestos apressados. E a dona Maria, conhecedora dos hábitos da cliente, dá um sorriso. Um sorriso lento, calmo, enquanto faz o que tem a fazer. Depois, com a toalha na mão, pede-lhe para sentar o corpo na cadeira de couro, onde o vidro mostra os efeitos do trabalho. Ela faz-lhe a vontade.
Assim que a cor do chocolate sai do pincel e se mistura com a água, a água que baloiça dentro do copo, aparecem as primeiras palavras. A dona Maria foi quem as lançou, demonstrando que o negócio, para ter êxito, precisa de diálogo. Ao princípio, a menina Alzira usa frases curtas. Tão curtas, que os ouvidos ficam vazios quando recolhem as palavras do ar. Depois, o tiroteio não descreve, nem um pouco, as frases que lhe saem dos lábios. Mas, aos poucos, a voz acalma-se, perde fulgor. Isso permite-lhe contar, em pormenor, como foi assinar, na semana passada, o contrato de trabalho com a empresa dos Barrigas ao Sol. A novidade fabrica-lhe lágrimas na berma dos olhos. E produz júbilos grandes na dona Maria.
Quando o secador fica calmo, as línguas ficam mudas porque a dona Maria produz veneno nos olhos. É um veneno que mostra desagrado. E o motivo está nos gestos que a cabeça da menina Alzira andou a fazer. Ela fica envergonhada, as bochechas assim o indicam, e olha para o cabelo que parece uma folha velha a cair sobre os ombros. Torce o nariz, como quem dobra papel, e pede-lhe, com timidez, para recomeçar o trabalho. A dona Maria, magoada com o passado, pega nas ferramentas sem lhe dar uma palavra. Entretanto, a menina Alzira, para dar outro destino ao silêncio dela, pergunta-lhe se a acha obesa. Ela diz-lhe que não, que pelo contrário. E acrescenta, sem migalhas azedas a sair do olhar, que poucas, com a idade dela, podem gabar-se do mesmo. A menina Alzira desconfia da frase – acha que há algum exagero dentro dela. Mas a dona Maria, habituada a interpretar olhares, diz-lhe que da boca dela só sai o que o coração lhe envia. Nada mais. A menina Alzira fica então acabrunhada, e vira-se. Depois, quase em surdina, pede-lhe desculpa. Ela aceita. Por isso a menina Alzira sacode os nervos do rosto. E aproveita o silêncio do secador para afirmar que, para a semana, vai para o ginásio. Comer muito e mal está a estragar-lhe as ancas.
Por fim, o cabelo é uma camisa passada a ferro, uma estrada com alcatrão. E as brancas são uma página do passado. Uma memória com barbas grandes. Isso dá flores à menina Alzira, que tira da carteira uma nota de vinte. A dona Maria mete-a na registadora, e acompanha a cliente até à rua. Dizem coisas vulgares e coscuvilham a vida dos outros. Falam ainda do governo e criticam os impostos. Depois dizem adeus com os braços, como se fossem árvores empurradas pelo vento.
Na rua, os candeeiros iluminam os passeios e pedem aos pássaros para silenciar as músicas. Não é por acaso que, em pouco tempo, lá em cima, o silêncio ganha corpo. Cá em baixo, a Alzira tem borrachas nos sapatos porque os passos são pequenas gotas a embater na calçada. Como tal, afirmar que o silêncio é imaculado, é ser falso. Dizer que ele não existe, é falsear o momento. Escrever que ele é magro, é ouvir a verdade.
No fim da rua há uma praça. Uma praça com uma estátua no meio. É uma homenagem pobre a um homem grande, que no século passado descobriu muitas coisas. Depois há uma rua, que é uma linha estreita e escura. Por fim há uma porta, uma porta como todas as outras.
A Alzira sobe os degraus. A madeira range e as sombras dão passos. No topo, a sala convida-a a pousar o cansaço no sofá, a desfazer-se do peso que traz no ombro. Ela rejeita o convite, e vai para o quarto. O conforto da cama dá outro mimo ao peso que tem nas pálpebras.
Em cima do cobertor, com as pernas e os braços encolhidos, diz adeus à noite que a espreita da janela. Os sonhos acotovelam-se logo dentro dela, fazem guerras duras para saber quem a comanda. A viagem à América Latina faz fintas aos adversários, dá saltos estupendos. Isso abre brechas nos braços dos outros. Depois corre, corre como se fosse vento, e aproveita um lugar baldio para fugir à concorrência. Mais tarde, quando os obstáculos ficam para trás, a porta do pensamento abre-se ao vencedor e o sonho entra. Entra devagar. O corpo dela ganha então asas, asas fortes e longas que o levam para o Brasil. Depois para o México, para a Argentina, para a Colômbia, para a Venezuela, para a Bolívia, para o Chile, para o Peru. Depois há uma pausa. Uma pausa pequena para contemplar o Pacífico. E depois há a continuidade da viagem. Mas, ao contrário do início, o percurso apanha vento que é uma floresta densa, uma mão que abana o braço da montanha. As asas sentem os beijos do medo, os toques do receio. Sentem o grito do retorno. O corpo sente o mesmo quando o vento alarga os ombros, engrossa os músculos. Por isso ela acorda. Acorda como quem se liberta da forca.
O olhar dela vê a noite a deambular pelo quarto, a cumprimentar o silêncio como se fossem íntimos. Para dar luz à memória que paira perto dele, acende o candeeiro. Depois analisa todos os pedacinhos da viagem, todas as palavras trocadas com desconhecidos amáveis, com crianças felizes. Os lábios dela ganham então sorrisos perfumados e as bochechas imitam os cumes das montanhas. De repente, do outro lado da cama, há um movimento. Um movimento sussurrado, quase tímido. Ela vira logo o olhar para o mistério e, com perspicácia, fotografa o corpo de um homem, que tem os joelhos colados ao peito e as mãos sob a nuca. Encarquilha o rosto, alarga os olhos e recebe ideias no pensamento. Mas não há uma que a esclareça.
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ResponderEliminarO conto " HÁ UM ESTRANHO NA CAMA" de Sílvio Silva é fabuloso. A linguagem utilizada e a fluidez do discurso deixam-nos presos à narrativa. Para além disso, as personagens retratam o quotidiano de muitos lugares. É um conto que eu gostaria de ver publicado. Parabéns ao Sílvio Silva pelo conto maravilhoso que nos proporcionou
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