Cap. III - Sentado, de novo.
Estava sentado, de novo.
A neblina voltara a cobrir tudo
com o seu hálito insípido. Mas tinha quase a certeza de que tinha descortinado
um breve fulgor singularíssimo. Como se fosse uma alma. Teria de estar atento. Não
iria perder a oportunidade.
Lentamente, caminhou até à
entrada da gruta. Pela enésima vez, inspecionou os milhares de pequenos
retângulos, perfilados como guerreiros de terracota. Tivera sorte em ter
encontrado uma gruta em cujo interior cresciam árvore de ramos finos e sem
folhas. Os galhos eram agora o seu retábulo, com os retângulos de papel em vez
de folhas, com se fossem vidas suspensas numa árvore genealógica. Parecera-lhe
bem, mas, enfim, a qualquer momento, poderia alterar tudo isso. Neste momento, pareciam
em sintonia cósmica. Eram a sua única ligação à outra existência. Melhor dizendo,
talvez fossem a única ligação que a atual existência permitira à anterior. Naquela
em que se chamava Heitor. Aquele que guarda, que retém, que possui.
Agora, nada guardava, nada
retinha, nada possuía. Na verdade, tudo se tinha alterado ou invertido. Era agora
ele quem era guardado. Talvez sempre assim tivesse sido, ele é que nunca tinha
percebido. Como é difícil ver alguma coisa de olhos abertos!
Durante muito tempo, não entendia
por que o fazia. Tivera mesmo momentos em que duvidara da sua sanidade mental. Não
sabia ainda que o mais verdadeiro é o que não tem explicação.
Por vezes, lembrava-se de
Modesto, o Peixe. Modesto! Que nome tão apropriado! Sorria, infantil, pensando
nas duas irmãs sempre de mão dada: Modéstia e Sageza. Duas manas bem matreiras.
Fosse como fosse, era a única pessoa que não o julgava louco ou tarado. Que ignorância
o dominara ao pensar que era Modesto quem estava fechado num aquário. O seu
olhar zombeteiro, o ondular das barbatanas bem o tentaram avisar. Como tinha sido
estulto em julgar que quando abria e fechava a boca não estava realmente a desafiar. Quantas línguas fala uma pessoa e quantas pode aprender? Na altura, não
adivinhava que basta uma.
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