31 dezembro, 2006
Bom Ano!
Pensando em família, amigos, leitores e toda a gente deste mundo, esta noite vou invocar Janus e fazer-lhe uma oferenda num templo imaginário, para que ele esqueça o ano cinzento de 2006 e tente ver se nos traz um 2007 mais colorido.
P. S. - E não se esqueçam de que amanhã não é só o primeiro dia de 2007, é também o dia mundial da Paz.
30 dezembro, 2006
De século em século
Em 1907:
- Manifestações na Rússia que tornaram famosa Alexandra Kollontai.
- O Tillman Act proíbe as contribuições financeiras de bancos e empresas para as campanhas políticas americanas.
- Churchill propõe a abolição da câmara dos lordes (até hoje...).
- Pela primeira vez, há sufrágio universal no Império Austro-húngaro.
- A eleição da primeira deputada finlandesa.
- 43000 automóveis fabricados nos EUA.
- Invenção do taxímetro e seu uso em Nova Iorque.
- Abertura da primeira escola de Maria Montessori.
- Minkowski propõe que as ideias de Einstein e Lorenz são melhor compreendidas num espaço não euclidiano, coisa que nunca ainda tinha ocorrido ao próprio Einstein e que abre o caminho à relatividade generalizada.
- O início do trabalho de Morgan sobre os cromossomas e as mutações.
- Primeiro laboratório de doenças tropicais, no Institut Pasteur.
- Primeira descrição da doença de Alzheimer.
- Edouard Belin inventa o precursor do fax.
- A UPS introduz o conceito do correio urgente.
- Alguns livros: "The Secret Agent", Joseph Conrad; "A Mãe", Maxim Gorky; "The Iron Heel", Jack London.
- A primeira exposição dos cubistas.
- A primeira loja Alfred Dunhill, Ltd., em Londres.
- Inauguração do New York's Plaza Hotel.
- O fabrico da primeira lata de conserva de atum.
PS - Pergunta parva, esta última. Herdeiro de um blogue, o que é isto, a essa distância? O meu tetraneto não saberá escrever, estará sentado diante de qualquer coisa que lhe capta o pensamento e regista, em qualquer processo baseado na física quântica. A seguir, ele pensa em destinatários do seu pensamento e mentalmente, sem dedos nem teclas, manda a máquina enviar o "texto" para "publicação". Do outro lado, ninguém lerá, já nem se saberá o que isto é. O receptor receberá um holograma (claro que muito mais aperfeiçoado) com o meu tetraneto a dizer "apanha" e mandará apenas à máquina que lhe transmita a mensagem em ondas de energia mental, coisa que eles vão descobrir.
Huxley, Orwell? Talvez, mas porque não? E eu sou tão ingénuo que até acho que nada disto me mete medo. Big brother? Alguém já conseguiu sê-lo? A grande constante do homem foi sempre a de saber controlar os custos-benefícios do progresso. Um dos meus livrinhos de cabeceira é a "Filosofia espontânea dos cientistas", de Althusser. Creio que uma característica essencial é o optimismo histórico.
E quem me dera estar a "escrever" isto em 2107!
29 dezembro, 2006
A execução de Saddam Hussein
Parece estar iminente. Indiscutivelmente, foi um grande criminoso, mas isto não justifica que seja vítima de um crime em vingança. Talião está morto e enterrado. Para mim, qualquer execução é um crime.
Mais, como dizia Talleyrand, em política pior ainda do que um crime é um erro.
Mais, como dizia Talleyrand, em política pior ainda do que um crime é um erro.
27 dezembro, 2006
O Velho do Natal
Vamos qu'é d'obrigação, cantam os foliões de Espírito Santo da minha terra. Vamos lá então retomar a escrita, mas, ainda com a ressaca de preguiça festiva, vou fazer como uma "ilustre" escritora que se autoplagia (não digo quem, não sou parvo, não gosto de tribunais).
Quando é que acaba a infância? Podemos desenvolvermo-nos em homens-meninos, coisa muito diferente de continuarmos meninos-homens? Assunto complicado, que tem a ver com o perecimento do adquirido. Diz-se que ninguém se esquece de nadar, patinar ou andar de bicicleta, depois de aprendido em miúdo. Isto é prosaico. Há outras coisas muito mais importantes que a vida oblitera, como saber voar para a Terra do Nunca, namorar aos cinco anos de forma tão diferente, sempre com a pergunta inquieta de como é o pipi das meninas, saber apreciar como néctar o dedo final da cerveja do pai nas festas do Senhor Santo Cristo.
Acima de tudo, a roturante morte da infância que é dizerem-nos que o Pai Natal não existe. Na minha terra, era o Velho do Natal. Não existe? Essa agora, quantas vezes eu o vi!
Noite de espera terrível, a de Natal, horas e horas até à missa do galo, o cheiro de incenso da matriz a abrir o apetite, depois ainda a lenta chegada dos convidados, para ceia interminável. Os meus pais condescendiam que estávamos primeiro, irmãos e primalhada, que os seus acepipes podiam esperar. Para nós, era prendas e cama.
Coisa curiosa era que o Velho do Natal sabia exactamente a hora a que os meus pais davam toque para a cerimónia. Toque que tardava, até se assegurarem que estávamos todos bem arrebanhados e que não havia malandreco à espreita. No entanto, eu esgueiro, acotovelando os outros para chegar primeiro, conseguia sempre vislumbrar o velho, escapando-se rapidamente da despensa onde tinha deixado as prendas.
Confesso, no entanto, que sempre me ficou a atormentar que o meu Velho do Natal não fosse a rotunda personagem a quem eu escrevia as cartas dos desejos. Coitado, o meu tio Carlos não podia fazer melhor, era magro que nem um espeto.
Quando é que acaba a infância? Podemos desenvolvermo-nos em homens-meninos, coisa muito diferente de continuarmos meninos-homens? Assunto complicado, que tem a ver com o perecimento do adquirido. Diz-se que ninguém se esquece de nadar, patinar ou andar de bicicleta, depois de aprendido em miúdo. Isto é prosaico. Há outras coisas muito mais importantes que a vida oblitera, como saber voar para a Terra do Nunca, namorar aos cinco anos de forma tão diferente, sempre com a pergunta inquieta de como é o pipi das meninas, saber apreciar como néctar o dedo final da cerveja do pai nas festas do Senhor Santo Cristo.
Acima de tudo, a roturante morte da infância que é dizerem-nos que o Pai Natal não existe. Na minha terra, era o Velho do Natal. Não existe? Essa agora, quantas vezes eu o vi!
Noite de espera terrível, a de Natal, horas e horas até à missa do galo, o cheiro de incenso da matriz a abrir o apetite, depois ainda a lenta chegada dos convidados, para ceia interminável. Os meus pais condescendiam que estávamos primeiro, irmãos e primalhada, que os seus acepipes podiam esperar. Para nós, era prendas e cama.
Coisa curiosa era que o Velho do Natal sabia exactamente a hora a que os meus pais davam toque para a cerimónia. Toque que tardava, até se assegurarem que estávamos todos bem arrebanhados e que não havia malandreco à espreita. No entanto, eu esgueiro, acotovelando os outros para chegar primeiro, conseguia sempre vislumbrar o velho, escapando-se rapidamente da despensa onde tinha deixado as prendas.
Confesso, no entanto, que sempre me ficou a atormentar que o meu Velho do Natal não fosse a rotunda personagem a quem eu escrevia as cartas dos desejos. Coitado, o meu tio Carlos não podia fazer melhor, era magro que nem um espeto.
21 dezembro, 2006
17 dezembro, 2006
Viram o Zelig?
Não gosto nada da ideia de "inimigos de estimação", mas admito que me dá muito gozo ter uma bela lista de "bobos de estimação". Na sua qualidade comum de parvoíce, tendo a classificá-los por ordem de pomposidade, de notoriedade, de "parece que há um rapaz, o Pacheco..." (atenção, estou a falar do meu conterrâneo Fradique, não de Pacheco Pereira). Quem será o meu número 1? Cada vez tendo mais a dar ao prémio a João Carlos Espada.
O homem, semanalmente, faz-me o pior que se pode fazer a um português, lembrar que a palavra "inveja" é a última dos Lusíadas. Ele são as brilhantes ideias, a originalidade decerto apreciada em todas as conversas de barbearia por este país fora, essa coisa obviamente compreensível de tanto se ser conselheiro de Soares como de Cavaco. Mas há muito melhor, aquilo que verdadeiramente invejo, o cosmopolitismo, essa capacidade única de aspirar os aromas de tudo o que há de mais intelectual em Inglaterra, por onde ele passou.
Quando lhe deu o tema de tese, Ralf Dahrendorf falou-lhe criticamente de Charles Murray. O nosso espadique foi ler, aplicadinho, e, ao longo dos tempos, alguma coisa germinou. Sei agora, segundo a sua última crónica no Expresso, que, doze anos, mais tarde, em 2002, jantaram os três e conversaram amenamente sobre esse episódio. Imagino como os dois seniores, babados, se diziam mutuamente em silêncio, "que génio, este rapaz! Com ele, ainda vamos ver um imenso Portugal!". Tudo isto me lembra o Zelig, de Woody Allen. Viram?
Oxalá que não dê a JCE para falar sobre a monarquia inglesa. Se sim, a rainha que se cuide, porque o Expresso há-de falar sobre muitos almoços com a rainha.
O homem, semanalmente, faz-me o pior que se pode fazer a um português, lembrar que a palavra "inveja" é a última dos Lusíadas. Ele são as brilhantes ideias, a originalidade decerto apreciada em todas as conversas de barbearia por este país fora, essa coisa obviamente compreensível de tanto se ser conselheiro de Soares como de Cavaco. Mas há muito melhor, aquilo que verdadeiramente invejo, o cosmopolitismo, essa capacidade única de aspirar os aromas de tudo o que há de mais intelectual em Inglaterra, por onde ele passou.
Quando lhe deu o tema de tese, Ralf Dahrendorf falou-lhe criticamente de Charles Murray. O nosso espadique foi ler, aplicadinho, e, ao longo dos tempos, alguma coisa germinou. Sei agora, segundo a sua última crónica no Expresso, que, doze anos, mais tarde, em 2002, jantaram os três e conversaram amenamente sobre esse episódio. Imagino como os dois seniores, babados, se diziam mutuamente em silêncio, "que génio, este rapaz! Com ele, ainda vamos ver um imenso Portugal!". Tudo isto me lembra o Zelig, de Woody Allen. Viram?
Oxalá que não dê a JCE para falar sobre a monarquia inglesa. Se sim, a rainha que se cuide, porque o Expresso há-de falar sobre muitos almoços com a rainha.
16 dezembro, 2006
Litvinenko, uma história mal contada
O caso Litvinenko é história muito mal contada. Não me vou embrenhar em intrigas à James Bond. Dele só retenho a recomendação "stirred, not shaken". Parece não haver dúvidas de que Litvinenko morreu de uma dose letal de radiação emitida pelo isótopo 210 do polónio, introduzido no seu organismo por forma aparentemente desconhecida. Não pode ter sido só por contacto cutâneo, não causaria efeitos tão dramáticos. Comecemos por lembrar o que é isto de radiações e de isótopos.
A radiações estamos todos sujeitos, num largo espectro de energias/frequências. Se não estivéssemos sujeitos à radiação luminosa, éramos cegos. De outras, como as microondas, ainda não conhecemos possíveis riscos. Outras não, toda a gente sabe que se deve proteger na praia dos ultravioletas, e que os raios X e gama são cancerígenos, causaram mais mortos de Hiroshima dos que morreram imediatamente pelo efeito térmico da bomba. Mas as radiações não aparecem espontaneamente no universo, têm sempre uma fonte. Nos casos mais correntes, são o nosso pai Sol.
Também as temos em casa, na Terra, os isótopos radioactivos. Todos os átomos se definem por um certo número de protões no núcleo, de carga positiva, igual à dos electrões negativos que orbitam ao redor. A diferença está no número de outras partículas, os neutrões, sem carga eléctrica. Átomos com o mesmo número de protões e electrões, que definem as suas características, mas com mais um ou mais neutrões, chamam-se isótopos. Muito frequentemente, manifestam-se como coisas irrequietas, emitindo radiações. Por exemplo, o vulgar carbono tem número atómico 12, mas já toda a gente ouviu falar no seu isótopo 14, o radioactivo, que permite a datação dos fósseis. É o mesmo átomo, mas com dois neutrões a mais, que o "perturbam". Fica com energia a mais e "vomita-a", como radiação.
O que temos lido é que se está a encontrar radiação de polónio-210 por toda a parte, hotéis, restaurantes, aviões, Londres, Moscovo, Hamburgo. Não se percebe, porque não há coisa nenhuma que se chame radiação de polónio-210 que fique a pairar na ausência do próprio polónio-210. Se Litvinenko foi fortemente contaminado, aceito que também fiquem contaminados – com a substância radioactiva, não com a radiação! – sítios por onde passou, as sanitas em que urinou, superfícies para que espirrou. Mas não urinou radiação, urinou foi a fonte da radiação.
Mas não, há radiação por toda a parte. Impossível. Se há radiação por toda a parte, há polónio-210 por toda a parte, a emiti-la. Isto é que já não me cabe na cabeça. Posso admitir um descuido, uma ou outra contaminação acidental. Agora profissionais da morte que andam com as mãos sujas de polónio-210 a espalhá-lo por toda a parte, aviões, hotéis, restaurantes, isto é que não. Há uma coisa clássica nestas histórias, o baralhar pistas.
Desculpem o pretensiosismo da lição de física, mas creio que é dever de cada um contribuir com alguma base técnica para o raciocínio dos leigos.
Registe-se ainda uma nota importante. Polónio-210 não se vende na drogaria. Não sei quem o pode adquirir, se a corte de Putin, se o ex-KGB (parece que é a mesma coisa), se a máfia russa. Uma coisa sei, sinto-me pouco seguro. No entanto, continuo a não trocar a liberdade pela segurança. Não será esta a grande questão dos nossos tempos de hoje?
A radiações estamos todos sujeitos, num largo espectro de energias/frequências. Se não estivéssemos sujeitos à radiação luminosa, éramos cegos. De outras, como as microondas, ainda não conhecemos possíveis riscos. Outras não, toda a gente sabe que se deve proteger na praia dos ultravioletas, e que os raios X e gama são cancerígenos, causaram mais mortos de Hiroshima dos que morreram imediatamente pelo efeito térmico da bomba. Mas as radiações não aparecem espontaneamente no universo, têm sempre uma fonte. Nos casos mais correntes, são o nosso pai Sol.
Também as temos em casa, na Terra, os isótopos radioactivos. Todos os átomos se definem por um certo número de protões no núcleo, de carga positiva, igual à dos electrões negativos que orbitam ao redor. A diferença está no número de outras partículas, os neutrões, sem carga eléctrica. Átomos com o mesmo número de protões e electrões, que definem as suas características, mas com mais um ou mais neutrões, chamam-se isótopos. Muito frequentemente, manifestam-se como coisas irrequietas, emitindo radiações. Por exemplo, o vulgar carbono tem número atómico 12, mas já toda a gente ouviu falar no seu isótopo 14, o radioactivo, que permite a datação dos fósseis. É o mesmo átomo, mas com dois neutrões a mais, que o "perturbam". Fica com energia a mais e "vomita-a", como radiação.
O que temos lido é que se está a encontrar radiação de polónio-210 por toda a parte, hotéis, restaurantes, aviões, Londres, Moscovo, Hamburgo. Não se percebe, porque não há coisa nenhuma que se chame radiação de polónio-210 que fique a pairar na ausência do próprio polónio-210. Se Litvinenko foi fortemente contaminado, aceito que também fiquem contaminados – com a substância radioactiva, não com a radiação! – sítios por onde passou, as sanitas em que urinou, superfícies para que espirrou. Mas não urinou radiação, urinou foi a fonte da radiação.
Mas não, há radiação por toda a parte. Impossível. Se há radiação por toda a parte, há polónio-210 por toda a parte, a emiti-la. Isto é que já não me cabe na cabeça. Posso admitir um descuido, uma ou outra contaminação acidental. Agora profissionais da morte que andam com as mãos sujas de polónio-210 a espalhá-lo por toda a parte, aviões, hotéis, restaurantes, isto é que não. Há uma coisa clássica nestas histórias, o baralhar pistas.
Desculpem o pretensiosismo da lição de física, mas creio que é dever de cada um contribuir com alguma base técnica para o raciocínio dos leigos.
Registe-se ainda uma nota importante. Polónio-210 não se vende na drogaria. Não sei quem o pode adquirir, se a corte de Putin, se o ex-KGB (parece que é a mesma coisa), se a máfia russa. Uma coisa sei, sinto-me pouco seguro. No entanto, continuo a não trocar a liberdade pela segurança. Não será esta a grande questão dos nossos tempos de hoje?
13 dezembro, 2006
Gente típica (VI)
Pessoas que eu gostava que fossem típicas
Este texto não se encaixa bem nesta série de personagens típicas, mas porque não? São os protagonistas de uma ocasião muito triste, o funeral da minha mãe, pessoas a quem devo gratidão até ao suspiro final. E tenho optimismo em que também são personagens típicas, no melhor sentido.
Já não sei porquê, a missa ficou a cargo do Pe. João, italiano já muito aportuguesado. Como capelão do Hospital de S. Maria, lembrava-se muito bem da "minha velhota", ocasionalmente lá internada, profundamente religiosa, mas progressista, aos 89, toda ela participante em movimentos de modernização religiosa e de acção social. Antes da missa, lembrei-me do prazer dos meus pais, na missa das suas bodas de ouro, ao ouvirem a epístola lida por este seu filho mais velho, mesmo que não crente. Perguntei ao Pe João se podia fazer a leitura, dizendo-lhe honestamente que não era católico. Nenhuma objecção e até me deu a escolha do texto. Como não podia deixar de ser, escolhi um trecho do Livro da Sabedoria (não estranhem a escolha fácil, conheço bem a Bíblia, como um dos enormes monumentos da cultura humana. Homo sum!).
Nos funerais, é vulgar um elogio. Lembrei-me da Irmã Amparo, muito amiga da minha mãe, uma freira directora do centro social em que tão boas tardes de cavaqueira tinha tido a minha mãe com as suas amigas. À margem da liturgia da missa, o Pe. João concordou sem rebuço. Mais bonito foi o que se passou quando o padre se preparava para retomar a missa e foi interrompido. Primeiro uma amiga anónima a avançar e a dar um testemunho sentido, entre lágrimas (e eu também entre lágrimas, como ainda agora), depois outra e outra, julguei que nunca mais acabava a missa. Como último dessa série de testemunhos epontâneos, entre alguma vergonha e uma grande impulsão, não posso esquecer o da D. Teresa, apoio infatigável da minha mãe nos seus tempos finais de diminuída física, felizmente que nunca intelectualmente.
Na altura, por respeito para com os hábitos das igrejas, não fiz o que me apetecia, bater palmas, a todos, Pe. João, Irmã Amparo, amigas que eu não conhecia, D. Teresa, e, obviamente, à minha mãe, afinal a grande responsável por cena tão bonita em ocasião triste. Ficarei para sempre com pena de não ter tido esse atrevimento. Creio que as palmas se teriam ouvido por toda Algés e alguém teria acompanhado com foguetes, os foguetes das festas do Espírito Santo, foguetes com que a minha mãe gostaria de se ter ido, em festa, como sempre foi festa toda a sua vida.
E, se ela conhecesse o Chico, ao chegar sei lá onde, sorrir-me-ia e diria "a festa foi bonita, pá!"
Este texto não se encaixa bem nesta série de personagens típicas, mas porque não? São os protagonistas de uma ocasião muito triste, o funeral da minha mãe, pessoas a quem devo gratidão até ao suspiro final. E tenho optimismo em que também são personagens típicas, no melhor sentido.
