quarta-feira, agosto 13, 2014

Cap. III - Sentado, de novo.



Estava sentado, de novo.
A neblina voltara a cobrir tudo com o seu hálito insípido. Mas tinha quase a certeza de que tinha descortinado um breve fulgor singularíssimo. Como se fosse uma alma. Teria de estar atento. Não iria perder a oportunidade.
Lentamente, caminhou até à entrada da gruta. Pela enésima vez, inspecionou os milhares de pequenos retângulos, perfilados como guerreiros de terracota. Tivera sorte em ter encontrado uma gruta em cujo interior cresciam árvore de ramos finos e sem folhas. Os galhos eram agora o seu retábulo, com os retângulos de papel em vez de folhas, com se fossem vidas suspensas numa árvore genealógica. Parecera-lhe bem, mas, enfim, a qualquer momento, poderia alterar tudo isso. Neste momento, pareciam em sintonia cósmica. Eram a sua única ligação à outra existência. Melhor dizendo, talvez fossem a única ligação que a atual existência permitira à anterior. Naquela em que se chamava Heitor. Aquele que guarda, que retém, que possui.
Agora, nada guardava, nada retinha, nada possuía. Na verdade, tudo se tinha alterado ou invertido. Era agora ele quem era guardado. Talvez sempre assim tivesse sido, ele é que nunca tinha percebido. Como é difícil ver alguma coisa de olhos abertos!
Durante muito tempo, não entendia por que o fazia. Tivera mesmo momentos em que duvidara da sua sanidade mental. Não sabia ainda que o mais verdadeiro é o que não tem explicação.


Por vezes, lembrava-se de Modesto, o Peixe. Modesto! Que nome tão apropriado! Sorria, infantil, pensando nas duas irmãs sempre de mão dada: Modéstia e Sageza. Duas manas bem matreiras. Fosse como fosse, era a única pessoa que não o julgava louco ou tarado. Que ignorância o dominara ao pensar que era Modesto quem estava fechado num aquário. O seu olhar zombeteiro, o ondular das barbatanas bem o tentaram avisar. Como tinha sido estulto em julgar que quando abria e fechava a boca não estava realmente a desafiar. Quantas línguas fala uma pessoa e quantas pode aprender? Na altura, não adivinhava que basta uma.

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