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sábado, 30 de abril de 2011

"TUDO É SISTÊMICO" - ENTREVISTA COM LEONARDO BOFF





"Os tempos atuais são dramáticos. Isso não representa ainda uma tragédia anunciada. Mas significa seguramente uma grande crise de civilização".

O comentário é do teólogo e filósofo Leonardo Boff em entrevista exclusiva a Ana D´Angelo do Brasil de Fato, 21-03- 2011.
Eis a entrevista.

Como escutar o grito da Terra em um sistema político-econômico surdo para o que não é veloz, lucrativo e produtivo?

Há uma confrontação total entre o sistema econômico vigente e o sistema-vida e o sistema-Terra. Aquele busca a produção cada vez maior em vista do consumo que exige a depredação da Terra e como consequência a produção de perversas desigualdades sociais. Estes visam o equilíbrio de todos os fatores para que a Terra possa manter sua capacidade de reposição dos recursos usados por nós e de integridade de sua natureza. O primeiro tem essa preocupação: quanto posso ganhar? O segundo: como posso produzir em equilíbrio com a natureza e preservando sua vitalidade? Enquanto essa equação não se resolver o grito da Terra nunca será ouvido. E a degradação continuará até um limite não mais suportável que se revela pelo aquecimento global. Aí a humanidade deve resolver: ou mudar ou ir desaparecendo.

A sustentabilidade tem sido usada por vários setores da sociedade para indicar falsas preocupações ambientais, produtos que se autodenominam verdes, empresas que se dizem responsáveis socialmente, mas não o são para com empregados, clientes etc. Frente ao consumo em escala gigantesca, o termo sustentabilidade ou a causa ambiental não estariam sendo absorvidos por um modo de produção que se mostrou fracassado e agressor da vida?

A sustentabilidade e o crescimento econômico obedecem a lógicas diferentes. A sustentabilidade pressupõe a interdependência de todos com todos, a cooperação e a coevolução de todos, respeitando cada ser por possuir valor intrínseco. O crescimento econômico é linear, pressupõe a dominação da natureza e o uso utilitarista dos seres que apenas tem sentido na medida em que se ordenam ao ser humano. A sustentabilidade representa um novo paradigma que se opõe ao paradigma de violência contra a natureza. Exige um novo acordo de sinergia, de respeito e de sentimento de pertença à natureza sendo a parte consciente e responsável dela. A utilização que se faz da sustentabilidade pode melhorar alguns aspectos da redução de gases de efeito estufa, mas não muda a lógica de pilhagem da natureza em vista da acumulação. A Terra será sempre vista como um baú de recursos, nunca como Gaia, como Grande Mãe, um superorganismo vivo que se autorregula de tal forma que sempre se faz apto a produzir e reproduzir vida.

Como cada um pode colaborar para a reversão da falência da forma de vida e produção que temos até hoje? Em entrevista por ocasião dos 70 anos do senhor, o senhor teria dito: “Nunca aceitei o mundo assim como está”.

A crise é global e por isso atinge a cada um. E cada um é convocado a dar a sua colaboração Uma gota de água caída do céu não significa nada. Mas milhões e milhões de gotas produzem um grande chuva e até uma tempestade. Devemos pensar em termos quânticos: tudo tem a ver com tudo em todos os momentos e circunstâncias. Tudo se encontra inter-retro-conectado. Então, o bem que pessoalmente faço não fica reduzido ao meu mundo. Entra no circuito das interdependências e pode deslanchar grandes mudanças. Se não posso mudar o mundo, sempre posso mudar esse pedaço de mundo que sou eu mesmo. E aí pode se encontrar a semente de uma grande mudança.

Me lembro ainda de um artigo do senhor em que propunha refundar a ética diante da crise mundial de valores. Que caminhos temos hoje neste sentido?

Todos os códigos éticos atuais provêm de culturas regionais. Cada cultura produz seus parâmetros éticos para poder criar a convivência mínima entre todos. Ocorre que hoje vivemos uma fase nova da Terra e da Humanidade, a fase planetária. Todos estamos juntos na mesma Casa Comum. Ninguém tem direito de impor seus valores particulares ao todo. Por isso deve-se refundar a ética a partir de algo básico, comum a todos, de forma que todos possam se identificar com aqueles valores e princípios. Eu vejo que o eixo se estrutura ao redor dos valores ligados à vida, à Humanidade e à Mãe Terra. Para mim cinco são os valores de base: o cuidado para com todo o ser; a compaixão para com todos os que sofrem na espécie humana e na natureza; a cooperação de todos com todos porque foi a cooperação que nos permitiu o salto da animalidade à humanidade; a corresponsabilidade por tudo o que existe e vive; devemos ter consciência das conseqüências de nossos atos, alguns dos quais podem ser letais para toda a espécie humana; um senso mínimo espiritual segundo o qual a vida tem sentido, o universo não é absurdo, a verdade sempre representa um valor e o amor é o laço que une todos os seres e traz felicidade à vida.

Um fórum chamado Geopolítica da Cultura, realizado em novembro de 2010 na Cinemateca, em São Paulo, partiu do pressuposto que as novas economias reunidas no Bric já emergiram e a elas caberá definir o novo papel no mundo que se conforma pós-crise. O senhor acredita nessa possibilidade de gestão autônoma e criativa dos ex-emergentes? O Fórum propôs ainda uma transformação da singularidade cultural brasileira em valor estratégico que beneficie o povo. Pouco depois do final do Fórum, vimos explodir o conflito do tráfico e milícias e polícia no Rio de Janeiro. Ou seja, no outro extremo, outra singularidade brasileira, a violência, tomou a cena. Gostaria que o senhor comentasse.

Os Brics são importantes porque, formando o Grande Sul, quebram a hegemonia do Norte e obrigam as potências econômicas e militaristas a ouvi-los. Na medida em seu peso se fizer sentir, podem definir certos rumos do curso da história atual. Mas em termos de paradigma eles são miméticos: imitam as lógicas de potências ocidentais, lógicas essas que levaram a Terra à atual crise. Elas não são alternativas. Antes, podem acelerar a gravidade da crise. Se a China e a Índia quiseram consumir como o Ocidente (e cada um desses países possui uma classe média de pelo menos de 300 milhões de pessoas) seguramente irão desestabilizar o processo produtivo da Terra, com reflexos imediatos na política mundial. Esta não terá suficientes recursos para atender às demandas desses novos consumidores. Já dizia Gandhi em 1950: “Se a Índia quiser ser como a Inglaterra, ela precisa de duas Terras. A Terra é suficiente para todos mas não o é para os consumistas”.

Quanto mais informadas as pessoas e desenvolvidas as cidades, vemos uma preocupação maior com a sustentabilidade, reciclagem, reuso, alimentação orgânica, preservação dos biomas, plantio de árvores. Entretanto, valores como a solidariedade e ações coletivas ainda encontram obstáculos em sociedades/cidades cada vez mais egoístas, inseguras (literalmente) e materialistas. O senhor concorda? Que caminhos enxerga para as grandes cidades e seus habitantes?