Já não sei porquê, a missa ficou a cargo do Pe. João, italiano já muito aportuguesado. Como capelão do Hospital de S. Maria, lembrava-se muito bem da "minha velhota", ocasionalmente lá internada, profundamente religiosa, mas progressista, aos 89, toda ela participante em movimentos de modernização religiosa e de acção social. Antes da missa, lembrei-me do prazer dos meus pais, na missa das suas bodas de ouro, ao ouvirem a epístola lida por este seu filho mais velho, mesmo que não crente. Perguntei ao Pe João se podia fazer a leitura, dizendo-lhe honestamente que não era católico. Nenhuma objecção e até me deu a escolha do texto. Como não podia deixar de ser, escolhi um trecho do Livro da Sabedoria (não estranhem a escolha fácil, conheço bem a Bíblia, como um dos enormes monumentos da cultura humana. Homo sum!).
Nos funerais, é vulgar um elogio. Lembrei-me da Irmã Amparo, muito amiga da minha mãe, uma freira directora do centro social em que tão boas tardes de cavaqueira tinha tido a minha mãe com as suas amigas. À margem da liturgia da missa, o Pe. João concordou sem rebuço. Mais bonito foi o que se passou quando o padre se preparava para retomar a missa e foi interrompido. Primeiro uma amiga anónima a avançar e a dar um testemunho sentido, entre lágrimas (e eu também entre lágrimas, como ainda agora), depois outra e outra, julguei que nunca mais acabava a missa. Como último dessa série de testemunhos epontâneos, entre alguma vergonha e uma grande impulsão, não posso esquecer o da D. Teresa, apoio infatigável da minha mãe nos seus tempos finais de diminuída física, felizmente que nunca intelectualmente.
Na altura, por respeito para com os hábitos das igrejas, não fiz o que me apetecia, bater palmas, a todos, Pe. João, Irmã Amparo, amigas que eu não conhecia, D. Teresa, e, obviamente, à minha mãe, afinal a grande responsável por cena tão bonita em ocasião triste. Ficarei para sempre com pena de não ter tido esse atrevimento. Creio que as palmas se teriam ouvido por toda Algés e alguém teria acompanhado com foguetes, os foguetes das festas do Espírito Santo, foguetes com que a minha mãe gostaria de se ter ido, em festa, como sempre foi festa toda a sua vida.
E, se ela conhecesse o Chico, ao chegar sei lá onde, sorrir-me-ia e diria "a festa foi bonita, pá!"
12 dezembro, 2006
Despedida em beleza
Kofi Annan, a despedir-se de secretário geral da ONU, publica hoje um artigo, certamente que em muitos jornais, também no Público. Não é meu princípio violar os direitos das publicações, mas há casos que se justificam.
Cinco liçõesRepito o que escrevi algures. Nas últimas décadas, África deu ao mundo dois grandes SENHORES, Nelson Mandela e Kofi Annan. Não vejo, ao mesmo tempo, muitos europeus ou americanos que se lhes possam comparar.
Há quase 50 anos, quando cheguei ao Minnesotta, como um estudante recém-desembarcado de África, tinha muito que aprender, a começar pelo facto de não haver nada de esquisito em usar protectores de orelhas, quando a temperatura descia para 15 graus negativos. Desde então, toda a minha vida foi consagrada a aprender. Agora, gostaria de transmitir as cinco lições que aprendi durante dez anos, como secretário-geral da ONU - lições que, na minha opinião, a comunidade das nações também precisa de aprender, no momento em que tem de enfrentar os desafios do século XXI.
A primeira lição é que, no mundo de hoje, todos somos responsáveis pela nossa segurança recíproca. Perante ameaças como a proliferação nuclear, as alterações climáticas, as pandemias mundiais ou os grupos terroristas que operam a partir de refúgios seguros em Estados falhados, nenhuma nação pode garantir a sua própria segurança afirmando a sua supremacia sobre todas as outras. Só trabalhando em prol da segurança de todos podemos esperar garantir uma segurança duradoura para nós próprios.
Essa responsabilidade inclui a responsabilidade partilhada de proteger as pessoas do genocídio, dos crimes de guerra, da limpeza étnica e dos crimes contra a humanidade. Uma responsabilidade que foi aceite por todas as nações, na cimeira da ONU do ano passado. Mas, quando vemos os assassínios, as violações e a fome que são infligidos ao povo do Darfur, compreendemos que essas doutrinas não passam de mera retórica, enquanto aqueles que têm poder para intervir eficazmente - exercendo pressão política, económica ou, em último recurso, militar - não estiverem dispostos a dar o exemplo. Também têm uma responsabilidade para com as gerações futuras - a de conservar recursos que lhes pertencem tanto como a nós. Cada dia em que nada fazemos ou não fazemos o suficiente para prevenir as alterações climáticas tem custos elevados para os nossos filhos.
A segunda lição é que somos responsáveis pelo bem-estar de todos. Sem solidariedade, nenhuma sociedade pode ser verdadeiramente estável. Não é realista pensar que uns quantos podem continuar a retirar grandes benefícios da globalização, enquanto milhares de milhões de outros permanecem ou são atirados para uma pobreza abjecta. Devemos dar a todos os nossos semelhantes pelo menos a possibilidade de partilharem a nossa prosperidade.
A terceira lição é que a segurança e a prosperidade dependem do respeito pelos direitos humanos e o Estado de direito. Ao longo da história, a diversidade enriqueceu a vida humana e as diferentes comunidades aprenderam umas com as outras. Mas, se quisermos que as nossas comunidades vivam em paz, devemos salientar também o que nos une: a nossa humanidade comum e a necessidade de a nossa dignidade humana e direitos serem protegidos pela lei.
Isso também é vital para o desenvolvimento. Tanto os estrangeiros como os cidadãos de um país tendem a investir mais, quando os seus direitos fundamentais são protegidos e quando sabem que serão tratados equitativamente pela lei. E as políticas que favorecem verdadeiramente o desenvolvimento têm mais hipóteses de ser adoptadas, se as pessoas que mais necessitam do desenvolvimento puderem fazer ouvir as suas vozes.
Os Estados precisam também de cumprir as regras que regem as relações entre eles. Nenhuma comunidade, em parte alguma do mundo, sofre de excesso de Estado de direito, mas muitas sofrem de falta dele - e isto aplica-se também à comunidade internacional. É uma situação que devemos mudar.
A minha quarta lição é, pois, que os governos devem ser responsabilizados pelos seus actos, tanto na cena internacional como na nacional. Todos os Estados devem prestar contas àqueles que são afectados, de uma maneira decisiva, pelas suas acções. Na situação actual, é fácil obrigar os Estados pobres e fracos a prestar contas, pois precisam de ajuda externa. Mas só o povo dos Estados grandes e poderosos, cuja acção tem maior impacto sobre os outros, pode obrigá-los a fazê-lo. Isto confere ao povo e instituições dos Estados poderosos uma responsabilidade especial por ter em conta as opiniões e interesses mundiais. E hoje têm de tomar em consideração os actores não estatais. Os Estados já não podem - se é que alguma vez puderam - enfrentar sozinhos os desafios mundiais. Cada vez mais, precisam da ajuda de uma miríade de associações em que as pessoas se juntam voluntariamente, para benefício próprio ou para reflectir em conjunto sobre a situação do mundo e para o mudar.
Como é que os Estados se podem responsabilizar uns perante os outros? Só por intermédio de instituições multilaterais. Assim, a minha quinta e última lição é que estas instituições devem ser organizadas de uma maneira justa e democrática, permitindo que os pobres e os fracos tenham alguma influência sobre a acção dos ricos e dos fortes.
Os países em desenvolvimento deveriam ter mais influência nas instituições financeiras internacionais, cujas decisões podem significar a vida ou a morte para os seus cidadãos. E haveria que incluir novos membros permanentes ou a longo prazo no Conselho de Segurança, cuja composição reflecte a realidade de 1945 e não a do mundo actual. E, o que não é menos importante, os membros do Conselho de Segurança devem aceitar a responsabilidade que acompanha o privilégio de o integrarem. O Conselho não é um palco para expressar interesses nacionais. É o comité de gestão do nosso frágil sistema de segurança mundial.
Mais do que nunca, a humanidade precisa de um sistema mundial que funcione. E a experiência tem demonstrado, repetidamente, que o sistema é pouco eficaz, quando os Estados-membros estão divididos e carecem de liderança, mas funciona muito melhor, quando há unidade, uma liderança clarividente e a participação de todos os actores. Sobre os dirigentes do mundo, os de hoje e os de amanhã, recai uma grande responsabilidade. Compete aos povos do planeta assegurar que se mostrem à altura dessa responsabilidade.
11 dezembro, 2006
Unamuno e "viva la muerte"
A propósito da minha entrada anterior, sobre a "morte amada" de alguns perversos, lembrei-me do célebre último discurso de Unamuno (ficou depois em prisão domiciliária até à morte), quando, como reitor da Universidade de Salamanca, respondeu de improviso a uma diatribe inflamada do general fascista Millán Astray, terminada com "Viva la muerte!". Vale a pena recordar. Valho-me da transcrição em "A guerra civil de Espanha", de Hugh Thomas (um clássico imprescindível).
"Todos vós estais suspensos das minhas palavras, todos vós me conheceis e sabeis que sou incapaz de me calar. Em certas ocasiões, calar é mentir, porque o silêncio pode ser interpretado como aquiescência. (...) Agora mesmo ouvi um grito necrófilo e insensato, "viva la muerte". E eu, que passei a vida a compor paradoxos que despertaram a cólera dos que não os compreendiam, devo dizer-lhes, como entendido, que este paradoxo, vindo de fora, me repugna. O general Millán Astray é um aleijado. Digamo-lo sem a menor amenidade. É um inválido de guerra. Tal como Cervantes. Infelizmente, neste momento, há demasiados aleijados em Espanha. E em breve ainda haverá mais se Deus não se apiedar de nós. Penaliza-me que seja um homem como o general Millán Astray a ditar os padrões da psicologia das massas. Um aleijado a quem falta a grandeza espiritual de Cervantes procura uma odiosa consolação para o seu mal provocando mutilações à sua volta".Após novo grito idêntico e ainda mais furioso do general, Unamuno concluiu:
"Este é o templo do intelecto e eu sou o seu sumo-sacerdote. Sois vós quem profanais os seus paços sagrados. Vencereis porque possuís força bruta mais do que suficiente. Mas não convencereis porque para convencer é preciso persuadir. E, para persuadir, seria necessário possuirdes aquilo de que careceis: razão e direito na luta".Não devia acrescentar mais nada a tão sublime gesto de coragem, mas há uma nota importante. Ao contrário de muitos outros grandes intelectuais espanhóis, Marañon, Pérez de Ayala, Machado, Menéndez Pidal, Ortega y Gasset, Severo Ochoa, Picasso, muitos outros, Unamuno manteve-se discreto durante parte da guerra civil, se é que não teve mesmo uma atitude simpática para com os que "lutam pela civilização contra a tirania" (Unamuno, sic), isto é, os franquistas que dominavam a sua Salamanca. Mas este episódio mostra que há alturas em que abrasa a chama da grandeza e da excelência intelectual e moral. E da coragem, coisa hoje tão esquecida, numa sociedade mesquinha toda feita de pequenos compromissos de enviesamento moral.
A morte amada
Ouvi hoje na rádio - lamento não me lembrar dito por quem - que Pinochet se tinha ido com a sua amada morte. É verdade, há quem tenha grande amor pela morte... dos outros. O mundo ficou mais leve, como fica sempre que morre um tirano ou um criminoso, mas com a mágoa da justiça por cumprir.
10 dezembro, 2006
Falta de originalidade
Há uma velha anedota que diz que, em muitos escritos, o que é bom não é original e o que é original não é bom. Há outros em que nem sequer há original, mesmo que mau. Um bom exemplo é o artigo de João Carlos Espada (JCE), no último Expresso, "O futuro da universidade", sobre o que já escrevi como Oxford em polvorosa.
JCE defende-se, referindo que, sobre este assunto, Timothy Garton Ash (TGA) publicou um artigo no Guardian. Também é certo que, muito brevemente, refere a opinião de TGA. No entanto, não diz que o resto do seu artigo (de JCE) vai ser apenas o desenvolvimento da opinião de TGA. O leitor não se lembrará de duvidar de que o restante texto de JCE não são as suas próprias ideias, as suas próprias informações.
Não são. A redacção é de JCE, mas não há uma ideia, uma informação ou um dado numérico que não venha no artigo de TGA. Não há mal nenhum em que JCE concorde com TGA (duvido de que concorde sempre) mas não pode dar a impressão de que foi o primeiro a ter a ideia. Arrogantemente (coisa bem portuguesa-intelectual), JCE esqueceu-se de que não é o único leitor português do Guardian. Deixo bem claro que não estou a acusar JCE de plágio, mas não tenho dúvida em afirmar que a sua lisura de rigor intelectual deixa muito a desejar. Assim, não é difícil escrever uma coluna semanal no Expresso.
JCE defende-se, referindo que, sobre este assunto, Timothy Garton Ash (TGA) publicou um artigo no Guardian. Também é certo que, muito brevemente, refere a opinião de TGA. No entanto, não diz que o resto do seu artigo (de JCE) vai ser apenas o desenvolvimento da opinião de TGA. O leitor não se lembrará de duvidar de que o restante texto de JCE não são as suas próprias ideias, as suas próprias informações.
Não são. A redacção é de JCE, mas não há uma ideia, uma informação ou um dado numérico que não venha no artigo de TGA. Não há mal nenhum em que JCE concorde com TGA (duvido de que concorde sempre) mas não pode dar a impressão de que foi o primeiro a ter a ideia. Arrogantemente (coisa bem portuguesa-intelectual), JCE esqueceu-se de que não é o único leitor português do Guardian. Deixo bem claro que não estou a acusar JCE de plágio, mas não tenho dúvida em afirmar que a sua lisura de rigor intelectual deixa muito a desejar. Assim, não é difícil escrever uma coluna semanal no Expresso.
09 dezembro, 2006
Separatismo
Sempre que há um conflito entre o inefável Aberto João Jardim (AJJ) e as autoridades da República, lá vem o separatismo, por interpostos lacaios. Nos Açores, é história arrumada e há um certo pudor em se falar disso. Na Madeira, é claro que é simples folclore o discurso habitual do factotum Jaime Ramos. E folclore até pode não ser muito mau, como no carnaval do Funchal, mesmo que com a participação histriónica de AJJ. Vou mais longe, até o admito a nível partidário, no célebre discurso anual depois de uma manhã de provas de poncha e canudinhos em cerca de cinquenta tascas. O que já não admito é a ridicularização das instituições do Estado.
Dito isto, é bom lembrarmo-nos de que não há qualquer ameaça separatista nos dois arquipélagos. No caso da Madeira, é pura chantagem política. Independência para quê? Para países inviáveis, em vez do conforto da solidariedade continental com os custos da insularidade? AJJ pode ser tudo menos estúpido, embora nem sempre se preocupe com realçar essa ideia de si próprio.
Curiosamente, onde o separatismo teve alguma importância (já explico o termo) foi nos Açores, como bem o demonstram as declarações de Carlucci, na sua visita recente a Portugal. A Madeira, foi fenómeno local, tirando algumas coisas surrealistas como uns eventuais contactos com a Líbia. Nos Açores, o separatismo foi um instrumento da estratégia americana, ao mais alto nível. Não é por acaso, embora descarado, que um dos maiores activistas fosse um funcionário açoriano do consulado americano ou que um recrutador notório passasse, publicamente e sem preocupações de desmentido, por agente da CIA. Quando me referi à importância da FLA não era à sua expressão real, mas sim ao seu papel instrumental como ameaça dos EUA em relação ao curso revolucionário no continente. Creio que isto está mais do que demonstrado, em muita documentação (é pena é não conhecermos as actas do encontro entre Spínola e Nixon). Note-se que, com o 25 de Novembro, se esfumou o separatismo açoriano.
Dito tudo isto, ponhamos a questão às avessas. De certa forma, o que seria natural é que houvesse separatismo e muito mais forte. Os arquipélagos merecem estudo em termos do seu portuguesismo secular. A língua e as tradições são importantes, mas quantos países hoje independentes não tiveram isso em conta? Gerações sucessivas de ilhéus, açorianos e madeirenses, nunca conheceram Portugal continental. Ainda me lembro, na minha meninice, de ser um luxo vir-se conhecer o continente, mas isto também era o sonho de muita gente. Ainda por cima, a pesada exploração senhorial (lembram-se do célebre encontro dos corvinos com Mouzinho da Silveira?) podia ser facilmente identificada com "colonialismo". Pelo menos em S. Miguel, o grande senhor, Vila Franca ou Ribeira Grande, sempre viveu na corte, desde o tempo de D. João IV (fora uma passagem pelos Estaus, pelo "nefando crime").
No entanto, falando agora só dos Açores, como exemplo, até houve tempos em que, de certa forma, Portugal – ou o seu melhor – só estava nos Açores: Prior do Crato e liberalismo. Depois, o movimento autonomista dos finais do século XIX até foi bem modesto, defendia apenas, como conseguiu, uma maior autonomia administrativa. Ninguém pensaria numa autonomia até legislativa, como a actual, generosamente conferida pelos constituintes.
Desafio os leitores, em conclusão, a reflectirem sobre esta coisa tão simples. Como é que umas centenas de milhares de pessoas, ao longo de séculos, isolados no meio do oceano, se mantiveram sempre portugueses? Isto leva-me a repetir uma afirmação de identidade pessoal que costumo fazer. Sou muito português porque sou muito açoriano, sou muito açoriano porque sou muito português.
Dito isto, é bom lembrarmo-nos de que não há qualquer ameaça separatista nos dois arquipélagos. No caso da Madeira, é pura chantagem política. Independência para quê? Para países inviáveis, em vez do conforto da solidariedade continental com os custos da insularidade? AJJ pode ser tudo menos estúpido, embora nem sempre se preocupe com realçar essa ideia de si próprio.
Curiosamente, onde o separatismo teve alguma importância (já explico o termo) foi nos Açores, como bem o demonstram as declarações de Carlucci, na sua visita recente a Portugal. A Madeira, foi fenómeno local, tirando algumas coisas surrealistas como uns eventuais contactos com a Líbia. Nos Açores, o separatismo foi um instrumento da estratégia americana, ao mais alto nível. Não é por acaso, embora descarado, que um dos maiores activistas fosse um funcionário açoriano do consulado americano ou que um recrutador notório passasse, publicamente e sem preocupações de desmentido, por agente da CIA. Quando me referi à importância da FLA não era à sua expressão real, mas sim ao seu papel instrumental como ameaça dos EUA em relação ao curso revolucionário no continente. Creio que isto está mais do que demonstrado, em muita documentação (é pena é não conhecermos as actas do encontro entre Spínola e Nixon). Note-se que, com o 25 de Novembro, se esfumou o separatismo açoriano.
Dito tudo isto, ponhamos a questão às avessas. De certa forma, o que seria natural é que houvesse separatismo e muito mais forte. Os arquipélagos merecem estudo em termos do seu portuguesismo secular. A língua e as tradições são importantes, mas quantos países hoje independentes não tiveram isso em conta? Gerações sucessivas de ilhéus, açorianos e madeirenses, nunca conheceram Portugal continental. Ainda me lembro, na minha meninice, de ser um luxo vir-se conhecer o continente, mas isto também era o sonho de muita gente. Ainda por cima, a pesada exploração senhorial (lembram-se do célebre encontro dos corvinos com Mouzinho da Silveira?) podia ser facilmente identificada com "colonialismo". Pelo menos em S. Miguel, o grande senhor, Vila Franca ou Ribeira Grande, sempre viveu na corte, desde o tempo de D. João IV (fora uma passagem pelos Estaus, pelo "nefando crime").