Eu acho que o problema todo se resume numa relação nova para com a natureza e a Terra. Devemos partir da constatação de que pertencemos à natureza, somos a parte consciente e amante da Terra e simultaneamente a parte desequilibradora e destruidora dela. Temos a mesma origem e teremos o mesmo destino. Então se impõe uma relação de sinergia, de respeito, de veneração, de produção do suficiente e do decente para nós e para toda a comunidade de vida que também precisa da biosfera. Se não refizermos a aliança natural para com a Terra e a natureza, poderemos ir ao encontro do pior. Possivelmente só iremos aprender e tomaremos decisões fundamentais quando grandes ameaças atingirem nosso destino e percebermos que não temos outra alternativa senão mudar: o modo de relacionamento para com todos os seres, as formas de produção e de consumo e os espaços de convivência pacífica e tolerante entre os mais diversos povos. Talvez dando espaço ao capital espiritual que não tem limites à diferença do capital material que é limitado, quer dizer, cultivando os valores da solidariedade, da convivência pacífica, do cuidado para com todas as coisas, da espiritualidade explícita como a meditação, a expressão artística e estética, o autoconhecimento e outras dimensões que formam o caráter exaurível e profundamente realizador do mundo espiritual, construiremos um outro caminho que nos leva a uma Terra da Boa Esperança (Ignacy Sachs) e a uma biocivilização.

O quão fundamental é a espiritualidade em tempos bicudos como o atual? Como manter a fé sem ilusões sobre a realidade humana?

Os tempos atuais são dramáticos. Isso não representa ainda uma tragédia anunciada. Mas significa seguramente uma grande crise de civilização. Dizem-nos os antropólogos que em tempos assim fervilham as religiões e se aprofundam os caminhos espirituais. Eles formam aquele campo da experiência humana onde se elaboram os grandes sonhos e utopias, conferindo sentido à vida e rasgando horizontes de esperança. Bem dizia Ernst Bloch: “onde há religião, há esperança”; “o verdadeiro gênese não está no começo, mas no fim”. Isso podemos verificar atualmente. A despeito do caráter fundamentalista de muitas expressões religiosas, há uma efervescência do religioso, do sagrado e do místico irrompendo em todas as partes e em todos os estratos sociais. Quer dizer, os seres humanos estão cansados de materialidade, de eficiência, de consumo e de racionalidade. O segredo da felicidade e a quietude do coração não se encontra nas ciências, nem na acumulação de poder, mas no cultivo da razão sensível e cordial, aquela dimensão do profundo humano onde medram os valores e vige o mundo das excelências. Daí nascem os sonhos e os valores que podem inspirar um novo ensaio civilizatório.

domingo, 27 de junho de 2010

ADÉLIA PRADO BUSCA A ESTÉTICA NO SAGRADO

Escritora mineira vê com tristeza pessoas "comendo umas às outras" pela vaga do morto na Academia de Letras




A escritora observa que textos canônicos nunca
 são escritos numa "linguagem comum"
Adélia Luzia Prado Freitas nasceu em Divinópolis (MG). Apresentada ao editor por Carlos Drummond de Andrade – que avaliou seus versos como "fenomenais" – teve seu primeiro livro, Bagagem, publicado em 1976. Em 1978 lançou O coração disparado, conquistando o Prêmio Jabuti, o principal prêmio literário do país.
Adélia Prado escreveu seis livros de poesia, entre eles Faca no Peito, em 1988, e Oráculos de maio, em 1999. Além disso, lançou seis obras em prosa, como Solte os cachorros, em 1979; e Cacos para um vitral, em 1989. Seu último livro é Filandras, lançado em 2001 pela editora Record.
A escritora mineira esteve em Uberaba a convite da livraria Alternativa Cultural, em parceria com a escola Criativa. De manhã fez uma passeata poética com os alunos da escola, para quem leu trechos de suas obras. À noite participou de um sarau no auditório da Faculdade de Medicina do Triângulo Mineiro, onde declamou alguns de seus poemas. Esta entrevista foi realizada na manhã de 11 de setembro, no café da Alternativa Cultural.

As leituras que fazia do evangelho na adolescência, que a senhora já chamou de "furor católico", eram vocação mística, ou na verdade um deslumbramento estético?
Adélia Prado: As duas coisas. No texto sagrado, no bíblico e no canônico – das celebrações etc – eu via uma beleza poética. Os textos da missa são textos poéticos, independente de ser religiosos. A função deles, vamos dizer, é uma revelação de uma verdade teológica, religiosa. Mas eles são poéticos, e só por isso eles guardam essas verdades: a verdade teológica nunca é vazada numa linguagem comum.
Então eu vi que o texto era muito poético, e aquilo me encantava duplamente: pela energia espiritual e pela beleza das palavras.

A senhora sempre se refere à poesia como uma experiência religiosa. Deus, para a poeta Adélia Prado, é uma realidade transcedental, ou é uma elaboração da cultura humana?
Adélia: Não, de jeito nenhum. Eu acho que Ele é também uma projeção humana. É um desejo infinito que nós temos de adoração, e de algo que nos suspende com o sentido absoluto. Nós somos finitos e relativos, e queremos sempre uma coisa absoluta: que esse café maravilhoso não acabe, que a minha paixão não acabe, que essa casa bonita permaneça. A gente tem sede de infinito e de permanência. Então, esse ser que assegura a permanência das coisas, é que eu chamo de Deus. É o absoluto.

Como poeta, registrar seus textos em livros, e garantir a posteridade de seus poemas, é também uma maneira de se sentir imortal?
Adélia: No sentido de que a poesia é melhor do que eu e é mais perene do que eu… mais perene não, ela é perene. Eu sou mortal, e ela não. Nesse sentido sim. Os "imortais" morrem mas a poesia fica. O que é imortal é a obra. Só por analogia é que se chama alguém de imortal, mas isso é uma bobagem.

Por falar nisso, o que acha da Academia Brasileira de Letras? Qual é o seu sentido nos dias de hoje?
Adélia: Eu não sei, porque a Academia acolhe pessoas que não são do meio literário. E ela é uma academia de letras! Quando eu vejo as pessoas se comendo umas às outras para ocupar a vaga do morto, eu acho aquilo uma tristeza, um sarcófago.

Pelo jeito, você não tem vontade de ser mais uma "imortal".
Adélia: Não dá o menor desejo de Academia não.

A senhora começou – de verdade! – a escrever poesia depois da morte de sua mãe, e passou a escrever "torrencialmente" depois da morte do pai. Há beleza na dor?
Adélia: Há sim, há sim. Todo ser é belo, já falava São Thomás de Aquino. Aquilo que é, é belo. A dor é bela sim. Para você ver, é tão bela que aqui em Minas Gerais se cultua mais a paixão de Cristo do que a ressurreição (risos). Em Minas somos todos quaresmais né, naquelas procissões de Ouro preto, e em Minas inteira. É a Paixão, a Semana Santa, Sexta-feira Santa, Procissão do Enterro. E a hora que chega na ressurreição a gente quase esquece. Há uma espécie de estética da dor. É quase como estetizar as favelas, a miséria. Você faz fotografias maravilhosas da pobreza, né? Então a dor é bonita sim.

Mas isso me parece um grande problema moral. Se conseguimos enxergar beleza na pobreza, começaríamos então a tolerá-la, ou mesmo desejar que a miséria se perpetue para saciar nossa sensibilidade estética?
Adélia: Há beleza e beleza. Por exemplo, quando Goya pinta aquele quadro O assassinato, é horrível: estão lá o condenado e os três soldados com os fuzis. Aquilo é horrível… mas é belo. Não significa que eu vou querer a pena de morte só para gozar aquela beleza. Não é isso. Mas não posso ser impedida também de ver beleza na forma como ele retrata o fuzilamento. É quase horrível falar, mas é verdade. Picasso pintando Guernica, figuras de monstros… na arte você admira a beleza.
É aquela história, detesto o pecado e amo o pecador. É por aí (risos).

Faço essa pergunta para todo escritor: a literatura diz mais sobre a realidade do que o jornalismo?
Adélia: Evidente! O jornalismo é factual, né? Fulano matou ciclano. O ladrão roubou não sei o quê na favela. Agora a arte, por vias e por um estatuto muito próprio dela, falando a mesma coisa, revela o que está por trás disso. Revela, desvela uma outra coisa que o simples fato jornalístico não chega lá. Daí que se você lê, por exemplo, a literatura de qualquer país, você conhece muito mais daquele povo do que se você for ler os relatos jornalísticos. Isso não tem dúvida. Apesar de que você é estudante de jornalismo… mas a gente precisa de jornalistas também. (risos)
Bondade sua…
Adélia: Precisa, é claro. É uma das formas, uma das. Agora, se for falar em forma mais completa, eu digo que é a literatura
.
O cotidiano de cidades pequenas normalmente é tido como monótono. Às vezes têm-se a impressão que só nas cidades grandes "as coisas acontecem". Mas sabemos que você adora morar em Divinópolis, sua cidade natal. É função da poesia reencantar o dia-a-dia para torná-lo mais interessante?
Adélia: Não, a literatura não tem essa função. Decorre dela esse encantamento. Eu não escrevo um livro para que as pessoas vejam como as coisas encantadoras. Não é isso não. É claro que quando você faz um poema bom, a pessoa fala: mas que coisa, como isso é bonito eu não percebia!
A literatura e a poesia é só expressiva, é igual flor no pé, cachoeira caindo, é um fenômeno natural. Então eu não posso manipular, nem dar uma intenção nisso não. A poesia escapa a essas manipulações.

Mas, enquanto seres culturais, nós não enxergamos melhor as coisas quando conseguimos nomeá-las?
Adélia: Claro. Nós somos animais simbólicos. Uma galinha come um milho e ela não precisa saber que milho é milho (risos), nem dar nome ao milho. Mas eu preciso saber: estou comendo arroz com feijão. Por causa da minha natureza simbólica eu preciso de significados. E nomear é justamente dar significado às coisas. Já está na Bíblia isso, né? Deus entregou a criação a Adão e falou: nomeie as coisas, dê nome. Eu criei para você agora dar nome. Isso é função humana.

Escritor se sente meio Deus quando cria um mundo imaginário?
Adélia: Nossa senhora!, ele se sente, às vezes, a última das criaturas. Porque ele é muito pior que o livro dele. É verdade. O dia que eu for igual a um livro meu, eu estou perdida, não dou conta de escrever mais nenhuma palavra. Eu sempre tenho que ser melhor do que eu mesma para ir atrás do livro. Deus nada, quê que é isso! (risos). Tadinho de nós.

Entrevista de André Azevedo da Fonseca

LINDOLF BELL




Entrevista concedida à Fundação Catarinense de Cultura.




FCC – Lindolf Bell, estamos na casa em que nasceste, em Timbó, e nossa primeira indagação é sobre tua infância- teus primeiros anos, teus pais, o que ficou deles no poeta.

LB – Eu acho que há uma linha bem clara em todos os meus poemas. Minha poesia, embora urbana, no fundo conserva elementos da vida agrária. Meus pais foram lavradores e tinham um sentimento de mundo que ficou em mim para sempre. Por exemplo: quando meu pai tocava, nos finais de tarde, o seu bandoneón, e exercia nisso a sua solidão e o seu sentimento, como uma forma de estar em contato consigo mesmo, esta é uma imagem que ficou em mim, é um som que ficou em mim. Como ficaram em mim os poemas que minha mãe, filha de russos brancos, dizia nas festas de aniversário, nas noites de Natal, nos dias de Páscoa, nos casamentos. Eram poemas que ela aprendeu com os pais. E isso é uma imagem para mim também, a imagem de alguém que não era só a minha mãe, era também uma guerreira, uma guerreira lírica, uma doce guerreira que tinha a coragem de se levantar e dizer poemas.

FCC – 0 filho dela, mais tarde...
LB – Pois é, muitos anos depois passei a fazer isso na Catequese Poética. Os poemas ditos por minha mãe eram uma imagem sonora, eles me passaram esse profundo arraigamento, essa profunda necessidade de preservar uma idéia de oralidade dentro do poema. Mesmo quando, nos anos 60, toda a poesia brasileira estava se vestindo com grafismos e possibilidades visuais, a minha idéia básica do poema sempre permaneceu esta : por mais gráfico que o poema seja e ainda que ele seja totalmente gráfico e ainda que você só o leia com os olhos, o som no poema é essencial. Mesmo quando você o lê em silêncio, há nele um som que só você percebe na sua leitura silenciosa

.FCC – 0 bandoneón de teu pai, os poemas recitados por tua mãe... que outros exemplos podes dar daquilo que persistiu significativamente no poeta?
LB – Todas as coisas que me rodeiam são raízes. A jabuticabeira que deve ter quase cem anos, a caramboleira, os baús, os móveis e todos os objetos antigos não são uma forma triste de memória mas uma afirmação de que, num crescimento espiritual, num crescimento humano não podemos jogar nada pela janela ou no lixo.Não podemos jogar fora as raízes – elas nos preservam e elas se preservam conosco, na memória ou dentro da terra, seja onde for, mas elas também nos projetam porque, à medida que elas se preservam na terra, elas crescem e fazem a gente crescer, como uma árvore. O homem é uma árvore que abriga amores, lembranças, outros seres, uma árvore que dá sombra e luz, e é pra isso que a gente nasceu, fundamentalmente. Isso eu aprendi, é claro, convivendo com meus pais e também com os vizinhos, que tinham maneiras semelhantes de viver e conviver, maneiras simples mas definitivas.

FCC – E como é que se manifestou teu interesse pela palavra escrita ?
LB – Bem, até onde posso me situar no tempo, quem despertou em mim o interesse pela palavra foi minha mãe. Ela era, com toda a sua simplicidade, uma fanática por leitura. Como éramos pobres e não tínhamos livros, e a cidade também era pobre e não tinha bibliotecas, o que líamos aqui em casa era a Bíblia. Fui alfabetizado em alemão e o primeiro livro que li foi a Bíblia. Durante muito tempo li também os calendários de farmácia. E havia, como falei antes, o interesse oral pelos poemas que minha mãe dizia. Suspeitando que teria necessariamente de existir um instrumento onde esses e outros poemas deviam estar, os livros despertaram minha curiosidade muito cedo. Tanto que, aos seis anos, eu estava alfabetizado em alemão e lia a Bíblia. Não entendia muita coisa mas, de alguma forma, percebia todo o fascínio contido nesse livro. Depois vieram as primeiras leituras no Grupo Escolar Polidoro Santiago.