No entanto, falando agora só dos Açores, como exemplo, até houve tempos em que, de certa forma, Portugal – ou o seu melhor – só estava nos Açores: Prior do Crato e liberalismo. Depois, o movimento autonomista dos finais do século XIX até foi bem modesto, defendia apenas, como conseguiu, uma maior autonomia administrativa. Ninguém pensaria numa autonomia até legislativa, como a actual, generosamente conferida pelos constituintes.
Desafio os leitores, em conclusão, a reflectirem sobre esta coisa tão simples. Como é que umas centenas de milhares de pessoas, ao longo de séculos, isolados no meio do oceano, se mantiveram sempre portugueses? Isto leva-me a repetir uma afirmação de identidade pessoal que costumo fazer. Sou muito português porque sou muito açoriano, sou muito açoriano porque sou muito português.
06 dezembro, 2006
Gente típica (V)
As putas da R. do Beco
[Declaração de interesses: nunca fui às putas, tudo o que se segue é de ouvir dizer. Entenda-se também que puta é palavra amigável. Adivinho que muitas preferem ser chamadas de putas, em vez de prostitutas, nome arrevesado. Pior ainda é trabalhadoras do sexo, coisa que só lembra aos fanáticos do politicamente correcto. Ah, o nome da rosa! Provavelmente elas não devem concordar é com o uso do vernáculo filho da puta, bem assentado a muito filho de senhora bem. Os delas são, muitas vezes, educados com todos os esmeros.]
Isto vem na sequência da crónica anterior, acerca do Zé das camionetas. Quando o Zé ficou crescido e se virou para o negócio das apostas, os proventos iam em boa parte, como escrevi, para a Rua do Beco, onde era o filho nunca tido de tantas mulheres carentes, contando ele depois histórias exageradas que deixavam a ferver a minha curiosidade lúbrica de criança.
A R. do Beco era o horror das mães de família, rua da perdição, agora trajecto obrigatório para quem vem para o centro da cidade. Hoje, chama-se R. de S. Francisco Xavier. Coisa aparentemente irónica, mas se calhar não. Quantas putas indianas terá o santo acolhido ao cristianismo?
Pior ainda era o Éden, palco de decrépitas bailarinas espanholas, não sei se com quartos nas traseiras. Sussurrava-se nos serões de família, coisa deliciosa mas também a maior alimentadora da intriga: "fulano até é muito amigo da mulher e dá-lhe tudo para a casa, mas vai ao Éden". Frustração de micaelense que quer ter toda a vivência da sua terra, não conheço o Éden, que talvez já nem exista. Mas consta-me que ainda há descendência local de espanholas do Éden. Bom sinal, os açorianos são capazes de amores desbragados e de fazerem famílias bem pouco convencionais. Só assim se explica que tenham desaparecido os sinais fisionómicos dos milhares de escravos negros levados para a ilha.
Na R. do Beco, embora sem alardes, casinha baixa igual às outras, pontificava a Emília, empresária de todo o comércio da rua e distribuidora das putas por todas as casas, numa hierarquia que despachava rapariga fresca e bonita para o nº 7, velha degradada e pustulenta para o infecto nº 31. No meio, matriarcal, o nº 19 da Emília, todo alinhado, veludos e damascos, quartos pequenos todos demolidos para grande salão de dança e recepção, com um piano decrépito em que tocava um chulo, o Alfredo da Aninhas, também ela só memória viva de tempos de putice reles, que em Ponta Delgada não podia haver mais do que isto.
(Não sei porque é que me deu para escrever todos os endereços como números ímpares, à esquerda. Não tirem conclusões precipitadas. Coitadas, elas até são frequentemente, no seu sofrimento, muito religiosas e fatalistas, nada coisa de esquerda.)
Parece que também havia uma bebida excelente, mistura a meio por meio de cachaça e de vinho abafado. Outra especialidade, que vim a redescobrir há tempos no meu café de Sassoeiros, a pedido ao balcão de uma velha alcoólica envergonhada (puta reformada?), era um martini completado com cerveja. Gostos estranhos de bêbedos. Não sei por mim, tudo isto são conversas antigas do meu colega Chico, dançarino famoso dessas putices antigas, todo nu, esfregando-se em corpos de higiene duvidosa, mas com outros esmeros de limpeza, nunca dispensando as peúgas, porque o chão estava todo encardido. Gente fina!
[Declaração de interesses: nunca fui às putas, tudo o que se segue é de ouvir dizer. Entenda-se também que puta é palavra amigável. Adivinho que muitas preferem ser chamadas de putas, em vez de prostitutas, nome arrevesado. Pior ainda é trabalhadoras do sexo, coisa que só lembra aos fanáticos do politicamente correcto. Ah, o nome da rosa! Provavelmente elas não devem concordar é com o uso do vernáculo filho da puta, bem assentado a muito filho de senhora bem. Os delas são, muitas vezes, educados com todos os esmeros.]
Isto vem na sequência da crónica anterior, acerca do Zé das camionetas. Quando o Zé ficou crescido e se virou para o negócio das apostas, os proventos iam em boa parte, como escrevi, para a Rua do Beco, onde era o filho nunca tido de tantas mulheres carentes, contando ele depois histórias exageradas que deixavam a ferver a minha curiosidade lúbrica de criança.
A R. do Beco era o horror das mães de família, rua da perdição, agora trajecto obrigatório para quem vem para o centro da cidade. Hoje, chama-se R. de S. Francisco Xavier. Coisa aparentemente irónica, mas se calhar não. Quantas putas indianas terá o santo acolhido ao cristianismo?
Pior ainda era o Éden, palco de decrépitas bailarinas espanholas, não sei se com quartos nas traseiras. Sussurrava-se nos serões de família, coisa deliciosa mas também a maior alimentadora da intriga: "fulano até é muito amigo da mulher e dá-lhe tudo para a casa, mas vai ao Éden". Frustração de micaelense que quer ter toda a vivência da sua terra, não conheço o Éden, que talvez já nem exista. Mas consta-me que ainda há descendência local de espanholas do Éden. Bom sinal, os açorianos são capazes de amores desbragados e de fazerem famílias bem pouco convencionais. Só assim se explica que tenham desaparecido os sinais fisionómicos dos milhares de escravos negros levados para a ilha.
Na R. do Beco, embora sem alardes, casinha baixa igual às outras, pontificava a Emília, empresária de todo o comércio da rua e distribuidora das putas por todas as casas, numa hierarquia que despachava rapariga fresca e bonita para o nº 7, velha degradada e pustulenta para o infecto nº 31. No meio, matriarcal, o nº 19 da Emília, todo alinhado, veludos e damascos, quartos pequenos todos demolidos para grande salão de dança e recepção, com um piano decrépito em que tocava um chulo, o Alfredo da Aninhas, também ela só memória viva de tempos de putice reles, que em Ponta Delgada não podia haver mais do que isto.
(Não sei porque é que me deu para escrever todos os endereços como números ímpares, à esquerda. Não tirem conclusões precipitadas. Coitadas, elas até são frequentemente, no seu sofrimento, muito religiosas e fatalistas, nada coisa de esquerda.)
Parece que também havia uma bebida excelente, mistura a meio por meio de cachaça e de vinho abafado. Outra especialidade, que vim a redescobrir há tempos no meu café de Sassoeiros, a pedido ao balcão de uma velha alcoólica envergonhada (puta reformada?), era um martini completado com cerveja. Gostos estranhos de bêbedos. Não sei por mim, tudo isto são conversas antigas do meu colega Chico, dançarino famoso dessas putices antigas, todo nu, esfregando-se em corpos de higiene duvidosa, mas com outros esmeros de limpeza, nunca dispensando as peúgas, porque o chão estava todo encardido. Gente fina!
05 dezembro, 2006
Nota breve
O arcebispo de Santiago do Chile, um cardeal, visitou Pinochet no hospital. Não há dúvida de que foi um gesto sensato, para uma igreja que certamente quer fazer esquecer o seu papel de abençoadora da ditadura. Se Salazar ainda fosse vivo e estivesse internado como Pinochet, não estou a ver D. José Policarpo a ir visitá-lo.
04 dezembro, 2006
Subtilezas semânticas
Já há anos que deixámos de ter cegos em Portugal. Passámos foi a ter invisuais. Ouvi hoje que, segundo a terminologia governamental, deixámos de ter deficientes, passámos a ter pessoas com deficiência. Que bom seria este país se a vida obedecesse às palavras... Era só inventar novos termos para desempregados, pobres, excluídos, tanta coisa mais. Infelizmente, a linguagem politicamente correcta não muda nada a realidade.
Já agora, não concordo com o termo "portugueses". Prefiro "europeus de residência periférica ocidental".
Já agora, não concordo com o termo "portugueses". Prefiro "europeus de residência periférica ocidental".
03 dezembro, 2006
Sobre uma proposta de António Barreto
Escreve hoje António Barreto, no Público:
Já o seu segundo parágrafo me parece pecar por alguma arrogância universitária. A educação básica e secundária é muito diferente da superior, dirige-se a crianças e jovens em fase de construção da aprendizagem geral, tem condicionantes pedagógicas de natureza etária muito específicas. Se me pedissem para participar nesse trabalho proposto por António Barreto, responderia honestamente que não sou capaz.
Os departamentos universitários científicos não dispõem de pessoas com esta formação pedagógica. Em contrapartida, aos de ciências da educação falta a componente científica disciplinar. Concordando com António Barreto na sua preocupação de uma eficaz monitorização, sugeria outras entidades que, muitas vezes, conjugam ambas as competências: as sociedades científicas, nomeadamente aquelas que não se restringem a investigadores científicos. Ainda por cima, em muitos casos, têm dado contributo público à critica dos desmandos programáticos.
"Cada disciplina do básico e secundário deveria ser "monitorizada" por uma instituição universitária, devidamente contratada pelo ministério para esse efeito, com um termo de responsabilidade de cinco a dez anos (renováveis), a fim de poder assegurar estabilidade e capacidade para reformar tranquilamente e corrigir erros. A escolha da instituição (faculdade, instituto, centro, departamento) deveria ser feita após anúncio e concurso públicos. Os candidatos seriam instituições, não indivíduos, mesmo sabendo que é importante que uma instituição tenha um dirigente competente e prestigiado. Uma faculdade de ciências, por exemplo, teria a responsabilidade de acompanhar a disciplina de Física ao longo dos 12 anos de escolaridade. Um instituto ocupar-se-ia de todo o ensino da Matemática do 1.º ao 12.º ano.A ideia é certamente muito bem intencionada e, à primeira vista, não parece absurda. No entanto, tenho fortes dúvidas, como investigador e professor universitário. Que se corrigiriam erros científicos frequentes, que se estabeleceria uma distinção acertada entre o essencial do corpo de conhecimentos e a informação perecível, que se proporiam adequadas aproximações à experimentação, concordo.
Entre os termos de referência, teríamos, por exemplo, a determinação da extensão dos programas, a avaliação dos manuais, a definição do grau de complexidade em cada ano de escolaridade, a progressão disciplinar ao longo do percurso do aluno e eventualmente a elaboração de provas nacionais. Competiria também a essa instituição notar os resultados das avaliações internas e dos exames, advertir escolas, analisar o êxito e o insucesso, fazer recomendações para a formação de professores, elaborar normas e regras pedagógicas. Tudo no quadro de uma disciplina e não no âmbito de ambiciosas e inúteis reformas globais e integradas do sistema. "
Já o seu segundo parágrafo me parece pecar por alguma arrogância universitária. A educação básica e secundária é muito diferente da superior, dirige-se a crianças e jovens em fase de construção da aprendizagem geral, tem condicionantes pedagógicas de natureza etária muito específicas. Se me pedissem para participar nesse trabalho proposto por António Barreto, responderia honestamente que não sou capaz.
Os departamentos universitários científicos não dispõem de pessoas com esta formação pedagógica. Em contrapartida, aos de ciências da educação falta a componente científica disciplinar. Concordando com António Barreto na sua preocupação de uma eficaz monitorização, sugeria outras entidades que, muitas vezes, conjugam ambas as competências: as sociedades científicas, nomeadamente aquelas que não se restringem a investigadores científicos. Ainda por cima, em muitos casos, têm dado contributo público à critica dos desmandos programáticos.
02 dezembro, 2006
Em época de crise
Entre o sério e a brincadeira, a contenção não podia começar pela dimensão do governo? Ainda hoje (dia desta escrita) vi a reportagem da cimeira luso-espanhola, e lá estava a ministra espanhola da Educação e da Ciência. Ao lado, o ministro português da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior. Isto é pecha portuguesa, não há sector corporativo que não se queira ver representado a nível de ministério. E mesmo ministérios pequeninos, como esse ou o da cultura, não dispensam um secretário de Estado. Não será apenas, como uma vez disse Cavaco, com infelicidade (?), ajudante do ministro? Até há casos bizarros e crípticos, por exemplo, Secretário de Estado da Saúde
e Secretária de Estado Adjunta e da Saúde. Porque não um Secretário de Estado Ajunto da Secretária de Estado Adjunta?
Não podia deixar de falar do meu sector de estimação, a educação. Temos dois ministérios, a Espanha só tem um, a Inglaterra também (associando a formação profissional), a Holanda tem um ministério da educação, cultura e ciência, muitos outros exemplos.
Aqui vai o que seria um governo à nossa medida, respeitando os ministérios tradicionais e com simbolismo da soberania, seguidos das suas áreas de influência, eventualmente secretarias de Estado.
• Presidência > Assuntos parlamentares
• Defesa
• Negócios estrangeiros
• Justiça
• Administração interna > Autarquias / Segurança / Função pública
• Finanças > Tesouro / Orçamento
• Economia > Indústria / Comércio / Agricultura e pescas / Turismo / Inovação e tecnologia
• Educação e cultura > Educação básica e secundária / Educação superior / Ciência / Cultura
• Saúde
• Assuntos sociais > Trabalho / Segurança social / Formação profissional
• Equipamento > Obras públicas / Transportes / Comunicações
Tenho dúvidas quanto ao Ordenamento e ambiente. É difícil meter este sector juntamente com outros que representam os maiores predadores (autarquias, indústria, agricultura, etc.).
Em conclusão, um governo de pequeno pais, 11 ministros e 21 secretários de Estado. Hoje temos 16 ministros e 30 secretários de Estado. Em chefes de gabinete, adjuntos, assessores, secretárias, motoristas, cartões de crédito, despesas de representação, faz alguma diferença. Não é altura de, na sua luta contra os privilégios, Sócrates falar nos privilégios do governo?
Mais sério é que isto traduz uma lógica de governação. Em muitos países, o governante tem a seu cargo apenas a orientação e decisão política final. O seu staff até pode não ter funções governamentais. Desconfio, por muito que conheço da administração pública, que entre nós há uma cadeia de despromoção. De facto, os ministros, despachando trivialidades, são secretários de Estado, estes são directores-gerais e os directores-gerais são chefes de repartição. Em que é que ocupam o dia a Ministra da Cultura e o seu Secretário de Estado? Gostava de saber. Para que precisa Mariano Gago de um Secretário de Estado?
Não podia deixar de falar do meu sector de estimação, a educação. Temos dois ministérios, a Espanha só tem um, a Inglaterra também (associando a formação profissional), a Holanda tem um ministério da educação, cultura e ciência, muitos outros exemplos.
Aqui vai o que seria um governo à nossa medida, respeitando os ministérios tradicionais e com simbolismo da soberania, seguidos das suas áreas de influência, eventualmente secretarias de Estado.
• Presidência > Assuntos parlamentares
• Defesa
• Negócios estrangeiros
• Justiça
• Administração interna > Autarquias / Segurança / Função pública
• Finanças > Tesouro / Orçamento
• Economia > Indústria / Comércio / Agricultura e pescas / Turismo / Inovação e tecnologia
• Educação e cultura > Educação básica e secundária / Educação superior / Ciência / Cultura
• Saúde
• Assuntos sociais > Trabalho / Segurança social / Formação profissional
• Equipamento > Obras públicas / Transportes / Comunicações
Tenho dúvidas quanto ao Ordenamento e ambiente. É difícil meter este sector juntamente com outros que representam os maiores predadores (autarquias, indústria, agricultura, etc.).
Em conclusão, um governo de pequeno pais, 11 ministros e 21 secretários de Estado. Hoje temos 16 ministros e 30 secretários de Estado. Em chefes de gabinete, adjuntos, assessores, secretárias, motoristas, cartões de crédito, despesas de representação, faz alguma diferença. Não é altura de, na sua luta contra os privilégios, Sócrates falar nos privilégios do governo?
Mais sério é que isto traduz uma lógica de governação. Em muitos países, o governante tem a seu cargo apenas a orientação e decisão política final. O seu staff até pode não ter funções governamentais. Desconfio, por muito que conheço da administração pública, que entre nós há uma cadeia de despromoção. De facto, os ministros, despachando trivialidades, são secretários de Estado, estes são directores-gerais e os directores-gerais são chefes de repartição. Em que é que ocupam o dia a Ministra da Cultura e o seu Secretário de Estado? Gostava de saber. Para que precisa Mariano Gago de um Secretário de Estado?
01 dezembro, 2006
Uma opinião sobre o aborto
Todos os utilizadores de Mac conhecem a imprescindível "mailing list" do Pedro Aniceto, o "Correio dos Outros". Extravasa frequentemente para coisas que não têm a ver com computadores. Ultimamente, tem sido o referendo sobre o aborto. Tenho-me dividido, entre respostas a coisa sérias e inibição de responder a alarvidades. Aqui vai uma mensagem de um anónimo (palpita-me que com boa formação jurídica). Não percebo bem o primeiro parágrafo, mas nada desmerece do conjunto. Este conjunto quase me dispensa de escrever mais sobre o meu voto pelo SIM. Segue-se a transcrição.
"Seja-me permitido fazer uma observação.
É verdadeiramente espantoso que alguém possa dizer-se Cristão e que, sob (prefiro-o ao “sobre”...) o ponto de vista religioso, “se está nas tintas para que as pessoas abortem ou não, assassinem, roubem, etc.”, por entender que “isso é um problema entre as pessoas que o fazem e o seu criador”! A enormidade da afirmação, que varre do mapa uma civilização baseada num código moral judaico-cristão e apaga de uma penada a Bíblia, os Evangelhos e tudo, mas rigorosamente tudo, quanto se escreveu sobre religião desde há já mais de vinte séculos, justifica amplamente que o seu autor aproveite o assombroso balanço e lance as fundações de uma nova religião.
Porém, impõe-se que renuncie a apelidá-la de Cristã, pois que jamais conseguirá justificar a sua teologia com um código moral em que matar, roubar, “etc.” sejam um assunto privado entre o indivíduo e o “seu” criador, ao revés de tudo quanto sobre a lição de Cristo – como testemunhada nos Evangelhos – se escreve há 2 mil anos.
A asneira é felizmente livre.
Mas é espantoso é que assuma estas dimensões épicas sem que quem se mete por esses espinhosos caminhos das relações entre Religião, Moral e Direito sem uma competente armadura conceitual se dê aparentemente conta do imenso ridículo que é não se limitar a dizer “eu ACREDITO que” isto e aquilo. Só neste País? Provavelmente não...
Mas, no fim de tudo, se é bem inócuo o que o Senhor Amorim traz como fundamento da sua posição, não deixa por isso de ser extremamente importante: o Senhor Amorim, que confessa não saber quando começa a vida, diz, preto no branco, que ACREDITA “sinceramente que comece antes das 10 semanas”. É aí que está o centro da questão: se fosse possível estabelecer como verdade científica (diversamente das outras “verdades”, para ser científica ela tem que ser susceptível de demonstração indutiva) que a vida humana (tal como a definimos) começa no preciso momento em que a fecundação ocorre, ninguém poderia discutir a ilicitude penal da interrupção do processo de gestação. Mas, embora aos cientistas chamados a pronunciar-se nessa questão não tenhamos sequer o direito de opor a sua fé pessoal – por definição não pode haver confusão de planos – tal afirmação não pôde até à data ser estabelecida com crédito científico. É linear – mas não por isso menos verdadeiro – que na falta dela o legislador tenha considerado a opção – bem mais razoável do que a apresentada pelos “fundamentalistas do não” - entre a consensualidade segura de um mínimo e o risco de, mesmo assim, se ferir a área intangível da vida. Tudo isto é muito menos espectacular do que alguns pensam, dividido entre exércitos que se embatem numa fragorosa colisão de branco e preto. Pois é, mas é muito menos simples, muito mais exigente da humana condição e da sua capacidade – propugnada pelo Cristianismo – de entender e de sentir compaixão pela condição humana.
De resto, aos feros proibicionistas, que tanto enchem a boca de um direito à vida mas que andam tão perto do direito de tirar a vida a quem já nasceu – como mostram a história e o direito comparado (ver os tais EUA, sempre trazidos para tudo como um paradigma que nem serve para a nossa cultura, vista a prevalência dos valores herdados da Reforma) na previsível coincidência entre o proibição do aborto e vigência da pena de morte – não ocorre nem por um momento equacionar a vontade conjectural do feto, ou seja, a que seria razoável supor emitida por quem, ainda por diferenciar e adquirir consciência – mesmo incipiente – de si mesmo (que é o que nos distingue dos irracionais), fosse colocado ante a opção de nascer sem ser sido voluntariamente concebido e de, com a probabilidade que as circunstâncias inculcassem, não ter uma razoável expectativa de apoio do conjunto dos seus progenitores para a vida extra-uterina.
Será agora a minha vez de dizer que ACREDITO que é aqui, na dignidade deste direito a ser concebido que conjecturalmente se pode projectar no nascituro, que radica a outra dimensão do direito à interrupção voluntária de um processo de gestação que apenas se consolida irrevogavelmente a partir de um dado momento.
Não é menos escrupuloso quanto à determinação desse momento quem se mostre sensível às questões sociais da maternidade – porque as relativas à paternidade estão quase invariavelmente no centro da dolorosa decisão de abortar – e se apoie na falta da evidência dessa vida humana para desobstruir o caminho da interrupção, em coerência com o apoio a uma maternidade responsável.
Por isso todos se devem respeito, a começar pelo da inteligência de cada qual. Mesmo assim, nunca será demais sublinhar que, se somos soberanos nas nossas escolhas legislativas – designadamente quanto à bárbara punição com pena de prisão da mulher que aborte, a mesma mulher que, sem sinais de maior consideração social, paga em dobro a sua condição de mãe, vendo-se preterida no emprego em função da maternidade, subjugada pela obstinação de supremacia masculina no âmbito do seu relacionamento social e familiar, vítima das violências de género que proliferam num tempo de igualitarismo consumista, e até descriminada do ponto de vista fiscal, ela cujo comportamento reprodutivo que é a chave da sobrevivência da sociedade!
Se o conjunto dos cidadãos deste país votar maioritariamente o não, impõe-se que a mesma Assembleia da República que se demitiu de legislar com o mandato que recebeu desses mesmos cidadãos tome a iniciativa de votar uma lei que puna com a mesma pena de prisão o homem que, tendo dado causa à gravidez interrompida, não tenha conseguido obviar ao aborto apesar dos esforços que razoavelmente são exigíveis de quem se permite ter relações sexuais com mulher fértil sem protecção apropriada. Trata-se apenas de dar corpo ao que a lei penal prevê como autoria e imputação a título e dolo eventual.
Basta de brincadeiras de mau gosto, meus senhores!
jlsc (???)"
"Seja-me permitido fazer uma observação.
É verdadeiramente espantoso que alguém possa dizer-se Cristão e que, sob (prefiro-o ao “sobre”...) o ponto de vista religioso, “se está nas tintas para que as pessoas abortem ou não, assassinem, roubem, etc.”, por entender que “isso é um problema entre as pessoas que o fazem e o seu criador”! A enormidade da afirmação, que varre do mapa uma civilização baseada num código moral judaico-cristão e apaga de uma penada a Bíblia, os Evangelhos e tudo, mas rigorosamente tudo, quanto se escreveu sobre religião desde há já mais de vinte séculos, justifica amplamente que o seu autor aproveite o assombroso balanço e lance as fundações de uma nova religião.
Porém, impõe-se que renuncie a apelidá-la de Cristã, pois que jamais conseguirá justificar a sua teologia com um código moral em que matar, roubar, “etc.” sejam um assunto privado entre o indivíduo e o “seu” criador, ao revés de tudo quanto sobre a lição de Cristo – como testemunhada nos Evangelhos – se escreve há 2 mil anos.
A asneira é felizmente livre.
Mas é espantoso é que assuma estas dimensões épicas sem que quem se mete por esses espinhosos caminhos das relações entre Religião, Moral e Direito sem uma competente armadura conceitual se dê aparentemente conta do imenso ridículo que é não se limitar a dizer “eu ACREDITO que” isto e aquilo. Só neste País? Provavelmente não...
Mas, no fim de tudo, se é bem inócuo o que o Senhor Amorim traz como fundamento da sua posição, não deixa por isso de ser extremamente importante: o Senhor Amorim, que confessa não saber quando começa a vida, diz, preto no branco, que ACREDITA “sinceramente que comece antes das 10 semanas”. É aí que está o centro da questão: se fosse possível estabelecer como verdade científica (diversamente das outras “verdades”, para ser científica ela tem que ser susceptível de demonstração indutiva) que a vida humana (tal como a definimos) começa no preciso momento em que a fecundação ocorre, ninguém poderia discutir a ilicitude penal da interrupção do processo de gestação. Mas, embora aos cientistas chamados a pronunciar-se nessa questão não tenhamos sequer o direito de opor a sua fé pessoal – por definição não pode haver confusão de planos – tal afirmação não pôde até à data ser estabelecida com crédito científico. É linear – mas não por isso menos verdadeiro – que na falta dela o legislador tenha considerado a opção – bem mais razoável do que a apresentada pelos “fundamentalistas do não” - entre a consensualidade segura de um mínimo e o risco de, mesmo assim, se ferir a área intangível da vida. Tudo isto é muito menos espectacular do que alguns pensam, dividido entre exércitos que se embatem numa fragorosa colisão de branco e preto. Pois é, mas é muito menos simples, muito mais exigente da humana condição e da sua capacidade – propugnada pelo Cristianismo – de entender e de sentir compaixão pela condição humana.
De resto, aos feros proibicionistas, que tanto enchem a boca de um direito à vida mas que andam tão perto do direito de tirar a vida a quem já nasceu – como mostram a história e o direito comparado (ver os tais EUA, sempre trazidos para tudo como um paradigma que nem serve para a nossa cultura, vista a prevalência dos valores herdados da Reforma) na previsível coincidência entre o proibição do aborto e vigência da pena de morte – não ocorre nem por um momento equacionar a vontade conjectural do feto, ou seja, a que seria razoável supor emitida por quem, ainda por diferenciar e adquirir consciência – mesmo incipiente – de si mesmo (que é o que nos distingue dos irracionais), fosse colocado ante a opção de nascer sem ser sido voluntariamente concebido e de, com a probabilidade que as circunstâncias inculcassem, não ter uma razoável expectativa de apoio do conjunto dos seus progenitores para a vida extra-uterina.
Será agora a minha vez de dizer que ACREDITO que é aqui, na dignidade deste direito a ser concebido que conjecturalmente se pode projectar no nascituro, que radica a outra dimensão do direito à interrupção voluntária de um processo de gestação que apenas se consolida irrevogavelmente a partir de um dado momento.
Não é menos escrupuloso quanto à determinação desse momento quem se mostre sensível às questões sociais da maternidade – porque as relativas à paternidade estão quase invariavelmente no centro da dolorosa decisão de abortar – e se apoie na falta da evidência dessa vida humana para desobstruir o caminho da interrupção, em coerência com o apoio a uma maternidade responsável.
Por isso todos se devem respeito, a começar pelo da inteligência de cada qual. Mesmo assim, nunca será demais sublinhar que, se somos soberanos nas nossas escolhas legislativas – designadamente quanto à bárbara punição com pena de prisão da mulher que aborte, a mesma mulher que, sem sinais de maior consideração social, paga em dobro a sua condição de mãe, vendo-se preterida no emprego em função da maternidade, subjugada pela obstinação de supremacia masculina no âmbito do seu relacionamento social e familiar, vítima das violências de género que proliferam num tempo de igualitarismo consumista, e até descriminada do ponto de vista fiscal, ela cujo comportamento reprodutivo que é a chave da sobrevivência da sociedade!
Se o conjunto dos cidadãos deste país votar maioritariamente o não, impõe-se que a mesma Assembleia da República que se demitiu de legislar com o mandato que recebeu desses mesmos cidadãos tome a iniciativa de votar uma lei que puna com a mesma pena de prisão o homem que, tendo dado causa à gravidez interrompida, não tenha conseguido obviar ao aborto apesar dos esforços que razoavelmente são exigíveis de quem se permite ter relações sexuais com mulher fértil sem protecção apropriada. Trata-se apenas de dar corpo ao que a lei penal prevê como autoria e imputação a título e dolo eventual.
Basta de brincadeiras de mau gosto, meus senhores!
jlsc (???)"
Duas notas, atrasadas
1. Há dias, Eduardo Prado Coelho escreveu no Público, sobre o próximo referendo, que "a questão consiste apenas numa decisão de tipo filosófico, quando começa a vida humana". Parece-me dupla tolice. Primeiro, porque, julgando eu que é EPC é pelo sim, está a colocar-se no terreno minado preferido dos adeptos do não. Segundo, porque isto não me parece que seja questão de filosofia. Começo por perguntar o que é hoje a filosofia, que me parece navegar em águas duplas. Por um lado, há matérias essencialmente filosóficas, a ética, o sentido da vida, a estética, mas mesmo assim recorrendo a contributos científicos. Outras são questões em que a filosofia é precária, aguardando pela ciência. Ainda há dois séculos, a psicologia era filosofia. Também a cosmologia, disciplina hoje totalmente assimilada pela ciência.
No entanto, dou o benefício da dúvida a EPC, se ele está a pensar no que vou dizer. Pode a ciência definir o que é o princípio da vida, muito mais da vida humana? A biologia assume o conceito de vida como abstracção, essencialmente como coisa com base relativamente objectiva: a vida é o que há de comum nos seres vivos, coisa objectiva que a ciência sabe bem o que é. É, por natureza, um processo contínuo, a nível individual e das gerações. No início, passa por frases igualmente importantes para a evolução intra-uterina de um futuro ser: a fertilização, a nidação, a activação do primeiro gene especificamente humano, a diferenciação, o nascimento para uma vida autónoma. Sendo um contínuo, é quase impossível definir uma única data determinante.
Acho curioso que toda esta discussão "filosófica" esqueça o outro extremo, o da morte. A pressão prática (transplantes, exageros de cuidados médicos) roubou-a à filosofia, ninguém hoje nega o conceito de morte cerebral. Porque é que o mesmo critério não se há-de aplicar ao início da vida? Seguramente que a vida cerebral aparece muito depois da fertilização.
2. O caso Litvinenko desafia toda a minha capacidade de análise racional. Putin está na mira. É, para mim, uma personagem bastante detestável, mas longe de mim pensar que é estúpido e, à primeira vista, o caso Litvinenko é estúpido. Um envenenamento flagrante, com marcas de estado, num país estrangeiro, de um oposicionista menor, numa época em que a Rússia se quer afirmar no G8. Podia haver uma hipótese maquiavélica, a de uma operação ex-KGB para comprometer Putin. Não tenho dados para discutir esta hipótese.
No emaranhado de teias de corrupção em que se embrulhou a Rússia pós-comunista, inclino-me mais a pensar em outros responsáveis, mais ou menos mafiosos. Isto leva-me a uma consequência terrível. Há quem hoje possa dispor de polónio-210, que não se vende em qualquer drogaria. A seguir, não virá uma bomba nuclear?
No meio disto, há coisas que não percebo. Aparentemente, alguém andou a espalhar resíduos de polónio por hotéis, escritórios, até cinco aviões. Não são traços de radiação emitida por eventuais contaminados, são resultado de derrame da substância radioactiva. Quem a usou, com alta sofisticação, não soube acondicioná-la? E logo cinco aviões! Os assassinos andaram a fazer turismo?
No entanto, dou o benefício da dúvida a EPC, se ele está a pensar no que vou dizer. Pode a ciência definir o que é o princípio da vida, muito mais da vida humana? A biologia assume o conceito de vida como abstracção, essencialmente como coisa com base relativamente objectiva: a vida é o que há de comum nos seres vivos, coisa objectiva que a ciência sabe bem o que é. É, por natureza, um processo contínuo, a nível individual e das gerações. No início, passa por frases igualmente importantes para a evolução intra-uterina de um futuro ser: a fertilização, a nidação, a activação do primeiro gene especificamente humano, a diferenciação, o nascimento para uma vida autónoma. Sendo um contínuo, é quase impossível definir uma única data determinante.
Acho curioso que toda esta discussão "filosófica" esqueça o outro extremo, o da morte. A pressão prática (transplantes, exageros de cuidados médicos) roubou-a à filosofia, ninguém hoje nega o conceito de morte cerebral. Porque é que o mesmo critério não se há-de aplicar ao início da vida? Seguramente que a vida cerebral aparece muito depois da fertilização.
2. O caso Litvinenko desafia toda a minha capacidade de análise racional. Putin está na mira. É, para mim, uma personagem bastante detestável, mas longe de mim pensar que é estúpido e, à primeira vista, o caso Litvinenko é estúpido. Um envenenamento flagrante, com marcas de estado, num país estrangeiro, de um oposicionista menor, numa época em que a Rússia se quer afirmar no G8. Podia haver uma hipótese maquiavélica, a de uma operação ex-KGB para comprometer Putin. Não tenho dados para discutir esta hipótese.
No emaranhado de teias de corrupção em que se embrulhou a Rússia pós-comunista, inclino-me mais a pensar em outros responsáveis, mais ou menos mafiosos. Isto leva-me a uma consequência terrível. Há quem hoje possa dispor de polónio-210, que não se vende em qualquer drogaria. A seguir, não virá uma bomba nuclear?
No meio disto, há coisas que não percebo. Aparentemente, alguém andou a espalhar resíduos de polónio por hotéis, escritórios, até cinco aviões. Não são traços de radiação emitida por eventuais contaminados, são resultado de derrame da substância radioactiva. Quem a usou, com alta sofisticação, não soube acondicioná-la? E logo cinco aviões! Os assassinos andaram a fazer turismo?
30 novembro, 2006
Boa governação?
O orçamento do aeroporto da Ota, como se esperava, já derrapou. Porque a sua entrada em funcionamento foi atrasada de 2012 para 2017, porque o movimento previsto aumentou de 20%, a previsão de custos passa de 3,1 milhões de euros para não sei quanto, é omitido na notícia do Público. No mínimo, vou admitir que os tais 20%.
Entretanto, em notícia que já não consigo localizar, anuncia-se que a Portela vai ser reforçada a curto prazo com obras, se não me falha a memória, de cerca de 400 milhões de euros, para o lixo depois da Ota: um novo terminal, o dobro das placas de estacionamento, o triplo das mangas. Só quem não viaja frequentemente de avião é que pode negar a necessidade urgente deste investimento, mas o que motiva esta escrita é outra questão.
Temos nós, portugueses, um défice nato para o planeamento e a previsão? Até parece que sim. Somos especialistas do desenrascanço, que, por definição, é a antítese do planeamento. O novo aeroporto de Lisboa vem na agenda política ainda dos tempos do marcelismo. Compreensivelmente, os anos pós-Abril não permitiram grandes empreendimentos, mas, depois, veio a fonte comunitária para a euforia de obras públicas do tempo cavaquista. No essencial, tudo auto-estradas, dão votos. Hoje temos uma rede provavelmente das de maior densidade europeia, mas nunca se pensou no aeroporto.
Outro exemplo notório foi o custo exorbitante da modernização ranhosa da linha ferroviária do Norte, em que continuamos a viajar à velocidade dos velhos Foguete, quando, na altura, já havia TGV em vários países. Quando hoje se fala no nosso futuro TGV, é preciso adicionar ambos os custos, porque os pagámos ambos, e responsabilizar alguém. Mas quem? Foram sucessivos governos. Podia dizer: responsabilizemos todos os que têm a culpa da nossa incapacidade de previsão e de planeamento. Mas quem são? Não seremos todos nós? Com isto, passando à minha actual missão de vida principal, a grande prioridade nacional não é a educação e, determinante de todo o sistema educativo, a educação superior?
Este país tem medo de existir? A questão hoje começa a ser outra, mais dramática: este pais quer existir? "That's the globalization, stupid!".
Entretanto, em notícia que já não consigo localizar, anuncia-se que a Portela vai ser reforçada a curto prazo com obras, se não me falha a memória, de cerca de 400 milhões de euros, para o lixo depois da Ota: um novo terminal, o dobro das placas de estacionamento, o triplo das mangas. Só quem não viaja frequentemente de avião é que pode negar a necessidade urgente deste investimento, mas o que motiva esta escrita é outra questão.
Temos nós, portugueses, um défice nato para o planeamento e a previsão? Até parece que sim. Somos especialistas do desenrascanço, que, por definição, é a antítese do planeamento. O novo aeroporto de Lisboa vem na agenda política ainda dos tempos do marcelismo. Compreensivelmente, os anos pós-Abril não permitiram grandes empreendimentos, mas, depois, veio a fonte comunitária para a euforia de obras públicas do tempo cavaquista. No essencial, tudo auto-estradas, dão votos. Hoje temos uma rede provavelmente das de maior densidade europeia, mas nunca se pensou no aeroporto.
Outro exemplo notório foi o custo exorbitante da modernização ranhosa da linha ferroviária do Norte, em que continuamos a viajar à velocidade dos velhos Foguete, quando, na altura, já havia TGV em vários países. Quando hoje se fala no nosso futuro TGV, é preciso adicionar ambos os custos, porque os pagámos ambos, e responsabilizar alguém. Mas quem? Foram sucessivos governos. Podia dizer: responsabilizemos todos os que têm a culpa da nossa incapacidade de previsão e de planeamento. Mas quem são? Não seremos todos nós? Com isto, passando à minha actual missão de vida principal, a grande prioridade nacional não é a educação e, determinante de todo o sistema educativo, a educação superior?
Este país tem medo de existir? A questão hoje começa a ser outra, mais dramática: este pais quer existir? "That's the globalization, stupid!".
29 novembro, 2006
Gente típica (IV)
O Zé das camionetas
O Zé é verídico, mas alguma da história é ficcionada, em nomes e lugares, em um ou outro pormenor pitoresco, porque ele ainda deve andar por aí. Não tira nada à caracterização de um caso de gente típica. Eles ficam ainda mais típicos quando acentuamos as pinceladas do retrato.
O Zé das camionetas também era miúdo da minha R. do Saco de infância, mas “capitão da areia”. Não se sabia onde vivia, arribava à minha rua vindo talvez de uma noite mal dormida num bidão da doca. Ele não o dizia, mas sempre pensei que a sua vida passava muito por rei da doca, porque nos contava que era ajudante de guardas fiscais contrabandistas. A sua escola foi sempre a da malandragem, com histórias que me deliciavam e aos meus amigos, histórias de vivência impossível para nós, meninos burgueses e educados religiosamente.
Aos cinco anos, o Zé começou a sua carreira rodoviária, com uma velha cega, minúscula, desdentada e trôpega, que acho que não lhe era nada, apenas sócia no negócio. Entravam na camioneta da Lagoa e o Zé cantava o fado da ceguinha, com a sócia de olhos bem fechados, mas a adivinhar-se que olhavam para o vazio, talvez o triste vazio interior. Boné cheio de moedas, descia no Rosário e tomava a camioneta para a Vila Franca, repetindo-se o trabalho. Chegava a dar, num dia, toda a volta à ilha. Há quem garanta que, no fim, a velha finalmente abria os olhos e não se deixava perder nas contas da divisão de proventos que o Zé fazia.