 FCC – Alguma lembrança especial da primeira escolinha ?

LB – Lembro de uma coisa fascinante que havia então nas escolas primárias aos sábados: dizíamos poemas em homenagem à Bandeira. Os alunos e os professores se reuniam e sempre tinha alguém que dizia algum poema. Eu sempre dizia, tinha uma certa facilidade para decorar.

FCC – Tiveste, como se vê, um encontro bastante precoce com a poesia.
LB – Mais adiante, houve uma iniciação mais ampla com o prof. Gelindo Sebastião Buzzi, no Colégio Rui Barbosa : fui lendo os clássicos gregos e latinos, todos os poetas brasileiros coloniais, do Romantismo, da Inconfidência Mineira – aquilo enfim, que era a base até os anos 50, a chamada Poesia Brasileira. Porque até lá, até esses anos, não havia um livro de escola publica que trouxesse poemas de Drummond ou Bandeira. Mesmo com a Semana de Arte Moderna, não se publicavam poemas, eram só referências. Havia as famosas cartilhas, os livros de Português, sempre com um material e uma linguagem que iam, mais ou menos, até os anos de 1920. Depois, quando fui para o Exército, no Rio...

FCC – Pois é, foste para o Rio. 0 que representou esse passo na tua vida ?
LB – Foi em 1959. 0 Rio de Janeiro era a capital brasileira em todos os sentidos e maravilhosa de verdade. 0 Exército foi o caminho para chegar até ela. Enquanto servia, fiz o vestibular para Ciências Sociais. Um mundo incrível se abriu para mim: contato com as bibliotecas, lançamentos de livros, concertos, cinema, teatro, tudo estava lá. Comecei enfim a descobrir nomes da literatura universal, de repente percebi que não eram só as poetas bíblicos, nem os poetas românticos brasileiros, nem os poetas revolucionários, como Castro Alves. Aliás, acho que esse foi um poeta fascinante, um poeta que foi à praça, um poeta com uma postura pública. Descobri Rilke, que se tornou meu fascínio maior, descobri Eliot, Fernando Pessoa, Drummond. Conheci pessoalmente Drummond, Bandeira, Cecília Meireles, Cassiano Ricardo.

FCC – 0 que não deve ter sido importante para o jovem aspirante à carreira literária conhecer essa gente !
LB – Claro, a convivência não muda nossa natureza, mas pode enriquecer, abrir nossa natureza. A natureza é um leque a ser permanentemente aberto, desde que a gente permita, desde que a gente esteja disponível. Para chegar a essas pessoas havia também no meu caminho um caminho subterrâneo, invisível, subjacente. Tinha que ser assim, foi assim, está sendo assim.

FCC – Tua estréia em livro ocorreu em l952, com Os Póstumos e as Profecias. Pode-se considerar esse livro como uma síntese do teu período de formação ?
LB – Era um livro que estava pronto fazia dois anos. Surgiu em São Paulo o movimento dos Novíssimos, sob as asas protetoras do editor Massao Ohno. Deu certo e o livro não é apenas a síntese de um período de minha formação. Creio que nele se encontra o núcleo permanente do meu fazer poético.

FCC – Em l964, sai Os Ciclos e tem início o movimento de que foste a figura mais destacada, a Catequese Poética. Qual a origem do movimento ?
LB – Situo essa origem na Juramento à Bandeira, no fim do meu tempo de Exército. Com a tropa inteira presente, falei um poema. Foi um arrepio que ainda permanece, um grito que ainda vibra no ar. Depois disso, vieram os espetáculos de poesia em São Paulo, no Teatro de Arena, no Oficina, na Galeria Metrópole e a leitura de poemas no Viaduto do Chá – isso deu impulso e abertura nacional ao momento.

FCC – Quais as adesões que o movimento recebeu?
LB – Luiz Carlos Mattos, Iracy Gentilli, Rubens Jardim, Erico Max Muller, Reni Cardoso, Ronald de Carvalho foram os poetas mais assíduos. Aquilo cresceu na base do grito, do peito, da dedicação absoluta, através de leituras e recitais pelas praças, boates, estádios, portas de fabricas, universidades, clubes e todos os espaços alternativos, como escadarias e galerias das cidades.

FCC – A poesia em voz alta, a lição de tua mãe dando frutos na cidade grande... Que consequências teve, a teu ver, essa experiência?
LB – Os efeitos naquele momento foram revolucionários. A imagem do poeta modificou-se, ele aparecia frente a frente a um público desacostumado com a leitura da poesia, sem falar no consumo do poema oral. Tudo o que veio depois traz uma série de conseqüências da Catequese Poética. Até 1964, não havia poesia fora do livro, nem feiras de arte, nem concertos em praça pública, nem teatro de rua, todas essas manifestações culturais que antes só aconteciam em lugares consagrados e de acesso limitado.

FCC – Olhando tua bibliografia, encontramos uma experiência na prosa, Curta Primavera. Como é que foi?
LB – Foi um desafio. Há nesse livro toda uma atmosfera poética. É uma novela, com o mesmo acontecimento olhado de vários pontos de vista. Continua um caminho aberto.

FCC - E o teatro ? Fizeste, em São Paulo, um curso de Dramaturgia. Que atividade exerceste neste campo ?
LB - Fora os espetáculos de poesia, nos quais eu fazia meu próprio papel, a Dramaturgia me tem acenado com uma possibilidade dramática que continua no fundo do baú. São textos que amadurecem sem pressa. Tudo tem seu tempo e o teatro me fascina enquanto texto a ser feito.


FCC – Voltemos à poesia. As Annamárias, de 1971, marca um momento notável da tua lírica. Drummond referiu-se a essa obra com entusiasmo. Como ela nasceu ?

LB – Anna Maria Kieffer foi uma pessoa importante na minha vida. Quando deixamos de viver juntos, surgiu o livro. É uma forma de celebrar e homenagear uma grande mulher e o ato amoroso, necessariamente, não-durável.

FCC – De que modo acontece normalmente o poema em Lindolf Bell ?
LB – Acontece de vários modos. Fazer poemas é ter a capacidade de mostrar as muitas faces da alma. Eu acredito profundamente que o sentimento do mundo pode ser um estado permanente e é por essa razão que estou fazendo poemas o tempo todo. Eles acontecem em qualquer espaço e em qualquer momento. Posso estar aqui no sítio, como estamos agora ou trabalhando numa exposição de arte, ou viajando de avião ou de automóvel. Penso que o que provoca a necessidade de fazer o poema é o repentino contato com um horizonte invisível da alma do mundo. Quando a alma do mundo e a alma ao criador encontram um momento de sintonia a necessidade de fazer o poema acontece.

FCC – Os objetos, as criaturas, os seres humanos intermediam essa "alma invisível do mundo". Haveria uma dominante entre esses mediadores?
LB – 0 que eu sei é o que eu sinto. Eu sinto que pra você também ser um mediador, porque fazemos parte da grande natureza geral, e temos em nós uma parte dessa alma invisível que justamente nos coloca em contato com a grande alma invisível das coisas todas do mundo é preciso ter disponibilidade. Se você não esta disponível, você começa a ser rejeitado pela alma geral das coisas.

FCC – A mediação não será uma afinidade ?
LB – Sim. A afinidade que justamente está próxima da disponibilidade. Porque a grande alma do mundo está sempre disponível para as coisas acontecerem. Nós nos fechamos demais para essa lembrança de que as coisas são vivas no invisível também. Elas só podem se tornar visíveis, não importa a forma de criação, se encontrarem um instrumento disponível. Esse instrumento disponível algumas vezes pode ser o poeta.

FCC –Bell, falaste da tua ação no período da Catequese. Pelo que se percebe, tens agora uma atitude um pouco diferente, estás restringindo a tua participação publica, te voltando mais para a produção, cuidando mais da distribuição do teu trabalho, não é verdade?
LB – Há um principio muito semelhante em todas as esferas da natureza. 0 coração do homem faz parte dessa natureza e o que ele dispõe para ser um instrumento de comunicação faz parte dessa natureza e o que dele é um instrumento de criação também faz parte dessa natureza. E a natureza tem muitos tempos e todos eles são fundamentais.

FCC – É, já diz a Bíblia que...
LB – ... que há um tempo de plantar e um tempo de colher. E não temos sempre a mesma plantação nem a mesma colheita. Podemos ter coisas similares mas não serão as mesmas. Há que perceber, em tempo, se você plantou o suficiente um tipo de horizonte, um tipo de praça, um tipo de terra, um tipo de campo. Durante mais de 30 anos andei pelas ruas deste país, pelas escadarias, viadutos, estádios, portas de fábricas, escolas, colégios, boates, clubes e casas particulares – andei, enfim, onde eu achava que podia de alguma maneira ser ouvido e fazer com que as pessoas aprendessem a ouvir poesia. Eu fazia isso com muita intensidade mas essa intensidade ,de repente, pode ser um perigo na medida em que você se torna apenas um comunicador daquilo que já fez. Aí está justamente aquilo de que falamos antes, a grande natureza invisível.

FCC – Diante da qual precisa haver disponibilidade.
LB – É isso, para ser um criador você tem que ter disponibilidade. Eu percebi que estava na hora de conversar com meus botões e com meus próprios deuses, de permitir que eles novamente se achegassem, de deixar que a minha alma ficasse disponível. Estou com 51 anos e tenho uma obra que, a meu ver, tem seu peso certo, sua medida certa. Acredito que seja uma medida e um peso duradouros mas, para eu merecer essa durabilidade, não posso parar. Por isso, tenho restringido essa tarefa de andar tanto por tantos lugares a dizer sempre as mesmas coisas. Acredito também que esse trabalho da Catequese Poética tem influenciado muitas pessoas neste país. Muitas pessoas, depois do que a gente desenvolveu, fizeram e estão fazendo esse trabalho de alguma maneira. 0 que se sabe é que ele não existia antes, mas está existindo depois. Então, penso que os que estão fazendo tal trabalho, além de cumprirem uma missão pessoal, estão continuando um trabalho, esta é que é a verdade mesmo, muitas vezes fingindo que não sabiam da existência anterior desse trabalho. Às vezes, não sabendo de fato, e, às vezes, tendo a dignidade de dizer que sabiam.

FCC – Fala mais dessa tua decisão de um maior isolamento para te abrires melhor para a interioridade, a concepção.
LB – Para a concepção e para o meu material de trabalho. Afinal de contas, não é só sentimento do mundo. Se eu quero dizer o meu sentimento de mundo, tenho que saber o material com que trabalho. E o meu trabalho é a palavra e a palavra é o princípio das coisas. "No princípio, o verbo boiou sobre as águas", isso é absolutamente verdadeiro. Eu não posso desprezar, colocar de lado o material com que trabalho, uma vez que ele é tão rico, tão inesgotável. Se eu digo hoje a palavra amor de uma maneira, vou dizê-la amanhã com um outro timbre, porque a palavra é infinitamente rica, tudo subjaz na palavra, mesmo aquilo que a gente não suspeita. Quando menos se suspeita, descobre-se uma outra possibilidade. A palavra jamais se gasta. As pessoas é que se gastam. Os poetas é que são pobres, na maioria das vezes .

FCC – 0 cansaço do verbo não é do verbo?
LB – Não, é das pessoas que o usam ou mal usam.

FCC – Bell, o teu primeiro livro é de l962 e o mais recente, 0 Código das Águas, é de 1984. Qual a tua trajetória entre um e outro? Que mudanças aconteceram no teu modo de pensar e de criar o poema nesse meio tempo ?
LB – Acho que a base temática do meu primeiro livro é a mesma do último. Sempre tive a convicção de que nós, como a noite e o dia, somos feitos de circunstâncias, circunstâncias que nos envolvem no mundo exterior. Não podemos fugir disso. È a única maneira de estarmos no mundo. Então, no primeiro livro, o que posso dizer, e que fiz, por assim dizer os poemas da invisibilidade, tentei captar o que há de invisível nas coisas do mundo para torná-las visíveis, tácteis e audíveis através do verso. Mas muitas vezes não consegui fazer uma diferenciação entre a linguagem do poema e a do panfleto. Aliás, para tristeza minha, é o que acontece hoje, com muita freqüência. Pensei que as pessoas de um modo geral tivessem amadurecido nesse sentido. Há uma diferença entre o simples panfleto e a metamorfose das circunstâncias exteriores numa verdade poética. Eu vi como era transitória a idéia do panfleto dentro do poema. Se hoje, por exemplo, disser no aeroporto de Florianópolis o poema que fala nominalmente de Kruschev e Kennedy e que faz uma clara referência à guerra fria ao muro de Berlim etc., esse poema é um testemunho localizado num tempo e nesse tempo ele tinha uma certa eficiência como panfleto, como grito, mas não tem nenhuma consistência, nenhuma durabilidade como um poema que se pretende ser para sempre. Hoje, se eu falar do muro, ou depois, alguns anos depois, quando eu comecei a falar do muro ou das diferenças, era uma outra maneira de situar as palavras para que elas realmente se interligassem para permanecerem. Eu quero que elas permaneçam para sempre um objeto estético e tenham alguma coisa a dizer não em termos específicos de muro de Berlim mas em termos específicos de diferença ou de solidão ou de angústia de qualquer momento, em qualquer lugar. Eu acho que essa é uma diferença muito clara. Nas minhas primeiras publicações eu tinha poemas, por exemplo, que falavam das longas filas do feijão que havia em São Paulo em 63 e 64 – eles viraram um vazio panfletário, pois isso sai toda noite na TV, as pessoas falam sobre isso diariamente. E eu estava escrevendo um poema falando da mesma maneira como as pessoas falavam numa linguagem absolutamente circunstancial. Não sou contra as circunstâncias muito pelo contrario sou a favor de todas elas, mas se eu fizer do poema apenas um objeto circunstancial ele não será mais que um objeto circunstancial e passageiro e não é o que eu quero, nunca mais quis quando tomei consciência disso.