O Zé foi crescendo e o tamanho já não despertava a vontade da esmola. Espírito empreendedor, virou-se para outra actividade, tirando partido dos seus conhecimentos de transportes públicos. Entrava nos cafés e fazia apostas. “Qual é a paragem que fica a seguir à do Cabouco?”. Ganhava sempre e, com isto, lá ia para a Rua do Beco, onde era o filho nunca tido de tantas mulheres carentes, contando ele depois histórias exageradas que deixavam a ferver a minha curiosidade lúbrica de criança.
Um dia, jovem estudante em Lisboa, passeando-me na Feira da Ladra, parei a ver um dos habilidosos da vermelhinha, em grande discurso de distrair os jogadores. Entrou-me logo no ouvido a toada micaelense, reparei bem e era o Zé. Tinha assentado praça no 18 mas não durou lá muito, indo logo como corrécio para Penamacor. Tudo porque numa noite de sentinela, mais do que entediado, se entreteve a usar a Mauser para uns tirinhos aos pardais do Campo de S. Francisco. Isto contou-me ele, mas não acreditei, porque degradação a corrécio exigia muito mais, ou política ou grande malandragem de ciganos. Segredos lá dele, inconfessáveis até a velho companheiro, mas fiquei sempre a suspeitar de que ali devia haver história de saias com mulher de oficial. A vermelhinha ia-lhe dando algum proveito, mas a ambição era poupar todos os cobres para o regresso à ilha.
Interrogando os meus velhos companheiros, ninguém sabe do Zé. Com o seu jeito para o negócio, mesmo que pouco ortodoxo, não será hoje empresário bem sucedido, a ganhar muito mais do que eu?
(Adaptado de "O Mastro das Alminhas")
O Zé é verídico, mas alguma da história é ficcionada, em nomes e lugares, em um ou outro pormenor pitoresco, porque ele ainda deve andar por aí. Não tira nada à caracterização de um caso de gente típica. Eles ficam ainda mais típicos quando acentuamos as pinceladas do retrato.
O Zé das camionetas também era miúdo da minha R. do Saco de infância, mas “capitão da areia”. Não se sabia onde vivia, arribava à minha rua vindo talvez de uma noite mal dormida num bidão da doca. Ele não o dizia, mas sempre pensei que a sua vida passava muito por rei da doca, porque nos contava que era ajudante de guardas fiscais contrabandistas. A sua escola foi sempre a da malandragem, com histórias que me deliciavam e aos meus amigos, histórias de vivência impossível para nós, meninos burgueses e educados religiosamente.
Aos cinco anos, o Zé começou a sua carreira rodoviária, com uma velha cega, minúscula, desdentada e trôpega, que acho que não lhe era nada, apenas sócia no negócio. Entravam na camioneta da Lagoa e o Zé cantava o fado da ceguinha, com a sócia de olhos bem fechados, mas a adivinhar-se que olhavam para o vazio, talvez o triste vazio interior. Boné cheio de moedas, descia no Rosário e tomava a camioneta para a Vila Franca, repetindo-se o trabalho. Chegava a dar, num dia, toda a volta à ilha. Há quem garanta que, no fim, a velha finalmente abria os olhos e não se deixava perder nas contas da divisão de proventos que o Zé fazia.
O Zé foi crescendo e o tamanho já não despertava a vontade da esmola. Espírito empreendedor, virou-se para outra actividade, tirando partido dos seus conhecimentos de transportes públicos. Entrava nos cafés e fazia apostas. “Qual é a paragem que fica a seguir à do Cabouco?”. Ganhava sempre e, com isto, lá ia para a Rua do Beco, onde era o filho nunca tido de tantas mulheres carentes, contando ele depois histórias exageradas que deixavam a ferver a minha curiosidade lúbrica de criança.
Um dia, jovem estudante em Lisboa, passeando-me na Feira da Ladra, parei a ver um dos habilidosos da vermelhinha, em grande discurso de distrair os jogadores. Entrou-me logo no ouvido a toada micaelense, reparei bem e era o Zé. Tinha assentado praça no 18 mas não durou lá muito, indo logo como corrécio para Penamacor. Tudo porque numa noite de sentinela, mais do que entediado, se entreteve a usar a Mauser para uns tirinhos aos pardais do Campo de S. Francisco. Isto contou-me ele, mas não acreditei, porque degradação a corrécio exigia muito mais, ou política ou grande malandragem de ciganos. Segredos lá dele, inconfessáveis até a velho companheiro, mas fiquei sempre a suspeitar de que ali devia haver história de saias com mulher de oficial. A vermelhinha ia-lhe dando algum proveito, mas a ambição era poupar todos os cobres para o regresso à ilha.
Interrogando os meus velhos companheiros, ninguém sabe do Zé. Com o seu jeito para o negócio, mesmo que pouco ortodoxo, não será hoje empresário bem sucedido, a ganhar muito mais do que eu?
(Adaptado de "O Mastro das Alminhas")
28 novembro, 2006
Fado tropical
Boa parte do meu tempo passa-se em frente ao computador. Há muitos anos, era eu estudante, frente aos livros. Há uma coisa em comum, o gostar de um fundo musical, antes no rádio portátil, na varanda-escritório, com o meu primeiro bebé a olhar-me embevecido (pai feliz que sou), agora no iTunes. Hoje, apeteceu-me descarregar músicas do Chico Buarque e lá fui dar com o Fado Tropical.
"Este pais vai cumprir seu ideal, vai ser um imenso Portugal." Errado. Portugal é que pode ser um imenso Brasil, se quiser e souber. Lula, candidata-te a presidente de Portugal.
Vem à baila outra coisa sobre o Chico. Só o vi ao vivo uma vez, algures nos anos 60, quando o TUCA trouxe a Lisboa o "Morte e Vida Severina". À direita do palco, lembro-me bem, alguns músicos, coro modesto, em que um se destacava. Na fila atrás de mim, estava Fernando Lopes Graça e lembro o comentário que lhe ouvi, para a Francine Benoit: "Este rapaz vai dar que falar". O rapaz era o Chico Buarque.
E, já agora, quando é que Lopes Graça vai ser nossa coisa diária, na rádio e na televisão? E outros, Luís de Freitas Branco, Peixinho, Emanuel Nunes?
"Este pais vai cumprir seu ideal, vai ser um imenso Portugal." Errado. Portugal é que pode ser um imenso Brasil, se quiser e souber. Lula, candidata-te a presidente de Portugal.
Vem à baila outra coisa sobre o Chico. Só o vi ao vivo uma vez, algures nos anos 60, quando o TUCA trouxe a Lisboa o "Morte e Vida Severina". À direita do palco, lembro-me bem, alguns músicos, coro modesto, em que um se destacava. Na fila atrás de mim, estava Fernando Lopes Graça e lembro o comentário que lhe ouvi, para a Francine Benoit: "Este rapaz vai dar que falar". O rapaz era o Chico Buarque.
E, já agora, quando é que Lopes Graça vai ser nossa coisa diária, na rádio e na televisão? E outros, Luís de Freitas Branco, Peixinho, Emanuel Nunes?
O Papa na Turquia
O Papa começa hoje a sua tão falada viagem à Turquia. Tenho dúvidas de que seja sensata. Começa por se dever em conta que não é uma visita pastoral, quando os católicos turcos são poucos milhares. Aliás, as visitas de um papa, mesmo que pastorais, têm sempre significado politico (veja-se a visita a Cuba, um país de tradição católica, ou a primeira visita de João Paulo II à Polónia).
Vou deixar de lado a questão, provavelmente ainda quente, do discurso de Ratisbona e pensar principalmente em termos políticos. O Papa fez há tempos declarações inequívocas contra a possível adesão turca à UE. Sabe-se que é tema muito quente da política turca. Como vai ser recebido pelas autoridades políticas? Uma provável diminuição, até protocolar, dessa recepção, não vai envergonhar o Vaticano? Por outro lado, a laicidade turca é um bom exemplo para o mundo islâmico. O Papa vai resistir a falar nisto? Ou melhor, pode não deixar de falar? Mas, com isto, que reacções vai causar, nos meios islâmicos turcos e em outros países islâmicos?
Por outro lado, leio que a razão principal da visita é o diálogo ecuménico com o patriarca ortodoxo. Mas o que tem a Turquia a ver com isto, sendo apenas pais de hospedagem de um chefe religioso de alguns milhares de crentes e que, talvez, nem se sente bem turco? Havia uma solução bem mais "diplomática": uma simples visita privada para participar com o Patriarca na festa de S. André e conversarem ao jantar sobre o ecumenismo cristão. Todos as diplomacias sabem fazer a gestão simbólica, em relação aos chefes de estado, entre visitas particulares, visitas politicas e visitas de estado.
P. S. - Para meu espanto leio hoje, depois de escrita esta nota, que afinal o Vaticano apoia a entrada da Turquia na UE. Declarações contraditórias do Vaticano, com poucos meses de distância, era coisa a que não estava habituado. Modernização da Igreja?
Vou deixar de lado a questão, provavelmente ainda quente, do discurso de Ratisbona e pensar principalmente em termos políticos. O Papa fez há tempos declarações inequívocas contra a possível adesão turca à UE. Sabe-se que é tema muito quente da política turca. Como vai ser recebido pelas autoridades políticas? Uma provável diminuição, até protocolar, dessa recepção, não vai envergonhar o Vaticano? Por outro lado, a laicidade turca é um bom exemplo para o mundo islâmico. O Papa vai resistir a falar nisto? Ou melhor, pode não deixar de falar? Mas, com isto, que reacções vai causar, nos meios islâmicos turcos e em outros países islâmicos?
Por outro lado, leio que a razão principal da visita é o diálogo ecuménico com o patriarca ortodoxo. Mas o que tem a Turquia a ver com isto, sendo apenas pais de hospedagem de um chefe religioso de alguns milhares de crentes e que, talvez, nem se sente bem turco? Havia uma solução bem mais "diplomática": uma simples visita privada para participar com o Patriarca na festa de S. André e conversarem ao jantar sobre o ecumenismo cristão. Todos as diplomacias sabem fazer a gestão simbólica, em relação aos chefes de estado, entre visitas particulares, visitas politicas e visitas de estado.
P. S. - Para meu espanto leio hoje, depois de escrita esta nota, que afinal o Vaticano apoia a entrada da Turquia na UE. Declarações contraditórias do Vaticano, com poucos meses de distância, era coisa a que não estava habituado. Modernização da Igreja?
27 novembro, 2006
O custo da Defesa
Nos últimos dias, tem sido muito comentado na blogosfera o peso que representa para o PIB a nossa despesa com a defesa, em comparação com outros países da UE. Sem repetir, vou tentar dar outras achegas.
Creio que a questão passa pela noção de defesa nacional, no quadro da UE. Não é credível a noção de defesa em relação a eventuais agressões indiscriminadas, mormente por parte de outros países comunitários, já vai longe Aljubarrota. Creio que a questão da defesa só se deve pôr hoje em termos da União. Assim, o peso dos custos da defesa de cada país membro seria ponderado em termos comparáveis aos das outras contribuições para a UE, com critérios de coesão.
É evidente que isto implica coisas bem difíceis: uma defesa comum e, logicamente, uma política externa comum. Com a moeda, são os maiores símbolos da soberania. A moeda nacional acabou e estamos a gostar. Não chegará o dia de virmos a gostar de ter uma política externa e um aparelho militar comuns? Nunca digo "desta água não beberei". E talvez prefira isto a outras formas ridículas de federalismo, desde as placas de matrícula dos automóveis ao rótulo das maçãs.
Outro aspecto é meramente interno, de desadequação às realidades militares actuais. Ainda temos hoje regimentos por todo o pais, como se não houvesse meios rápidos de projecção de tropas, ou baterias antiaéreas em tempos de disparo de mísseis por aviões a quilómetros de distância.
Fala-se também do excedente de quadros, muitas vezes pensando-se ainda na herança dos contingentes da guerra colonial. Não é verdade, basta fazer contas. A guerra colonial acabou há 32 anos. Mesmo os oficiais e sargentos então muito jovens estão hoje na casa dos sessenta e já passaram à reserva. O excesso de quadros foi posterior, por falta de uma política de adequação das Forças Armadas à situação pós-guerra. Em todo o caso, os excedentes não são só números, são homens e famílias. Que fazer com eles?
Nota final – O que escrevi não contradiz questões particulares de cada país, como sejam as relações diplomáticas especiais com os PALOP e encargos militares decorrentes da cooperação com esses países.
Creio que a questão passa pela noção de defesa nacional, no quadro da UE. Não é credível a noção de defesa em relação a eventuais agressões indiscriminadas, mormente por parte de outros países comunitários, já vai longe Aljubarrota. Creio que a questão da defesa só se deve pôr hoje em termos da União. Assim, o peso dos custos da defesa de cada país membro seria ponderado em termos comparáveis aos das outras contribuições para a UE, com critérios de coesão.
É evidente que isto implica coisas bem difíceis: uma defesa comum e, logicamente, uma política externa comum. Com a moeda, são os maiores símbolos da soberania. A moeda nacional acabou e estamos a gostar. Não chegará o dia de virmos a gostar de ter uma política externa e um aparelho militar comuns? Nunca digo "desta água não beberei". E talvez prefira isto a outras formas ridículas de federalismo, desde as placas de matrícula dos automóveis ao rótulo das maçãs.
Outro aspecto é meramente interno, de desadequação às realidades militares actuais. Ainda temos hoje regimentos por todo o pais, como se não houvesse meios rápidos de projecção de tropas, ou baterias antiaéreas em tempos de disparo de mísseis por aviões a quilómetros de distância.
Fala-se também do excedente de quadros, muitas vezes pensando-se ainda na herança dos contingentes da guerra colonial. Não é verdade, basta fazer contas. A guerra colonial acabou há 32 anos. Mesmo os oficiais e sargentos então muito jovens estão hoje na casa dos sessenta e já passaram à reserva. O excesso de quadros foi posterior, por falta de uma política de adequação das Forças Armadas à situação pós-guerra. Em todo o caso, os excedentes não são só números, são homens e famílias. Que fazer com eles?
Nota final – O que escrevi não contradiz questões particulares de cada país, como sejam as relações diplomáticas especiais com os PALOP e encargos militares decorrentes da cooperação com esses países.
26 novembro, 2006
Do jornal de hoje (I)
Dá-me satisfação ao ego e à auto-imagem de pessoa isenta concordar, de vez em quando, com pessoas com quem habitualmente não concordo, como António Barreto. Hoje, escreve sobre os rankings das escolas e vale a pena começar por algumas transcrições, sem necessidade de comentários.
Finalmente, passagem para a educação superior. Com uma cultura de avaliação já consolidada, critica os rankings, porque a avaliação é essencialmente qualitativa. Isto é possível em relação a umas dúzias de instituições, mas é-o em relação a centenas ou milhares de escolas? No entanto, há um aspecto da avaliação em que a educação superior está em atraso, em relação ao novo ECD: a avaliação individual dos professores.
As críticas dirigidas a esta forma de avaliação e informação são, em maioria, verdadeiras. Os rankings não explicam as causas das situações verificadas. Não têm em linha de conta os contextos sociais e geográficos das escolas. Passam ao lado de várias realidades, como sejam os números reais de alunos e de candidatos a exames. São indiferentes a certo tipo de manipulações que se podem fazer, como seja incluir ou excluir certo tipo de alunos (adultos, repetentes, trabalhadores) e de cursos (nocturnos, profissionalizantes), o que pode alterar radicalmente o lugar de uma escola. Não consideram as situações reais de vida de uma escola e de uma comunidade, como sejam as actividades económicas, as condições de exercício dos docentes (nomeadamente a estabilidade, a experiência e a residência) e as características dos equipamentos e dos edifícios. Tudo isso é verdade. Mas nada disso retira definitivamente valor a estas classificações. Se não se lhes pedir demasiado e se não se considerar que são a última palavra da avaliação, são elementos de conhecimento insubstituíveis.Destaco um parágrafo, também sem necessidade de comentários, porque estou em inteiro acordo:
(…)
Há outras críticas bem mais risíveis e que quase não merecem ser consideradas. Por exemplo, aquelas que referem as vaidades e os traumas criados em consequência da publicação. As escolas bem classificadas ficariam arrogantes, enquanto as do fundo da tabela ficariam deprimidas e sem energia para recuperar. Também há os que dizem que a educação é um processo social delicado e sério de mais para que se façam classificações ou se provoque a concorrência. Acrescentam que a competição é negativa e prejudicial à boa pedagogia.
(…)
Aquando da publicação dos rankings, a grande excitação que aflige jornalistas e leitores diz respeito à comparação entre escolas públicas e privadas. Estas últimas ganham quase sempre, o que provoca imediatamente umas reflexões vencedoras dos respectivos defensores e umas azedas réplicas dos seus adversários. Também neste domínio os rankings não são de grande utilidade. Na verdade, a posição relativa das públicas e das privadas está falseada à partida. O recrutamento de docentes e de alunos dos dois tipos de escolas é desigual desde a origem. Natural será que os resultados traduzam essa desigualdade fundamental. Ora, os rankings são indiferentes a essa desigualdade. De qualquer modo, convém notar que, no conjunto, as diferenças de médias entre todas as públicas e todas as privadas não traduzem uma vantagem esmagadora: são mínimas.
Mas o que é verdadeiramente interessante na publicação destas classificações são outras informações menos "picantes", mas bem mais reveladoras do estado da nossa educação. As médias nacionais dos exames das cerca de 600 escolas secundárias são certidões de fiasco e de desastre insubstituíveis. Com efeito, a média nacional das duas provas de Matemática, em todas escolas, é de 6,8 para uma prova e de 8,1 para outra. Quer dizer: 90 por cento das escolas exibem notas inferiores a 10, isto é, chumbam! Em Química, a média situa-se entre 7,3 e 8,8. Em Português, entre 9,5 e 11,8. Em Física, entre 8,5 e 8,7. Em Biologia, 11. Em História, entre 8,4 e 9,4.Ainda outra judiciosa observação:
Outra observação importante é a das diferenças entre as classificações internas atribuídas pelos professores aos seus alunos (um misto de testes e de avaliação contínua) e as conseguidas nos exames nacionais. Com raras excepções, as notas internas são sempre muito mais elevadas do que as dos exames. Em média de escola e por disciplina, as diferenças chegam a atingir 5 e 6 pontos numa escala de 20. Há mesmo casos em que a diferença pode chegar aos 10 valores. Por outras palavras, alunos que obtêm notas dos seus professores de 10 a 14 ficam-se, nos exames nacionais, pelos 5 a 9!Os números são indiscutíveis, mas não as causas. O que está mal, a avaliação contínua ou a avaliação final pelos exames nacionais, ou ambas? Não estou em condições de a discutir, mas estou certo de que é matéria que merece estudo sério. Estão em jogo o futuro de muitos jovens, a qualidade do acesso à educação superior, a garantia de qualificação dos nossos quadros aproveitando potencialidades reais e não formais.
Finalmente, passagem para a educação superior. Com uma cultura de avaliação já consolidada, critica os rankings, porque a avaliação é essencialmente qualitativa. Isto é possível em relação a umas dúzias de instituições, mas é-o em relação a centenas ou milhares de escolas? No entanto, há um aspecto da avaliação em que a educação superior está em atraso, em relação ao novo ECD: a avaliação individual dos professores.
Do jornal de hoje (I)
Assumi como regra basear este blogue na entrada de sábado. Provavelmente, errei. O jornal de domingo, a minha leitura diária do Público, dá-me sempre sobejas razões para notas. Uma delas é a crónica de Frei Bento Domingues. Coisa estranha, um não católico que nunca deixa de a ler! É que nada do que é humano me é estranho e a religião é componente essencial da nossa cultura, para além de não poder esquecer-me do que ela foi de importante na minha construção-reconstrução da personalidade.