FCC – Falemos um pouquinho da leitura de poesia. Observa-se que nem todo mundo sabe ler poesia. Isso não devia estar lá na base, na escola?
LB – Devia. E a poesia não só não é bem lida pela grande maioria das pessoas como é muito malfeita pela grande maioria dos poetas. Sou de opinião que em vez de se ensinar as crianças a lerem poesia na escola ou se ensinar a poesia da maneira como é ensinada o que se devia fazer era uma grande classe de professores para que eles não deformem a idéia do poema e da poesia. Não saber ler um poema se prende de repente a uma absoluta falta de naturalidade, de domínio da própria naturalidade. A gente sabe que a natureza tem um ritmo e o poema, que é um objeto natural da palavra, tem um ritmo próprio. É preciso ensinar às pessoas que existe um ritmo em cada poema . Não se pode ler um poema de versos livres como se lê um soneto, por exemplo. Eu acho que se tem de partir daí, isso é básico, uma coisa que é primária mas é primeira. Da maneira como o poema está sendo ensinado, é preferível que não o seja pois é uma distorção total.

FCC – Deve ser ensinado como a arte em geral.
LB – Sim, como a arte em geral. Se você quiser extrapolar, é só...

FCC – Como a música, a dança...
LB – A música, a dança, as artes plásticas, o cinema, tudo.

FCC – A idéia de ritmo, a noção de harmonia, colocadas na infância, não se perdem jamais. Como tu mesmo lembraste – o bandoneón do teu pai, as rimas, a métrica dos poemas de tua mãe. Isso fica.
LB – Ficou no depósito, no armazém do tempo.

FCC – E orienta inconscientemente para a produção e também para a leitura.
LB – Para a leitura também, claro, porque ler é uma maneira de ouvir. Ouvir é uma forma de ler. A primeira leitura que a gente tem das coisas – pelo menos a que eu tive – é a audição.

FCC – Por falar em leitura, o que é que estás lendo hoje, Bell?
LB – Tenho um livro de cabeceira, a Bíblia. E leio sempre as Cartas a um Jovem Poeta, de Rilke. No momento, de coisa nova, leio 0 Pêndulo de Foucault. Acho que estou mais forte na produção que na leitura...

FCC – 0 que parece ser, mais cedo ou mais tarde, um imperativo da criação.
LB – Chega um momento na vida em que a gente tem que saber saltar sobre a própria sombra É um momento de dor absoluta porque é um momento de renascimento. Agora, isso deve acontecer muitas vezes a quem se propõe uma tarefa criativa, porque senão fica uma tarefa menor .Acho que ser criativo é você ter essa permanente disponibilidade. Eu tento ser permanente, estar disponível o mais tempo possível para meus deuses interiores e para meus fantasmas. Como disse, às vezes é uma coisa muito dolorida, muito cruel, muito solitária mas para você chegar ao caminho da estrela ou ao caminho da luz existem muitos caminhos. 0 caminho que eu descobri foi este, abdicar de muitas outras coisas e tentar achar sempre a luz no fim do túnel, porque há um túnel permanente, mas há também uma luz permanentemente.

FCC – Se alguém te perguntasse, com toda objetividade, que papel tem o poeta na sociedade humana nos dias de hoje, que responderias?
LB – Sempre me pergunto isso e acho que o papel do poeta é ser uma luz na sociedade. Para que servimos, para que escrevemos, para que produzimos a beleza? Creio que nossa função é preservar a beleza. E a beleza agui é a circunstância do homem e os sentimentos. Essa é a função do criador, do artista, do poeta. Que outra função teríamos? Porque o resto as pessoas estão fazendo, elas estão preocupadas com todo o resto. Mas alguém tem que manter viva a chama do sentimento, o leque de possibilidades do homem como uma proposta inteira dentro do universo. Essa é a nossa função. Não existe outra. De uma certa maneira, talvez sejamos assim os ecólogos da própria alma, porque o que verdadeiramente sustenta o homem é a sua alma, o que faz ele durar é o que ele tem a dizer de alguma maneira profundamente ligado às coisas do invisível. Aliás, vocês levantaram um ponto que eu nem achei que fosse um ponto tão importante antes que a gente o abordasse. Uma coisa muito triste que vejo em Santa Catarina é a falta de frequentamento ou de freqüência das pessoas entre si nas diversas áreas criativas. Vê-se muito pouca frequencia de artistas plásticos em concertos ou em lançamentos de livros, de músicos em exposições de artes plásticas, de poetas em exposições ou concertos etc. E vou dizer mais uma coisa: enquanto não acontecer entre nós essa freqüência, jamais vamos ter um grande movimento de cultura barriga-verde. A arte se faz com circulação de idéias e é muito estúpido acreditar que só quem faz o poema é que está sabendo da beleza das coisas, que só quem faz música está certo. A cultura se faz de trocas. Quando vejo uma exposição de arte, vejo a beleza através da imagem da plasticidade. E essa imagem da plasticidade, como a imagem sonora do concerto, me induz a imagens que vou dizer com minha matéria-prima que é a palavra. Eu me intercambio. É o que temos que fazer aqui em Santa Catarina para termos um movimento real como existiu na Bahia ou existiu, em 22, em São Paulo. Eu nunca vi um grande relacionamento a não ser depois que a Galeria Açu-Açu começou a lançar livros junto com exposições, com pequenos concertos.

FCC – Um compartilhamento, uma relação de troca...
LB – Perfeitamente. A falta dessa relação é a mais triste das alienações, das limitações, pois o artista em toda a sua esfera acredita que tem a dimensão do mundo. Mas a dimensão do mundo é viver a dimensão do mundo, não é caminhar em linha reta, é descobrir que os caminhos estreitos e menos à vista podem esconder a fonte mais limpa ou a flor mais bonita.

FCC – Isso está um pouco ligado à religião também? 
LB – Acho que somos seres religiosos. Nós só não somos religiosos se não nos ligarmos ao mundo e a nós mesmos . Porque a religião é isso, é religar-se (religare) ao mundo .Ser religioso é estar ligado em contato com o visível e o invisível do mundo. Olha, acho que a grande religião seria exatamente essa de apenas nos religarmos entre nós. Não precisaríamos de nenhuma religião para nos ligarmos entre nós. A religião seria nós nos ligarmos. Isso nos daria uma dimensão de cada um. E, se tivéssemos uma dimensão de cada um, seriamos muito mais ricos e, se fôssemos mais ricos, seríamos menos preconceituosos e, se menos preconceituosos, mais amorosos.