A sua crónica semanal permite-me manter essa ligação, hoje não estrutural e meramente cultural, sem o masoquismo de ler alarvidades de dogmáticos e integralistas. Fossem assim todos os católicos (por isto, a sua leitura é sempre uma homenagem aos meus pais e a muitas discussões de respeito mútuo que tínhamos). Hoje, aborda uma coisa em que nunca tinha pensado, Cristo Rei. O que é isto, rei de quê? Vale a pena ler o que pensa Fr. Bento Domingues.
A sua crónica semanal permite-me manter essa ligação, hoje não estrutural e meramente cultural, sem o masoquismo de ler alarvidades de dogmáticos e integralistas. Fossem assim todos os católicos (por isto, a sua leitura é sempre uma homenagem aos meus pais e a muitas discussões de respeito mútuo que tínhamos). Hoje, aborda uma coisa em que nunca tinha pensado, Cristo Rei. O que é isto, rei de quê? Vale a pena ler o que pensa Fr. Bento Domingues.
25 novembro, 2006
O caso Luísa Mesquita
Depois de um caso recente semelhante, o do presidente da Câmara de Setúbal, chegou agora a vez de Luísa Mesquita (LM), deputada muito conhecida do PCP e sua voz mais activa na educação. Foi solicitada a renunciar ao mandato, recusou, foi despromovida, por quebra da confiança política. No entanto, parece-me haver uma diferença importante. No primeiro caso, foi a quebra da confiança política que levou à demissão, agora essa quebra resulta da recusa da deputada em renunciar ao mandato, a única forma de permitir a sua substituição. Como não gosto de processos de intenções, vou aceitar que a única razão do PCP era, como afirmado, o rejuvenescimento do grupo parlamentar. Diferença ainda está no facto de, ao contrário de deputado, o cargo de presidente de câmara ser muito personalizado, muitas vezes decidindo isso a eleição.
Como aconteceu no caso de Setúbal, adivinho que o PCP vai ser criticado pela maioria dos comentadores. Sendo eu muito critico do PCP, este caso, todavia, merece-me muita reflexão. Por facilidade de exposição, começo por me pôr no papel do PCP. LM foi eleita numa lista partidária, numas eleições em que os únicos programas são os programas centrais de cada partido. A esmagadora maioria dos eleitores põe a cruz no quadrado identificador do partido em que vota e desconhece os candidatos. A prática parlamentar consolidada é a de disciplina partidária, com raras excepções de voto contra a decisão do partido ou de concessão de liberdade de voto. Um partido, na lógica do sistema, tem o direito de reajustar o seu grupo parlamentar (todos fazem rotações por motivos da agenda política do momento e dos temas em discussão). Não digo que tudo isto seja indiscutível, apenas que merece reflexão. E também não digam que estou de acordo antes de lerem todo este texto.
Saliento outro aspecto, de tipo pessoal. Como é sabido, os deputados do PCP (só do PCP?) comprometem-se a colocar o lugar à disposição sempre que o partido entenda que isso é politicamente necessário. LM tê-lo-á feito, mas agora não aceitou cumprir o compromisso. É questão de honra pessoal, não vou discutir. Também não me parece admissível que LM traga para esta discussão a sua amargura e sensação de ingratidão face à decisão partidária. Tem todo o direito de o sentir, quem não se sente não é filho de boa gente, mas não deve misturar isto com a questão política. A menos que tire daí consequências politicas em relação à sua militância, mas, então, a renúncia ficaria mais premente.
Questão diferente é a legitimidade ética de tal declaração, exigida pelo PCP aos seus candidatos. Tudo isto me leva a apoiar os muitos e muitos que consideram que é necessário rever a lógica do nosso sistema parlamentar, o seu funcionamento e o processo eleitoral.
Qual o papel dos partidos? Ninguém o nega, mas parece haver alguma tendência para o sacralizar em termos oitocentistas, de correntes organizadas de opinião política. Alguns ainda serão partidos com forte marca ideológica, mas a tendência é para a sua transformação em aparelhos de conquista e distribuição tribal do poder. Nestes termos, fica inquinada a teorização da relação eleitor-eleito. Na prática, quem é eleito é o partido. Cinicamente, diria que o deputado é um empregado como qualquer outro, subordinado ao poder do patrão.
Parece-me evidente que há que valorizar a responsabilidade e qualidade individuais dos deputados. Não podem ser apenas pessoas ao serviço exclusivo do interesse do partido. A questão de um compromisso entre a uninominalidade e a proporcionalidade parece-me mais importante colocada nestes termos do que em questões práticas de maior facilidade de contacto entre o eleitor e o eleito. Algum componente de uninominalidade vai exigir aos partidos maior cuidado na selecção dos candidates.
Por isto, simpatizo com uma regra de excepção para os eleitos nominalmente, a impossibilidade da sua substituição. A sua renúncia ou impedimento obrigaria a eleição intercalar, coisa não muito difícil em círculos uninominais. Também para responsabilização dos partidos na escolha dos seus candidatos, creio que declarações como as que o PCP pede aos seus deputados deviam ser consideradas como ilegais. Ao apresentar a candidatura de um deputado, o partido não pode estar a usá-lo como instrumento politico, tem de respeitar a pessoa (mas também esta tem de mostrar que merece esse respeito). No entanto, pelo que disse atrás, creio que no caso limite de uma cisão colectiva ou de uma desvinculação individual, é questão de honra os deputados renunciarem, porque, no actual sistema, perdem legitimidade política. Ou então, e é esta a minha conclusão, reveja-se o sistema, da sua filosofia à sua prática.
Finalmente, uma declaração patética de LM: "disseram que em Setembro devia regressar à minha vida profissional e académica, ou seja, ao lugar de professora do ensino secundário que ocupava antes de suspender a actividade, em 1995. Mas não é aos 57 anos que se regressa à carreira académica". Não sabia isto quando se candidatou? A sua decisão foi leviana e irresponsável? Ou estava a contar com a reforma, no fim do mandato? Não se pode ter o bolo e comê-lo.
Como aconteceu no caso de Setúbal, adivinho que o PCP vai ser criticado pela maioria dos comentadores. Sendo eu muito critico do PCP, este caso, todavia, merece-me muita reflexão. Por facilidade de exposição, começo por me pôr no papel do PCP. LM foi eleita numa lista partidária, numas eleições em que os únicos programas são os programas centrais de cada partido. A esmagadora maioria dos eleitores põe a cruz no quadrado identificador do partido em que vota e desconhece os candidatos. A prática parlamentar consolidada é a de disciplina partidária, com raras excepções de voto contra a decisão do partido ou de concessão de liberdade de voto. Um partido, na lógica do sistema, tem o direito de reajustar o seu grupo parlamentar (todos fazem rotações por motivos da agenda política do momento e dos temas em discussão). Não digo que tudo isto seja indiscutível, apenas que merece reflexão. E também não digam que estou de acordo antes de lerem todo este texto.
Saliento outro aspecto, de tipo pessoal. Como é sabido, os deputados do PCP (só do PCP?) comprometem-se a colocar o lugar à disposição sempre que o partido entenda que isso é politicamente necessário. LM tê-lo-á feito, mas agora não aceitou cumprir o compromisso. É questão de honra pessoal, não vou discutir. Também não me parece admissível que LM traga para esta discussão a sua amargura e sensação de ingratidão face à decisão partidária. Tem todo o direito de o sentir, quem não se sente não é filho de boa gente, mas não deve misturar isto com a questão política. A menos que tire daí consequências politicas em relação à sua militância, mas, então, a renúncia ficaria mais premente.
Questão diferente é a legitimidade ética de tal declaração, exigida pelo PCP aos seus candidatos. Tudo isto me leva a apoiar os muitos e muitos que consideram que é necessário rever a lógica do nosso sistema parlamentar, o seu funcionamento e o processo eleitoral.
Qual o papel dos partidos? Ninguém o nega, mas parece haver alguma tendência para o sacralizar em termos oitocentistas, de correntes organizadas de opinião política. Alguns ainda serão partidos com forte marca ideológica, mas a tendência é para a sua transformação em aparelhos de conquista e distribuição tribal do poder. Nestes termos, fica inquinada a teorização da relação eleitor-eleito. Na prática, quem é eleito é o partido. Cinicamente, diria que o deputado é um empregado como qualquer outro, subordinado ao poder do patrão.
Parece-me evidente que há que valorizar a responsabilidade e qualidade individuais dos deputados. Não podem ser apenas pessoas ao serviço exclusivo do interesse do partido. A questão de um compromisso entre a uninominalidade e a proporcionalidade parece-me mais importante colocada nestes termos do que em questões práticas de maior facilidade de contacto entre o eleitor e o eleito. Algum componente de uninominalidade vai exigir aos partidos maior cuidado na selecção dos candidates.
Por isto, simpatizo com uma regra de excepção para os eleitos nominalmente, a impossibilidade da sua substituição. A sua renúncia ou impedimento obrigaria a eleição intercalar, coisa não muito difícil em círculos uninominais. Também para responsabilização dos partidos na escolha dos seus candidatos, creio que declarações como as que o PCP pede aos seus deputados deviam ser consideradas como ilegais. Ao apresentar a candidatura de um deputado, o partido não pode estar a usá-lo como instrumento politico, tem de respeitar a pessoa (mas também esta tem de mostrar que merece esse respeito). No entanto, pelo que disse atrás, creio que no caso limite de uma cisão colectiva ou de uma desvinculação individual, é questão de honra os deputados renunciarem, porque, no actual sistema, perdem legitimidade política. Ou então, e é esta a minha conclusão, reveja-se o sistema, da sua filosofia à sua prática.
Finalmente, uma declaração patética de LM: "disseram que em Setembro devia regressar à minha vida profissional e académica, ou seja, ao lugar de professora do ensino secundário que ocupava antes de suspender a actividade, em 1995. Mas não é aos 57 anos que se regressa à carreira académica". Não sabia isto quando se candidatou? A sua decisão foi leviana e irresponsável? Ou estava a contar com a reforma, no fim do mandato? Não se pode ter o bolo e comê-lo.
24 novembro, 2006
No DR
Diário da República de hoje: Resolução da Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira n.º 20/2006/M. Região Autónoma da Madeira - Assembleia Legislativa. Resolve solicitar ao Presidente da República que exerça os seus poderes constitucionais de veto e de fiscalização da proposta da lei n.º 97/X, que aprova a Lei de Finanças das Regiões Autónomas.
Público, de hoje: a lei só vai ser votada pela AR na próxima 5ª feira. Teoricamente, até pode ser reprovada.
Precipitações jardinescas.
Público, de hoje: a lei só vai ser votada pela AR na próxima 5ª feira. Teoricamente, até pode ser reprovada.
Precipitações jardinescas.
22 novembro, 2006
Gente típica (III)
Homens que souberam escolher
Há pessoas que nascem fadadas para um destino permanente, por fortuna ou por carreira e que, sabe-se lá porquê, subvertem a subordinação ao destino. Aqui vão dois exemplos.
O leiteiro da minha casa
Já eu era adolescente quando, em Ponta Delgada, o Loreto começou a distribuir o leite industrial pasteurizado, em garrafas. Antes, imperava o leiteiro, rua a rua, casa a casa, sentado à ilharga da carroça de cavalo, embrulhado na camisola grossa de lã de S. Maria e com o seu típico barrete. Tão típico como o indispensável cão, atado ao eixo da carroça. A carroça vinha prenhe de latas de leiteiro, de onde se vendia o leite em medidas de canada.
Leiteiro, filho de gente pobre, rendeiro de um cerrado de pasto para meia dúzia de vacas. Excepção era o leiteiro da minha casa, o Sr. Teves, filho de família rica. Visita diária matinal, a dar grito da Mercês, criada-minha comadre, que isto nos Açores estas relações são mistura de dependência e de afectividade.:"Senhora, é o leiteiro!". Respondia a minha avó: "Mercês, não é o leiteiro, é o Sr. Teves", ao que o Sr. Teves retorquia "Rapariga, é mesmo o leiteiro, Sr. Teves foi coisa de que não tive culpa, leiteiro foi decisão minha".
O taberneiro catedrático
A minha avó materna prezava muito a riqueza familiar de um primo emérito académico, o Prof. Sousa Júnior, catedrático da Faculdade de Medicina do Porto e um infecciologista que entrou na história da medicina portuguesa. O meu pai ainda o conheceu, mas em situação magnificamente diferente.
Nos sessentas (minha idade, será que me dá também para a maluqueira?) deu-lhe uma pancada e reformou-se antecipadamente das láureas académicas. Regressou à Terceira e às terras de família, minha também, no Porto Martins, onde se produzia vinho de velhas quintas de família. Despiu a beca e uniformizou-se com camisa de linho rústico sem colarinho, suspensórios e chinelos de ourelo. Abriu uma taberna e gastou o resto da vida a vender vinho a copo de três, cavaqueando com campónios e pescadores. Há açoriano que não tenha um grão de loucura? São séculos de grande consanguinidade e a genética cobra o seu preço, para o melhor e para o pior.
Há tempos, um amigo comum propiciou-me o encontro com um primo meu distante, herdeiro directo de Sousa Júnior. É hoje um médico bem sucedido, carreira a sério, mas acabámos por ficar com a provocação mútua: será que ainda vamos fazer sociedade para abrir uma taberna no Porto Martins? Nesse momento, foi ocasião de riso. Daqui a uns anos, não digo que será só riso... Ainda por cima, o JAG e eu partilhamos outra paixão, bem açoriana, a da marinha. Taberna no Porto Martins com fotografias da Sagres e uns copos com velhos marinheiros? E em sociedade com o Luís Brum, quase familiar por via das "amigas" Maias, para bom apetrechamento de vinho dos Biscoitos?
Há pessoas que nascem fadadas para um destino permanente, por fortuna ou por carreira e que, sabe-se lá porquê, subvertem a subordinação ao destino. Aqui vão dois exemplos.
O leiteiro da minha casa
Já eu era adolescente quando, em Ponta Delgada, o Loreto começou a distribuir o leite industrial pasteurizado, em garrafas. Antes, imperava o leiteiro, rua a rua, casa a casa, sentado à ilharga da carroça de cavalo, embrulhado na camisola grossa de lã de S. Maria e com o seu típico barrete. Tão típico como o indispensável cão, atado ao eixo da carroça. A carroça vinha prenhe de latas de leiteiro, de onde se vendia o leite em medidas de canada.
Leiteiro, filho de gente pobre, rendeiro de um cerrado de pasto para meia dúzia de vacas. Excepção era o leiteiro da minha casa, o Sr. Teves, filho de família rica. Visita diária matinal, a dar grito da Mercês, criada-minha comadre, que isto nos Açores estas relações são mistura de dependência e de afectividade.:"Senhora, é o leiteiro!". Respondia a minha avó: "Mercês, não é o leiteiro, é o Sr. Teves", ao que o Sr. Teves retorquia "Rapariga, é mesmo o leiteiro, Sr. Teves foi coisa de que não tive culpa, leiteiro foi decisão minha".
O taberneiro catedrático
A minha avó materna prezava muito a riqueza familiar de um primo emérito académico, o Prof. Sousa Júnior, catedrático da Faculdade de Medicina do Porto e um infecciologista que entrou na história da medicina portuguesa. O meu pai ainda o conheceu, mas em situação magnificamente diferente.
Nos sessentas (minha idade, será que me dá também para a maluqueira?) deu-lhe uma pancada e reformou-se antecipadamente das láureas académicas. Regressou à Terceira e às terras de família, minha também, no Porto Martins, onde se produzia vinho de velhas quintas de família. Despiu a beca e uniformizou-se com camisa de linho rústico sem colarinho, suspensórios e chinelos de ourelo. Abriu uma taberna e gastou o resto da vida a vender vinho a copo de três, cavaqueando com campónios e pescadores. Há açoriano que não tenha um grão de loucura? São séculos de grande consanguinidade e a genética cobra o seu preço, para o melhor e para o pior.
Há tempos, um amigo comum propiciou-me o encontro com um primo meu distante, herdeiro directo de Sousa Júnior. É hoje um médico bem sucedido, carreira a sério, mas acabámos por ficar com a provocação mútua: será que ainda vamos fazer sociedade para abrir uma taberna no Porto Martins? Nesse momento, foi ocasião de riso. Daqui a uns anos, não digo que será só riso... Ainda por cima, o JAG e eu partilhamos outra paixão, bem açoriana, a da marinha. Taberna no Porto Martins com fotografias da Sagres e uns copos com velhos marinheiros? E em sociedade com o Luís Brum, quase familiar por via das "amigas" Maias, para bom apetrechamento de vinho dos Biscoitos?
20 novembro, 2006
O pânico dos privilegiados
Estamos em época de caça aos privilégios. Na dúvida reinante sobre se o governo é ou não de esquerda, a luta contra os privilégios parece-me ser sempre, em princípio, uma coisa estruturante da esquerda. Agora são os sistemas especiais e sectoriais de saúde, a ADSE, os SAMS, os jornalistas. Não tenho nada contra eles, eu que também tenho um seguro de saúde de família amplo, se forem um acréscimo ao SNS mas pago pelos que deles beneficiam, não por todos os contribuintes.
Não me venham é tentar justificá-los com argumentos primariamente emocionais e sem qualquer racionalidade, a enganar o pagode. O Sindicato dos Jornalistas afirma que "a CPAFJ faz parte do património dos jornalistas como um patamar de qualidade e de direitos, é um reconhecimento do Estado das especificidades da profissão e é também decisiva para as condições em que os jornalistas portugueses desempenham a sua profissão". Eu aceitaria isto do sindicato dos mineiros, dos pilotos da aviação, dos controladores aéreos, até dos enfermeiros e outros mais já agora, pessoal de laborstários de invstigação, um ambiente dos mais hostis). Mas dos jornalistas? Fico a saber que é profissão de desgaste, talvez pelos riscos para o colesterol de muitos almoços em procura da caxa. Especificidades da profissão? Expliquem lá isto. Vai mal o sindicalismo em Portugal. Em Portugal que, felizmente, está cada vez menos um pais de acéfalos. Cada vez mais o Zé Povinho começa a ser o barman do cartoon diário do Público. Não lhe comem as papas na cabeça.
Entretanto, os grandes privilegiados estão seguros e não entram em pânico, até se riem dos ataques à banca. Esta é que a questão essencial.
Não me venham é tentar justificá-los com argumentos primariamente emocionais e sem qualquer racionalidade, a enganar o pagode. O Sindicato dos Jornalistas afirma que "a CPAFJ faz parte do património dos jornalistas como um patamar de qualidade e de direitos, é um reconhecimento do Estado das especificidades da profissão e é também decisiva para as condições em que os jornalistas portugueses desempenham a sua profissão". Eu aceitaria isto do sindicato dos mineiros, dos pilotos da aviação, dos controladores aéreos, até dos enfermeiros e outros mais já agora, pessoal de laborstários de invstigação, um ambiente dos mais hostis). Mas dos jornalistas? Fico a saber que é profissão de desgaste, talvez pelos riscos para o colesterol de muitos almoços em procura da caxa. Especificidades da profissão? Expliquem lá isto. Vai mal o sindicalismo em Portugal. Em Portugal que, felizmente, está cada vez menos um pais de acéfalos. Cada vez mais o Zé Povinho começa a ser o barman do cartoon diário do Público. Não lhe comem as papas na cabeça.
Entretanto, os grandes privilegiados estão seguros e não entram em pânico, até se riem dos ataques à banca. Esta é que a questão essencial.
19 novembro, 2006
O meu jornal
Leitor desde o número um, tenho com o Público uma relação de amor-ódio. Com os meus vagares de semi-reformado, lei diariamente, online, o Guardian e o El Pais, frequentemente também o Times e o Le Monde. O Público é obrigatoriamente em papel. Muito podia criticar, mas hoje apetece-me dizer bem.
Ao domingo, não se pode perder a excelente página do provedor, Rui Araújo. Muito mais mensagens recebe ele, inclusivamente minhas, que não cabem no espaço apertado dessa página semanal. Posso testemunhar que todas as que recebe são respondidas privadamente com grande amabilidade e com o rigor das que lemos no jornal impresso.
A outra nota vai para um pequeno escrito mensal, infelizmente relegado para o Local: uma crónica escrita em mirandês, "Como quien bai de camino", por Amadeu Ferreira. Para além de sinal de valorização de uma muitas vezes esquecida diversidade linguística de Portugal (para quando uma crónica em barranquenho?), é uma leitura deliciosa. Aqui vai o primeiro parágrafo de hoje: "S'ampeçarmos a ber la stória dua lhéngua, de qualquiera lhéngua, çque eilha s'ampeçou a chocar i le acumpanharmos l crecer pula sue bida fuora, hemos de cuncluir que eilha stá siempre a recebir palabras doutras lhénguas i tamien a dar-le palabras a outras lhénguas. Assi bai demudando, ganhando nuobas quelores, agarrando nuobos caminos para cuntinar, hai giente que ben a tener cun eilha, hai giente que sal, siempre por arressaios an que mos perdemos. Mas quando nun cunseguimos mirar l tiempo puls beneiros que mos traírun até als dies d'hoije, cuidamos que las cousas siempre fúrun assi i damos cun nós a sacar cunclusiones al alrobés."
Ao domingo, não se pode perder a excelente página do provedor, Rui Araújo. Muito mais mensagens recebe ele, inclusivamente minhas, que não cabem no espaço apertado dessa página semanal. Posso testemunhar que todas as que recebe são respondidas privadamente com grande amabilidade e com o rigor das que lemos no jornal impresso.
A outra nota vai para um pequeno escrito mensal, infelizmente relegado para o Local: uma crónica escrita em mirandês, "Como quien bai de camino", por Amadeu Ferreira. Para além de sinal de valorização de uma muitas vezes esquecida diversidade linguística de Portugal (para quando uma crónica em barranquenho?), é uma leitura deliciosa. Aqui vai o primeiro parágrafo de hoje: "S'ampeçarmos a ber la stória dua lhéngua, de qualquiera lhéngua, çque eilha s'ampeçou a chocar i le acumpanharmos l crecer pula sue bida fuora, hemos de cuncluir que eilha stá siempre a recebir palabras doutras lhénguas i tamien a dar-le palabras a outras lhénguas. Assi bai demudando, ganhando nuobas quelores, agarrando nuobos caminos para cuntinar, hai giente que ben a tener cun eilha, hai giente que sal, siempre por arressaios an que mos perdemos. Mas quando nun cunseguimos mirar l tiempo puls beneiros que mos traírun até als dies d'hoije, cuidamos que las cousas siempre fúrun assi i damos cun nós a sacar cunclusiones al alrobés."
Notas soltas, da leitura dos jornais
Do Público.
1. Continua a publicidade ao livro de Santana Lopes. O homem é um elemento ainda vivo da galeria deliciosa das personagens políticas queirozianas. Só a Caras lhe devia fazer publicidade. Infelizmente, o meu jornal alinha.
2. André Freire responde a Vital Moreira, sobre se o PS é de esquerda. Com toda a estima que tenho, em regra, pelos escritos de vital Moreira, vou mais por André Freire. Vejam a minha entrada de ontem e a promessa de escrever no próximo sábado sobre este assunto.
3. Sempre a Madeira (e não pensem que eu, ilhéu, sou anti-autonomia, muito pelo contrário).
4. Morreu Sottomayor Cardia. Não sou dos que, nos obituários, omitem qualquer critica. Cardia tem muita coisa de excelente: a coragem intelectual e física (leia-se, resistência à tortura), a reflexão permanente e rigorosa, com reajustamento das suas posições políticas, a coragem da decisão contra as tendências gerais. Mas critico-lhe o sectarismo e intolerância, dos tempos em que o conheci, PCP e Seara Nova. Também as suas leis universitárias, reconvertido ao respeito pelas hierarquias, então medíocres.
5. O protocolo de Quioto, sobre o aquecimento global, vai ser reavaliado. Já o leram? O que há para reavaliar, senão a subordinação aos países desenvolvidos, a começar pelos EUA, que não o subscreveram?
E do Expresso.
6. Na Única, uma reportagem sobre o casal Annan. Reparei primeiro na mulher, que nunca tinha visto fotografada. Que beleza e elegância, a fazer adivinhar grande qualidade intelectual e de carácter. Vou ter saudades de Kofi Annan, esperando que o seu sucessor me ajude. África, nas décadas recentes, deu-nos dois grandes SENHORES: Nelson Mandela e Kofi Annan.
7. Um artigo pobrezinho, "Cinderela ou patinho feio", sobre Bolonha e o ensino superior privado, com o estafado cheque ao estudante. O seu autor é Artur Torres Pereira, presidente da Universidade Atlântica. Quais são as suas credenciais para tão responsável cargo? Filho de um professor universitário? Dirigente partidário, creio que na mó de baixo? Ex-presidente de um pequeno município de província? O que é que alguma vez mostrou de conhecimento da educação superior? Assim, as privadas não vão a parte nenhuma.
1. Continua a publicidade ao livro de Santana Lopes. O homem é um elemento ainda vivo da galeria deliciosa das personagens políticas queirozianas. Só a Caras lhe devia fazer publicidade. Infelizmente, o meu jornal alinha.
2. André Freire responde a Vital Moreira, sobre se o PS é de esquerda. Com toda a estima que tenho, em regra, pelos escritos de vital Moreira, vou mais por André Freire. Vejam a minha entrada de ontem e a promessa de escrever no próximo sábado sobre este assunto.
3. Sempre a Madeira (e não pensem que eu, ilhéu, sou anti-autonomia, muito pelo contrário).
O Governo Regional da Madeira adjudicou à Controlmedia, empresa propriedade de Jaime Ramos e administrada pelo seu filho, Jaime Filipe, ambos deputados do PSD, sendo o primeiro líder parlamentar e o segundo líder da JSD, a planificação da campanha promocional da Madeira como destino turístico junto do mercado continental. O contrato, orçado em 644 mil euros, tem a validade de dois anos e foi feito após concurso público ganho pela empresa do deputado. Um negócio que só é possível porque a Madeira se excluiu do regime de incompatibilidades em vigor no Continente e nos Açores, que impedem os detentores de cargos públicos de realizarem negócios com o Estado.Sem comentários.
4. Morreu Sottomayor Cardia. Não sou dos que, nos obituários, omitem qualquer critica. Cardia tem muita coisa de excelente: a coragem intelectual e física (leia-se, resistência à tortura), a reflexão permanente e rigorosa, com reajustamento das suas posições políticas, a coragem da decisão contra as tendências gerais. Mas critico-lhe o sectarismo e intolerância, dos tempos em que o conheci, PCP e Seara Nova. Também as suas leis universitárias, reconvertido ao respeito pelas hierarquias, então medíocres.
5. O protocolo de Quioto, sobre o aquecimento global, vai ser reavaliado. Já o leram? O que há para reavaliar, senão a subordinação aos países desenvolvidos, a começar pelos EUA, que não o subscreveram?
E do Expresso.
6. Na Única, uma reportagem sobre o casal Annan. Reparei primeiro na mulher, que nunca tinha visto fotografada. Que beleza e elegância, a fazer adivinhar grande qualidade intelectual e de carácter. Vou ter saudades de Kofi Annan, esperando que o seu sucessor me ajude. África, nas décadas recentes, deu-nos dois grandes SENHORES: Nelson Mandela e Kofi Annan.
7. Um artigo pobrezinho, "Cinderela ou patinho feio", sobre Bolonha e o ensino superior privado, com o estafado cheque ao estudante. O seu autor é Artur Torres Pereira, presidente da Universidade Atlântica. Quais são as suas credenciais para tão responsável cargo? Filho de um professor universitário? Dirigente partidário, creio que na mó de baixo? Ex-presidente de um pequeno município de província? O que é que alguma vez mostrou de conhecimento da educação superior? Assim, as privadas não vão a parte nenhuma.
18 novembro, 2006
Homónimos
Numa entrada e noutra do Incursões, Marcelo Correia Ribeiro refere um João Vasconcelos Costa (eu?!). Os que me conhecem, não fiquem perplexos. É o humor muito especial do Marcelo. Sobre esse humor, aliado a muita seriedade, escreverei brevemente, a propósito de um seu livro, provavelmente pouco conhecido, "A pedra no sapato, a pata na poça". Imperdível, em particular para a nossa geração de/dos 60. E leiam, estou certo de que vai valer a pena, o seu inevitável comentário à minha entrada anterior, sobre a esquerda.
O desconforto de se ser de esquerda
Creio que, até ao suspiro final, continuarei a dizer que sou de esquerda. É constitutivo, mas com desconforto crescente, por duas razões principais: O que é ser de esquerda? Como transpor isto para a prática de hoje, que mais não seja no grande momento do voto?
O que é a esquerda? Apetece-me começar por uma velha máxima: é de esquerda aquele que recusa dizer que, hoje, já não faz sentido a distinção entre a esquerda e a direita, em época do "fim da História". Claro que isto tem muito de blague e é pouco operacional.
Também há uma outra fórmula: no binómio liberdade-segurança, a esquerda privilegia a segurança, a direita a liberdade (principalmente económica, entenda-se). Esta fórmula, a meu ver, é a mais errada. Começa pela ambiguidade do termo segurança. Se o entendermos como segurança individual contra as adversidades do capitalismo selvagem, baseada na solidariedade social, muito bem. No entanto, nestes tempos, segurança está muito mais conotada com a protecção contra as ameaças (maxime, terrorismo) e neste sentido, a perspectiva securitária tem muito mais reflexos reais nas políticas conservadoras, incluindo Blair (à esquerda?). Por outro lado, em relação à solidariedade, há uma velha atitude caritativa que é apanágio de uma direita católica. A diferença essencial está no adjectivo "caritativa", coisa de superior para inferior, muito diferente da solidariedade de iguais.
Outra identificação tradicional foi entre esquerda e progressismo, entendido este de forma multidimensional: a crença optimista no processo histórico, no progresso humano não limitado ao aumento da riqueza, a valorização das novas ideias, o racionalismo e a cultura para todos, o pacifismo, o anticonfessionalismo, a solidariedade com os povos oprimidos. Esta visão tem a vantagem de não se crispar em sistemas ideológicos, como o marxismo-leninismo (note-se que, sem espaço para desenvolver este tema, distingo inteiramente o marxismo do marxismo-leninismo). Honestamente, há que reconhecer que estes valores, em maior ou menor grau, são hoje partilhados por gente que até se assume como de direita. Vou mesmo mais longe. Vejo sinais de, numa atitude defensiva, alguma esquerda diabolizar o progresso.
Lembro-me também de uma fórmula de Vital Moreira, há uns anos, que me agradou: a esquerda de hoje é a que ainda continua fiel ao lema da Revolução Francesa, "liberté, égalité, fraternité". Nessa altura, escrevi, modernizando-a, "liberdade, igualdade de oportunidades, solidariedade social". Com tristeza para toda a nossa geração, agora já se reduz a fórmula à mera preservação do estado social, coisa que me parece muito mais limitada. Tristes tempos!
Talvez a minha melhor abordagem pessoal seja a da memória da juventude. Porque é que fui de esquerda, no desabrochar dos vintes etários? A pergunta implica a vantagem de transferir o discurso da teoria, hoje nebulosa, para a prática. Com risco de parecer sectário, digo que, em 1960 e nas décadas anteriores, ser de esquerda, em Portugal, era ser comunista ou independente simpatizante e colaborante (não falo aqui das derivações posteriores, maoístas, que sempre rejeitei, mas que, em alguns casos, respeito, bem como dos grupos de católicos progressistas, pouco expressivos, embora importantes). Antifascistas houve muitos e muito respeitáveis, mas não posso considerar como de esquerda muitos democratas que rejeitavam qualquer aliança com o movimento popular ou que se recusavam a afirmar uma atitude anticolonial. Mais tarde, vem a ASP, embrião do PS. Aceito que de esquerda, mas sem uma visão de alternativa ao capitalismo.
Chegamos a uma pedra de toque. Pode-se ser de esquerda aceitando o capitalismo, como sistema económico? Nesses tempos, julgo que não se pode sequer colocar a questão, hoje é uma inevitabilidade prática. O modelo real de socialismo faliu, para não falar da hipocrisia da China actual (continua a ser socialista?). Muito antes da falência política, o "socialismo real" já tinha falido em três coisas essenciais: o défice democrático, a falência da utopia da construção do "homem novo" (veja-se o que é hoje a Rússia) e na economia, com uma visão burocrática e anti-científica de um sistema económico. Por este último factor, talvez mais do que pelos políticos e sociais, longamente acumulados, qualquer proposta da chamada "esquerda dogmática" enferma logo da falta de credibilidade, por falta de um modelo económico alternativo.
Talvez muita coisa pudesse ter sido diferente se tivessem vingado a autogestão jugoslava, a revolução húngara, a primavera de Praga. Infelizmente, a história nunca volta atrás. Fica isto apenas como consolo para quem, e foram bastantes, não esperou pelo estertor perestroiko para pôr em ordem a sua cabeça, no armário da ideologia e da política.
E estes, eu e muitos dilectos amigos, com que se defrontam hoje? Com a ordem capitalista, provavelmente por muitos anos, sem alternativas, com as regras do mercado, com a globalização, com as restrições do euro, e principalmente com a chantagem da poupança das empresas em relação ao esmiframento dos contribuintes trabalhadores, porque elas são as nossas queridas garantes da competitividade. Ironicamente, está-se a cumprir um velho princípio comunista, o colectivo antes do individual. Simplesmente, o colectivo é agora essa coisa vaga e contraditória que é o mundo das empresas.
Parece inegável que, hoje, a economia e as leis do mercado condicionam fortemente, senão totalmente, a liberdade de opção política. Como ainda li há dias, entende-se que controlar o défice, criar condições de competitividade na globalização, contribuir para a robustez do euro, não são políticas de esquerda ou de direita, são só boa governação. Por outro lado, há novas situações muito condicionantes, como a necessidade de preservação dos recursos escassos ou, por outro lado, a grande mudança demográfica, com grandes consequências para a siustentabilidade da segurança social e dos sistemas públicos de saúde. Realisticamente, aceito isto, em boa parte, mas é perigoso. Não aceito que a forma de fazer essa boa governação seja indiscutível. Se o for, congrega, como se está a ver em muitos lados, também cá, um albergue espanhol de apoios, em que, aí sim, se torna muito difícil distinguir esquerda e direita.
Com tudo isto, volto à tal minha fórmula de ser de esquerda, que me alivia o desconforto: liberdade, igualdade de oportunidades, solidariedade social. Como disse, parece que agora a solidariedade social é o último reduto definidor. Dou mais valor à igualdade de oportunidades. Acrescentaria também um aspecto importante, de atitude. Mesmo aceitando-se a inevitabilidade das constrições do nosso sistema económico, pode-se pactuar com as suas consequências ou até mesmo desejá-las. Isto é claramente uma atitude de direita. Pelo contrário, pode-se lutar pela limitação, a maior possível nas circunstâncias reais, das consequências sociais da generalizada visão neoliberal e da globalização. É ser-se de esquerda. Juntaria a independência de espírito e o respeito pela pluralidade de visões, sempre em debate, num quadro comum de valores essenciais. Também uma atitude profunda, não só de circunstância, de revolta e luta activa contra a pobreza, a exploração dos povos, o belicismo, o obscurantismo, a subjugação das mulheres, a doença no terceiro mundo, etc. (sem negar que há muita gente dita de direita que também partilha estas preocupações, mas sem que isto seja estruturante do pensamento de direita). Não é muito, mas é difícil.
Isto vai longo, desculpem-me, mas assunto tão sério não se compadece com "sound bites". Para a próxima, fica outra questão, agora bastante discutida: o governo Sócrates é de esquerda? E, já agora, ao inverso, o PCP e o BE não serão uma esquerda que se mata a si própria, por desajustamento à realidade? O que fica?
O que é a esquerda? Apetece-me começar por uma velha máxima: é de esquerda aquele que recusa dizer que, hoje, já não faz sentido a distinção entre a esquerda e a direita, em época do "fim da História". Claro que isto tem muito de blague e é pouco operacional.
Também há uma outra fórmula: no binómio liberdade-segurança, a esquerda privilegia a segurança, a direita a liberdade (principalmente económica, entenda-se). Esta fórmula, a meu ver, é a mais errada. Começa pela ambiguidade do termo segurança. Se o entendermos como segurança individual contra as adversidades do capitalismo selvagem, baseada na solidariedade social, muito bem. No entanto, nestes tempos, segurança está muito mais conotada com a protecção contra as ameaças (maxime, terrorismo) e neste sentido, a perspectiva securitária tem muito mais reflexos reais nas políticas conservadoras, incluindo Blair (à esquerda?). Por outro lado, em relação à solidariedade, há uma velha atitude caritativa que é apanágio de uma direita católica. A diferença essencial está no adjectivo "caritativa", coisa de superior para inferior, muito diferente da solidariedade de iguais.
Outra identificação tradicional foi entre esquerda e progressismo, entendido este de forma multidimensional: a crença optimista no processo histórico, no progresso humano não limitado ao aumento da riqueza, a valorização das novas ideias, o racionalismo e a cultura para todos, o pacifismo, o anticonfessionalismo, a solidariedade com os povos oprimidos. Esta visão tem a vantagem de não se crispar em sistemas ideológicos, como o marxismo-leninismo (note-se que, sem espaço para desenvolver este tema, distingo inteiramente o marxismo do marxismo-leninismo). Honestamente, há que reconhecer que estes valores, em maior ou menor grau, são hoje partilhados por gente que até se assume como de direita. Vou mesmo mais longe. Vejo sinais de, numa atitude defensiva, alguma esquerda diabolizar o progresso.
Lembro-me também de uma fórmula de Vital Moreira, há uns anos, que me agradou: a esquerda de hoje é a que ainda continua fiel ao lema da Revolução Francesa, "liberté, égalité, fraternité". Nessa altura, escrevi, modernizando-a, "liberdade, igualdade de oportunidades, solidariedade social". Com tristeza para toda a nossa geração, agora já se reduz a fórmula à mera preservação do estado social, coisa que me parece muito mais limitada. Tristes tempos!
Talvez a minha melhor abordagem pessoal seja a da memória da juventude. Porque é que fui de esquerda, no desabrochar dos vintes etários? A pergunta implica a vantagem de transferir o discurso da teoria, hoje nebulosa, para a prática. Com risco de parecer sectário, digo que, em 1960 e nas décadas anteriores, ser de esquerda, em Portugal, era ser comunista ou independente simpatizante e colaborante (não falo aqui das derivações posteriores, maoístas, que sempre rejeitei, mas que, em alguns casos, respeito, bem como dos grupos de católicos progressistas, pouco expressivos, embora importantes). Antifascistas houve muitos e muito respeitáveis, mas não posso considerar como de esquerda muitos democratas que rejeitavam qualquer aliança com o movimento popular ou que se recusavam a afirmar uma atitude anticolonial. Mais tarde, vem a ASP, embrião do PS. Aceito que de esquerda, mas sem uma visão de alternativa ao capitalismo.
Chegamos a uma pedra de toque. Pode-se ser de esquerda aceitando o capitalismo, como sistema económico? Nesses tempos, julgo que não se pode sequer colocar a questão, hoje é uma inevitabilidade prática. O modelo real de socialismo faliu, para não falar da hipocrisia da China actual (continua a ser socialista?). Muito antes da falência política, o "socialismo real" já tinha falido em três coisas essenciais: o défice democrático, a falência da utopia da construção do "homem novo" (veja-se o que é hoje a Rússia) e na economia, com uma visão burocrática e anti-científica de um sistema económico. Por este último factor, talvez mais do que pelos políticos e sociais, longamente acumulados, qualquer proposta da chamada "esquerda dogmática" enferma logo da falta de credibilidade, por falta de um modelo económico alternativo.