FCC – Ótimo. Gostaríamos agora que falasses um pouquinho da poesia brasileira. A quais poetas te achas mais ligado ?
LB – Para mim, o maior poeta brasileiro, sem nenhuma duvida, foi Jorge de Lima. A Invenção de Orfeu é um monumento, um clássico. Claro que existem outros grandes nomes, como Cecília Meireles, Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Cassiano Ricardo. Na geração mais recente, Adélia Prado, ao menos em alguns poemas, em outros acho que ela passa pelo que se poderia chamar de uma panfletagem do coração, acho que se perde em muitos momentos. Affonso Romano de Sant'Anna é um bom poeta, Felipe Moisés, Roberto Piva. Há uma geração de poetas realmente fascinantes, que não têm nada a ver com tudo aquilo que se pretende considerar poesia brasileira, como chamar certos cantores de grandes poetas, uma coisa que eu acho de uma ignorância, de uma frescura universitária a toda prova. Não se pode confundir uma letra de música que pode ter muita poesia, com o poema, que é um objeto independente e tem uma outra proposta.

FCC – E os poetas alternativos?
LB – Em geral é panfletagem, em geral é aos montes, igual ao que se fazia nos anos 60, essa coisa toda do muro que as pessoas, de repente, acham que é uma grande poesia. A sede de novidade e de superficialidade é grande, mas nem tudo que é novo é bom, é uma estupidez achar isso. Tudo aquilo que se pensa que é novo, na verdade não é novo. A desinformação é tão grande que, se as pessoas lessem a Bíblia, não no sentido religioso mas no sentido de compreensão do mundo, sabem que está tudo lá, o fenômeno do homem. No fundo, o poema é fenômeno do homem. Escrever é fenômeno do homem, pintar é fenômeno do homem, viver é fenômeno do homem. Cada um tem sua maneira de dizer esse fenômeno, cada um escreve, cada um pinta o seu destino, lembrando que existe um destino amplo, universal a que todos nós pertencemos e que se chama beleza e dignidade. Somos responsáveis por isso, eu acho.

FCC – Bell, e o próximo livro?
LB – Todo livro que publiquei acho que é um livro maduro. Por isso fico relutando em editar o Anima Mundi e as pessoas vivem me cobrando: "Poxa, você desde 85 que não lança um livro!"

FCC – Há quanto tempo estás trabalhando nesse livro?
LB – Há quatro anos.

 FCC – E esse processo de trabalhar um livro como é que é? Diário?
 LB – É diário. Estou escrevendo o livro dentro de mim, é claro, diariamente. Mas escrever, acrescentar, mudar as palavras, esse é um processo mecânico, um processo muito difícil para mim, sabe? Para mim é muito mais fácil colocar as coisas no papel do que eliminá-las, porque tenho paixão pelas coisas que faço, acho que em todo sentido. Você não pode perder o timbre, não pode perder o ritmo, mas tem que deixar o essencial, todo grande poema deve ser como um soneto, apesar de não ser um soneto – qualquer palavra que você tira de um soneto, ele desaba, cai.

FCC – Não há nenhum perigo numa tão grande preocupação com a palavra exata?
LB – Não, eu acho que isso é que falta no Brasil, essa preocupação. Eu não quero escrever para hoje, quero escrever para sempre. É uma proposta minha, por isso eu digo que ela é tão cruel. Porque, de repente, ela é cruel para mim, ela não é o que eu quero, ela me obriga a posturas pra mim mesmo que podem ser muito duras comigo mesmo, mas eu acho que é por aí, eu quero ser lembrado, eu acredito nisso, acredito na durabilidade. Eu posso até não durar, mas vou fazer tudo para que minha obra tenha condições de sobreviver.

FCC – É portanto, uma preocupação fundamental...
LB – No meu caso é, pois tudo o que fiz até aqui é fundamental. Os caminhos são múltiplos mas, não fosse assim, tudo o que realizei em muito pouco tempo se tornaria a perfeita inutilidade. Circunstâncias apenas, de que já falei, mostraram meu lado estúpido, em termos de poema. Eu acho que ele tinha uma função social e histórica naquele momento mas acho que a função social dele é o resgate da dignidade e da beleza, através do próprio resgate dele também, porque se o poema não pode se resgatar vai resgatar as pessoas? Como é que vai resgatar o sentimento dos outros? E que falta de respeito é essa de você entregar pro cara um poema que é uma bosta dizendo que é um poema ? Não, eu tenho de entregar aos outros o que eu sei que é o melhor de mim, não o pior nem o mais ou menos. Mas eu tenho que ter convicção de que estou entregando para os outros um referencial máximo do melhor que posso fazer

.FCC – Falaste da disponibilidade do criador para receber, esperar. Às vezes as coisas vêm e a gente não está preparado – elas voltam?
LB – Voltam e somem, e nunca mais aparecem, e isso é que é o diabo. A noite, quantas vezes me levanto! Mas isso é tão natural, no fundo é tão natural.

FCC – A noite é uma grande companheira...
LB – À noite não se tem interferências, tudo dorme. 0 mundo está disponível. Então, o que é que acontece? Um mundo de energia está por aí. Encontrando um canal se chega lá. É lindo isso.Texto transcrito da publicação da Fundação Catarinense de Cultura

(Lindolf Bell : estudo biobliográfico, antologia/coordenação Silveira de Souza e Flávio José Cardozo. Florianópolis: FCC, 1990. 24p. (Escritores catarinenses: "Hoje", n.2)
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sábado, 19 de junho de 2010

JOSÉ SARAMAGO

"...ler em voz alta. Não há maneira melhor de ganhar consciência do que se lê e do que se poderá vir a escrever."


José Saramago nasceu em 1922 em Azinhaga, aldeia próxima a Lisboa, Portugal, para onde se mudou com seus pais ainda pequeno. Por dificuldades econômicas, interrompeu os estudos ao concluir o liceu (equivalente ao Ensino Fundamental). Voltou a estudar mais tarde, em curso técnico. Foi serralheiro, mecânico, desenhista, funcionário público, editor e tradutor antes de consagrar-se como um dos mais destacados escritores contemporâneos. Em 1998 recebeu o Prêmio Nobel de Literatura. Em 2009, publicou seu último romance, Caim. Saramago faleceu no dia 18 de junho de 2010, aos 87 anos, em sua residência, nas Ilhas Canárias.




Leia entrevista dada por José Saramago em 2003 à Revista Nova Escola 

O Prêmio Nobel de Literatura José Saramago começou a ter contato com livros ao freqüentar o curso técnico de mecânica, estimulado pela disciplina de Literatura. Escreveu seu primeiro romance aos 25 anos, Terra do Pecado, e parou. Ficou duas décadas sem nada publicar. Em 1966 lançou coletâneas de poemas e ensaios escritos nas horas vagas. Sua carreira literária decolou mesmo quando ele estava com 57 anos, com Levantado do Chão. Dono de narrativa de estilo inconfundível, faz de seus romances verdadeiras reflexões sobre o ser humano, suas preocupações mais íntimas e aspectos da vida que o inquietam. Saramago esteve no Brasil em maio de 2003, lançando o romance, O Homem Duplicado, quando nos concedeu esta entrevista por e-mail, contando um pouco de seu processo de criação e de sua visão do papel do professor e da escola na formação do aluno leitor e escritor. "Cabe à escola ensinar o aluno a escrever corretamente", afirma o autor, para quem a língua é a mais eficiente ferramenta de comunicação e, como tal, "precisa estar sempre limpa e em condições de uso". As ideias de Saramago põem em questão o papel da escola no desenvolvimento da criatividade. Ele provoca os educadores ao afirmar que para navegar sem regras é preciso ser um bom condutor, e este não se faz sem aprendê-las. Saramago não espera - e portanto não cobra - da escola a subversão da língua, e sim seu domínio.