Talvez muita coisa pudesse ter sido diferente se tivessem vingado a autogestão jugoslava, a revolução húngara, a primavera de Praga. Infelizmente, a história nunca volta atrás. Fica isto apenas como consolo para quem, e foram bastantes, não esperou pelo estertor perestroiko para pôr em ordem a sua cabeça, no armário da ideologia e da política.
E estes, eu e muitos dilectos amigos, com que se defrontam hoje? Com a ordem capitalista, provavelmente por muitos anos, sem alternativas, com as regras do mercado, com a globalização, com as restrições do euro, e principalmente com a chantagem da poupança das empresas em relação ao esmiframento dos contribuintes trabalhadores, porque elas são as nossas queridas garantes da competitividade. Ironicamente, está-se a cumprir um velho princípio comunista, o colectivo antes do individual. Simplesmente, o colectivo é agora essa coisa vaga e contraditória que é o mundo das empresas.
Parece inegável que, hoje, a economia e as leis do mercado condicionam fortemente, senão totalmente, a liberdade de opção política. Como ainda li há dias, entende-se que controlar o défice, criar condições de competitividade na globalização, contribuir para a robustez do euro, não são políticas de esquerda ou de direita, são só boa governação. Por outro lado, há novas situações muito condicionantes, como a necessidade de preservação dos recursos escassos ou, por outro lado, a grande mudança demográfica, com grandes consequências para a siustentabilidade da segurança social e dos sistemas públicos de saúde. Realisticamente, aceito isto, em boa parte, mas é perigoso. Não aceito que a forma de fazer essa boa governação seja indiscutível. Se o for, congrega, como se está a ver em muitos lados, também cá, um albergue espanhol de apoios, em que, aí sim, se torna muito difícil distinguir esquerda e direita.
Com tudo isto, volto à tal minha fórmula de ser de esquerda, que me alivia o desconforto: liberdade, igualdade de oportunidades, solidariedade social. Como disse, parece que agora a solidariedade social é o último reduto definidor. Dou mais valor à igualdade de oportunidades. Acrescentaria também um aspecto importante, de atitude. Mesmo aceitando-se a inevitabilidade das constrições do nosso sistema económico, pode-se pactuar com as suas consequências ou até mesmo desejá-las. Isto é claramente uma atitude de direita. Pelo contrário, pode-se lutar pela limitação, a maior possível nas circunstâncias reais, das consequências sociais da generalizada visão neoliberal e da globalização. É ser-se de esquerda. Juntaria a independência de espírito e o respeito pela pluralidade de visões, sempre em debate, num quadro comum de valores essenciais. Também uma atitude profunda, não só de circunstância, de revolta e luta activa contra a pobreza, a exploração dos povos, o belicismo, o obscurantismo, a subjugação das mulheres, a doença no terceiro mundo, etc. (sem negar que há muita gente dita de direita que também partilha estas preocupações, mas sem que isto seja estruturante do pensamento de direita). Não é muito, mas é difícil.
Isto vai longo, desculpem-me, mas assunto tão sério não se compadece com "sound bites". Para a próxima, fica outra questão, agora bastante discutida: o governo Sócrates é de esquerda? E, já agora, ao inverso, o PCP e o BE não serão uma esquerda que se mata a si própria, por desajustamento à realidade? O que fica?
17 novembro, 2006
Mariano Gago subscreve Teixeira dos Santos?
Se virem a barra lateral, repararão que escrevo regularmente, no meu sítio, apontamentos sobre a educação superior. Creio que o de hoje tem interesse político mais amplo e aqui o reproduzo.
"Isto é à maneira do célebre poema de Brecht. Primeiro foram os funcionários públicos, a seguir os juízes, depois os militares e, com grande estrondo, os professores. Só faltavam os universitários.
Na discussão parlamentar do orçamento, o Ministro das Finanças acusou as universidades de má gestão, falta de rigor, desperdício. Não vou sair em luta cega em defesa das universidades, em geral. Como antigo dirigente universitário, sei que isto é verdade, em muitos casos, em relação às despesas de funcionamento: ignorância da economia de escala, má gestão de stocks, irracionalidade de procedimentos administrativos, falta de controlo dos gastos com energia e comunicações, contratos de externalização ("outsorcing") pouco exigentes, etc.
No entanto, isto é uma gota de água no actual problema orçamental. Ao que se diz, cerca de metade das universidades não terão orçamento suficiente para cobrir as despesas de pessoal. Neste caso, não há que falar em falta de rigor ou desperdício. São despesas fixas, com excepção de contratos a termo, avenças e contratos de prestação de serviços, pouco significativos nas universidades. Ainda por cima, o défice orçamental das universidades e dos politécnicos foi agravado consideravelmente pela decisão de última hora, fora da fórmula de financiamento, do desconto "patronal" de 7,5% para a CGA. No mínimo, por elementar lisura e cumprimento das regras do jogo, exigia-se o respectivo reforço orçamental. Nestas circunstâncias, é preciso ser-se "carola" para se querer ser reitor.
O "sound bite" do ministro é uma desonestidade intelectual e política, de cuja cobertura o MCTES não pode isentar-se. O MCTES não pode viver em situação esquizofrénica de duplicação de personalidades. Fique o Dr. Jekill da ciência, cujo mérito é largamento reconhecido, mas não o Mr. Hyde da educação superior.
O governo está a ter uma acção corajosa para o equilíbrio orçamental e para a redução de situações privilegiadas discutíveis, embora se esteja a penalizar muito mais o indivíduo do que a sagrada vaca empresa (a velha contradição trabalho-capital ainda tem muito que se lhe diga!). Mas o governo tem feito isto com vitimização de grupos ou entidades vulneráveis, face à opinião pública, com maior ou menor demagogia. Ganha o apoio de todos os que se sentem à margem de privilégios, mas um dia, à Brecht, estes acabarão por ver que algumas reformas governamentais já serão justificadas com os privilégios do Zé da esquina em relação ao sem abrigo da mesma esquina."
"Isto é à maneira do célebre poema de Brecht. Primeiro foram os funcionários públicos, a seguir os juízes, depois os militares e, com grande estrondo, os professores. Só faltavam os universitários.
Na discussão parlamentar do orçamento, o Ministro das Finanças acusou as universidades de má gestão, falta de rigor, desperdício. Não vou sair em luta cega em defesa das universidades, em geral. Como antigo dirigente universitário, sei que isto é verdade, em muitos casos, em relação às despesas de funcionamento: ignorância da economia de escala, má gestão de stocks, irracionalidade de procedimentos administrativos, falta de controlo dos gastos com energia e comunicações, contratos de externalização ("outsorcing") pouco exigentes, etc.
No entanto, isto é uma gota de água no actual problema orçamental. Ao que se diz, cerca de metade das universidades não terão orçamento suficiente para cobrir as despesas de pessoal. Neste caso, não há que falar em falta de rigor ou desperdício. São despesas fixas, com excepção de contratos a termo, avenças e contratos de prestação de serviços, pouco significativos nas universidades. Ainda por cima, o défice orçamental das universidades e dos politécnicos foi agravado consideravelmente pela decisão de última hora, fora da fórmula de financiamento, do desconto "patronal" de 7,5% para a CGA. No mínimo, por elementar lisura e cumprimento das regras do jogo, exigia-se o respectivo reforço orçamental. Nestas circunstâncias, é preciso ser-se "carola" para se querer ser reitor.
O "sound bite" do ministro é uma desonestidade intelectual e política, de cuja cobertura o MCTES não pode isentar-se. O MCTES não pode viver em situação esquizofrénica de duplicação de personalidades. Fique o Dr. Jekill da ciência, cujo mérito é largamento reconhecido, mas não o Mr. Hyde da educação superior.
O governo está a ter uma acção corajosa para o equilíbrio orçamental e para a redução de situações privilegiadas discutíveis, embora se esteja a penalizar muito mais o indivíduo do que a sagrada vaca empresa (a velha contradição trabalho-capital ainda tem muito que se lhe diga!). Mas o governo tem feito isto com vitimização de grupos ou entidades vulneráveis, face à opinião pública, com maior ou menor demagogia. Ganha o apoio de todos os que se sentem à margem de privilégios, mas um dia, à Brecht, estes acabarão por ver que algumas reformas governamentais já serão justificadas com os privilégios do Zé da esquina em relação ao sem abrigo da mesma esquina."
16 novembro, 2006
Notas breves
Suscitadas pela leitura do Público de hoje, leitura obrigatória – mas já não com o mesmo gosto da do Público dos tempos iniciais.
1. Ramalho Eanes doutorou-se pela Universidade de Navarra. Deve ser caso raro, um ex-presidente doutorar-se, já adiantado na casa dos sessenta, se já não entrado na dos setenta. Mas porquê em Navarra? À primeira vista, preferia um doutoramento em Portugal. No entanto, pergunto-me se seria possível uma tese com forte conteúdo politico, escrita por quem foi, ser apreciada em Portugal com total isenção académica.
2. O sultão de Omã, implicitamente, reconhece Israel, defendendo que "a coexistência pacífica entre nações pode gerar prosperidade para a humanidade". Palavras sensatas que, até agora, no mundo árabe, só fazem doutrina no Egipto e na Jordânia. A resolução do conflito israelo-palestiniano precisa disto, que também terá efeitos limitadores na atitude israelita, hoje fortalecida pela intolerância da maioria dos países árabes.
3. O Papa também manifesta a sua discordância com o uso do véu integral islâmico nas sociedades ocidentais. O caso começou, em Inglaterra, com uma professora, o que coloca o problema noutra esfera, não só a política. Não é admissível o uso desse véu, pedagogicamente. O ensino é comunicação plena e exigente, oralidade, expressão, atitude corporal. Como é possível ensinar-se e comunicar só com os olhos? A professora foi bem demitida, não digo que em termos políticos, mas em termos profissionais.
4. O Museu de Arte Antiga adquiriu um Ecce Homo de Frei Carlos, não sei por que valor. Parabéns. Em tempos de constrição orçamental, ainda vai havendo algum dinheiro para coisas destas. "Há mais vida para alem do orçamento".
5. Isabel II pronunciou o discurso do trono. Não sei se já alguma vez viram isto na televisão. Coroa na cabeça, discurso aos lordes, na respectiva câmara, todos ataviados. O deputados, os comuns, com o primeiro ministro à frente, batem à porta e pedem licença para ouvir, amontoando-se em pé à entrada da sala. A monarquia britânica pode render muito em receitas turísticas, mas não há dúvida de que é muito anacrónica.
6. Contra o exagero de cuidados médicos intempestivos, o Nufield Council of Bioethics, inglês, recomenda que não se prestem cuidados a prematuros com reduzidas probabilidades de sobrevivência. A minha família está comprometida com a minha firme vontade de não querer ser reanimado se tiver a pouca sorte de sofrer uma paragem cardíaca com alguns minutos de duração. Antes morto do que vegetativo.
1. Ramalho Eanes doutorou-se pela Universidade de Navarra. Deve ser caso raro, um ex-presidente doutorar-se, já adiantado na casa dos sessenta, se já não entrado na dos setenta. Mas porquê em Navarra? À primeira vista, preferia um doutoramento em Portugal. No entanto, pergunto-me se seria possível uma tese com forte conteúdo politico, escrita por quem foi, ser apreciada em Portugal com total isenção académica.
2. O sultão de Omã, implicitamente, reconhece Israel, defendendo que "a coexistência pacífica entre nações pode gerar prosperidade para a humanidade". Palavras sensatas que, até agora, no mundo árabe, só fazem doutrina no Egipto e na Jordânia. A resolução do conflito israelo-palestiniano precisa disto, que também terá efeitos limitadores na atitude israelita, hoje fortalecida pela intolerância da maioria dos países árabes.
3. O Papa também manifesta a sua discordância com o uso do véu integral islâmico nas sociedades ocidentais. O caso começou, em Inglaterra, com uma professora, o que coloca o problema noutra esfera, não só a política. Não é admissível o uso desse véu, pedagogicamente. O ensino é comunicação plena e exigente, oralidade, expressão, atitude corporal. Como é possível ensinar-se e comunicar só com os olhos? A professora foi bem demitida, não digo que em termos políticos, mas em termos profissionais.
4. O Museu de Arte Antiga adquiriu um Ecce Homo de Frei Carlos, não sei por que valor. Parabéns. Em tempos de constrição orçamental, ainda vai havendo algum dinheiro para coisas destas. "Há mais vida para alem do orçamento".
5. Isabel II pronunciou o discurso do trono. Não sei se já alguma vez viram isto na televisão. Coroa na cabeça, discurso aos lordes, na respectiva câmara, todos ataviados. O deputados, os comuns, com o primeiro ministro à frente, batem à porta e pedem licença para ouvir, amontoando-se em pé à entrada da sala. A monarquia britânica pode render muito em receitas turísticas, mas não há dúvida de que é muito anacrónica.
6. Contra o exagero de cuidados médicos intempestivos, o Nufield Council of Bioethics, inglês, recomenda que não se prestem cuidados a prematuros com reduzidas probabilidades de sobrevivência. A minha família está comprometida com a minha firme vontade de não querer ser reanimado se tiver a pouca sorte de sofrer uma paragem cardíaca com alguns minutos de duração. Antes morto do que vegetativo.
15 novembro, 2006
Incongruências?
Segundo notícia do Público, os deputados do PCP e do BE vão hoje votar contra a proposta de lei das finanças regionais. Podem fazer-me o favor de me explicarem porquê?
Já agora, merece transcrição, sem comentários, outra pequena nota do Público.
Já agora, merece transcrição, sem comentários, outra pequena nota do Público.
Assembleia da Madeira custa mais 70 por cento do que a dos AçoresE também a notícia de que uma prioridade orçamental do GRM vai ser a construção de um novo estádio para o Marítimo (80-100 milhões de euros) ...
O orçamento da Assembleia Legislativa da Madeira (ALM) para 2007, ontem aprovado pelo PSD e com a abstenção da oposição, prevê uma despesa global de 17,6 milhões de euros. Inferior em cerca de 60 por cento é o orçamento da sua congénere dos Açores, estimado em 10,2 milhões de euros. A ALM, cujos deputados não estão sujeitos ao regime nacional de incompatibilidades nem à legislação que pôs termo às subvenções vitalícias, dedica 46,7 por cento do total da verba orçamental à cobertura de despesas com pessoal (8,2 milhões de euros, incluindo vencimentos dos 68 deputados), 39,6 por cento às despesas com aquisição de bens e serviços correntes, 36,2 às transferências correntes e 3,2 por cento às despesas com a aquisição de bens de investimento. O parlamento açoriano, com 52 deputados e delegações fora da Horta, gasta 5,6 milhões de euros com pessoal. Ao apoio à actividade parlamentar destina 775 mil euros, um oitavo dos 6,2 milhões de euros relativos à subvenção anual atribuída pela assembleia madeirense aos grupos parlamentares e partidos.
Com regras de financiamento partidário distintas das que regem o apoio parlamentar nos Açores, a ALM transfere anualmente 3,6 milhões de euros para os cofres do PSD (com 44 deputados), 1,5 milhões de euros para o PS (antes de perder dois dos seus 19 deputados que, como independentes, recebem 90 mil euros), 160 mil euros para o CDS e PCP (com dois mandatos) e 80 mil euros para o BE (um representante). Nos Açores, o grupo parlamentar do PS (com 31 deputados) recebe cerca de 430 mil euros, o do PSD (19 eleitos) 263 mil euros e o CDS (um representante) 46 mil euros.
Gente típica (II)
Continuando com a minha lista interminável de gente típica que conheci, vem-me logo à memória o Teixeira. Quem não se lembra dele, de entre os coimbrões do meu tempo? Atarracado, um pouco vesgo, tresandando a vinho, ombreava em importância praxística com o dux e tinha direito a magníficos decretos em latim macarrónico, na vitrina do Primeiro de Janeiro, arte provavelmente já perdida.
Na última nota, falei de analfabetos que me maravilharam, a sério. O Teixeira também, mas a brincar. Era ardina, embora, "profissionalmente", os seus maiores proventos viessem de cravar os calouros, a quem tinha o direito de proteger do rapanço de cabelo. Entrada nossa no Mandarim, com direito a sentirmo-nos gente, passava por gorjeta ao Teixeira.
Analfabeto mas leitor ávido do Diário de Lisboa, que vendia – lembram-se? – a 50 centavos. Rodeado de malta, lia o jornal, com fartos comentários. "Olha, hoje a Académica ganhou por 2-1", "O malandro do Salazar bota discurso amanhã", etc. O pior era quando alguém se lembrava de lhe dar a ler o jornal de cabeça para baixo. Ele tinha uma habilidade fabulosa para, mesmo assim, conseguir "ler" as notícias.
À margem, porque o referi acima, vou falar do impagável latim macarrónico. É uma mistela de português com preposições latinas e declinações das palavras portuguesas. O seu sabor só pode ser apreendido por quem sabe latim. Julgam que não eu? Tive um avô latinista que me encheu de latim durante o liceu, bem uma ou duas horas por semana, alegando que, de outra forma, eu nunca poderia saber exprimir-me correctamente em português. Não dou por mal empregado.
O meu avô José da Costa tinha como maior amigo um grande poeta, injustamente esquecido, Armando Cortes-Rodrigues e correspondiam-se sempre em latim macarrónico. Aqui vai, como exemplo, um convite do meu quase avô Armando.
Na última nota, falei de analfabetos que me maravilharam, a sério. O Teixeira também, mas a brincar. Era ardina, embora, "profissionalmente", os seus maiores proventos viessem de cravar os calouros, a quem tinha o direito de proteger do rapanço de cabelo. Entrada nossa no Mandarim, com direito a sentirmo-nos gente, passava por gorjeta ao Teixeira.
Analfabeto mas leitor ávido do Diário de Lisboa, que vendia – lembram-se? – a 50 centavos. Rodeado de malta, lia o jornal, com fartos comentários. "Olha, hoje a Académica ganhou por 2-1", "O malandro do Salazar bota discurso amanhã", etc. O pior era quando alguém se lembrava de lhe dar a ler o jornal de cabeça para baixo. Ele tinha uma habilidade fabulosa para, mesmo assim, conseguir "ler" as notícias.
À margem, porque o referi acima, vou falar do impagável latim macarrónico. É uma mistela de português com preposições latinas e declinações das palavras portuguesas. O seu sabor só pode ser apreendido por quem sabe latim. Julgam que não eu? Tive um avô latinista que me encheu de latim durante o liceu, bem uma ou duas horas por semana, alegando que, de outra forma, eu nunca poderia saber exprimir-me correctamente em português. Não dou por mal empregado.
O meu avô José da Costa tinha como maior amigo um grande poeta, injustamente esquecido, Armando Cortes-Rodrigues e correspondiam-se sempre em latim macarrónico. Aqui vai, como exemplo, um convite do meu quase avô Armando.
Ad Josephum carissimum, salus et pax.Que delicia! Dou um doce a quem me mandar a versão portuguesa, excluindo, claro, os versados em latim.
Hodie festa Sancti Martini prandium opiparum manducare etiam bibere non potumus, quia dies cinema est.
Sed cras, feria quinta, cum sit etiam dies festivum patronis nostris amantissimi, automobilum stat ad portam domus tuae ad septimam horam, ut venias sine fatigatione, cum comoditate ac brevitate, celebrationem facere nobiscum, sicut noster est mor.
Sicut verbum tuum "Utique" ad portatorum, quia novi tibi licet fatigare et etiam cogitare ad responsam scribendum.
Dei te salutent.
Amplexum maximum tibi donno, amice carissime.
Armando
Subscrever:
Mensagens (Atom)