O estilo de sua escrita muitas vezes subverte a estrutura da língua portuguesa, atitude raramente valorizada pelos professores quando manifestada pelos alunos. O senhor acredita que há pouca flexibilidade na forma de lecionar o português?

José Saramago A escola deveria ensinar a ouvir. Cabe a ela ensinar o aluno a escrever corretamente e também explicar por que as regras são assim, e não de outra maneira. Mas a escola não será o lugar onde se subverte e revoluciona a estrutura da língua. Essa tarefa pertence aos escritores, se estes consideram que têm motivos para o fazer.

A maneira como a língua é ensinada não influi no surgimento de novos estilos?
Saramago Os estilos saem do ovo da sua própria necessidade. Ensine-se a pensar claro e a escritura será clara. E, já agora, gostaria que houvesse uma luta implacável contra o erro de ortografia. A língua é uma ferramenta de comunicação de todas a mais perfeita , e as ferramentas (pergunte-se a um operário) têm de estar limpas e em condições de trabalhar eficazmente.

É difícil criar uma nova maneira de redigir quando existe toda uma norma culta que impõe regras a quem usa a língua?

Saramago Como eu disse, a escola não é o lugar em que se subverte a estrutura da língua porque ela não tem preparação própria suficiente para se arriscar nessa aventura. As regras são como os sinais de trânsito numa estrada. Estão ali para orientar e dar segurança ao condutor. Claro que é possível viajar por uma rodovia onde não haja sinais de trânsito, mas para isso é indispensável ser um bom condutor. Aí está a diferença.

Nas suas memórias de estudante, o que mais influenciou a sua carreira?

Saramago Nada me influenciou verdadeiramente, nem ninguém. Salvo a seleta escolar (a coletânea de textos literários que havia à disposição dos alunos), que para mim fez as vezes da biblioteca que não existia na minha casa. Depois descobri o caminho das bibliotecas públicas, e foi aí, sem que eu pudesse sequer imaginá-lo, que o escritor começou a nascer.

No início de sua carreira, a crítica literária muitas vezes foi negativa ao analisar suas obras, mas isso não o impediu de continuar...

Saramago Uma ou outra crítica reticente ou negativa que algum dia me tenha sido feita não mereceria que lhe pusessem ao pescoço um cartaz tão terrível. Salvo, evidentemente, se se trata de opiniões que não chegaram ao meu conhecimento. De qualquer modo, nem a crítica mais destrutiva me faria desviar do meu caminho.

O prazer que crianças e adolescentes sentem ao escrever corre o risco de ser minado por críticas negativas recebidas durante as aulas. Como seria a maneira mais adequada de analisar as redações dos alunos?
Saramago Penso que a análise deveria ser não de julgamento, mas orientadora. O mais fácil de tudo é dizer "isto está bem" ou "isto está mal". Os problemas começam quando se quer explicar o porquê e se chega à conclusão de que afinal o que determinou o juízo, positivo ou negativo, foi simplesmente o gosto pessoal e intransmissível do mestre.

De que maneira um professor de Língua Portuguesa incentiva e ajuda seus alunos a compor boas redações?

Saramago Pondo-os para ler em voz alta. Não há maneira melhor de ganhar consciência do que se lê, e, portanto, do que se poderá vir a escrever. O que os signos impressos mostram é o desenho da palavra "embalsamada". Só a leitura em voz alta a "ressuscita" completamente. Os docentes dirão que não há tempo para isso, mas depois não terão outro remédio que corrigir erros que poderiam ter sido evitados. Se é que verdadeiramente os corrigem. Porque corrigir não é traçar um risco vermelho debaixo da palavra. Corrigir é reconstruir a palavra na mente do aluno.

Como se dá o processo de criação de seus livros?

Saramago É quase impossível lhe dar essa resposta. Pode-se recordar como nasceu a idéia de um romance, pode-se reconstituir mais ou menos o que no seu percurso foi consciente, mas, tal como sucede com os icebergs, o mais importante não se vê. O que sustenta o visível está por baixo. Sabe-se aonde se quer chegar, mas, exceto alguns pontos de passagem, não conhecemos o itinerário. Como escreveu Antonio Machado, o grande poeta espanhol, é o andar que faz o caminho.

O senhor não planeja a obra que está iniciando?

Saramago No meu caso particular, o romance cresce como cresce uma árvore. Suponha que a árvore conhece a altura que terá, o aspecto geral da espécie a que pertence, mas sabe (imagino que sabe) que não será igual à sua vizinha. Os ramos podem nascer-lhe mais acima ou mais abaixo, apontar para um lado ou para outro. Se tem um plano de crescimento, é possível dizer que nesse plano há tanto de liberdade como de necessidade. Para mim, seria impensável estabelecer um plano rígido para o livro, com cada coisa no seu lugar e um lugar para cada coisa. As associações de idéias, processo mental que não controlamos, podem levar-nos por caminhos que não havíamos previsto. Também na escrita a liberdade vai de braço dado com a necessidade.

Depois de finalizar um romance, o senhor costuma modificar o que inicialmente escreveu, aumentar ou diminuir capítulos, inserir novos trechos?

Saramago Volto à comparação com a árvore. Podemos conceber uma árvore capaz de corrigir-se a si mesma? Não ignoro que há autores que trabalham longamente sobre o texto, que desenvolvem, encurtam, intercalam. Não é o meu caso. Avanço devagar, com a preocupação de não deixar pontas soltas, e isso permite-me manter sempre "esticado" o fio narrativo. De todo o modo, não devemos esquecer que o texto é inseparável do momento em que é escrito. Há muito de aleatório no que se escreve.

O que significa escrever para o senhor?

Saramago É ir descobrindo que tínhamos na cabeça mais coisas do que havíamos suposto antes.

Como o senhor escolhe os temas de seus romances?

Saramago Não "escolho" os assuntos dos meus romances. São eles que se apresentam de súbito, e às vezes nas situações mais prosaicas. O autor é "escolhido" pelo assunto, não o contrário. Quando parar de redigir, isso significará que os temas deixaram de considerar-me capaz de lidar com eles. Quanto à circunstância de que eles sejam o que são e não outros, isso explicar-se-á, talvez, por determinados estímulos exteriores encontrarem eco na minha mente mais facilmente que outros.

Há temas que o escolhem, então, com mais freqüência?

Saramago Há que levar em conta a natureza pessoal do autor. Não tenho nada contra a alegria, mas sou e sempre fui melancólico. E tenho a veleidade de pensar que o ser humano cresce mais com a tristeza que com a alegria. Começando pelas crianças. Se uma criança está triste, melancólica, pensativa, deixemo-la em paz porque está a crescer.

http://revistaescola.abril.com.br/lingua-portuguesa/pratica-pedagogica/ideias-claras-escrita-clara-423611.shtml