Poemas, contos, imagens... palavras e silêncios. Mergulhos e naufrágios de AílaSampaio
quinta-feira, 16 de agosto de 2007
ITINERÁRIO DA EMOÇÃO
Quem faz uma mulher
faz uma tarde
e seus vestígios poentes.
Faz a noite
e, num só momento,
faz igual
o que, por desigual,
é diferente.
O primeiro homem
é sempre a primeira estrela
a aparecer no céu
mas não é a única.
Novas noites acordam o delírio
de um dia à frente
se não se encontra no crepúsculo
o itinerário da emoção
que é etérea e não passa nunca
(do livro “Amálgama” (1991))
NÓS
FRAGILIDADE*
Fragilidade *
A dor – cárcere privado.
Indivisível.
Efeito?
Defeito detectado
no peito (quem sabe) desarmado,
na carne, matéria exposta
susceptível ao tempo,
no coração que pára
-relógio sem conserto
nem motor de reserva.
Inventos os tempos levarão.
Fadarão ao passado
novidades imediatas.
O que será do homem
- vaso de porcelana –
se os jardins desmoronam
sob concretos?
Profetas, Deuses – mistério celeste –
crença absoluta no abstrato poder:
autores de espetáculos
onde, involuntários atores,
brindamos ao happy end.
?
Ergamos as taças,
enfeitemos o vaso.
Viver é representar
a transparência dos cristais
e a fragilidade de flores colhidas.
*Poema publicado na Revista Espiral No.3 – 1997 p.80
MOLDURA
CUMPLICIDADE
Entre uma e outra mão
desata-se meu corpo
em oferenda.
Cada dia empresto-me
um pouco mais
ao meu riso
à minha dor
ao rosto que não é meu
e continua a denunciar
minhas reações.
Entre teto e paredes
meu quarto espera-me entrar
em cena
e estrear meu drama.
Meu cenário são
essas quatro paredes
que me fitam, me insultam
mas não me escutam;
nada resolvem ou dizem,
só me acusam, me assustam
e me expulsam
como se eu fosse apenas
mais uma boneca.
Tão pouco resta da carne
à sobra do que me consome;
nem corpo nem vício,
faço-me na cumplicidade dos olhos,
dos dias que me aterram
e redescobrem.
Morro secretamente
E sem explicação;
Encontro-me todos os dias
E, diante de mim,
Descubro que não me pertenço.
(Do livro “Desesperadamente Nua” (1987))
O SANGUE DA LIBERDADE
Quero sobretudo essa malícia
de trazer no corpo a marca das fêmeas,
seduzir reduzindo meus excessos
em assimetrias expressos
à flor da pele.
Quando for preciso,
enlouquecerei;
quebrarei as algemas
cedendo aos poucos
à tentação dos loucos
que injetam na veia
o sangue da liberdade que crêem.
Quero deter os alarmes
a tempo de aprender minha história
sem carícias a cicatrizar.
Quero além de tudo esse veneno
que denuncia minha maldade
castidade pra toda sedução,
pra solidão que eu decreto
dia a dia
adiando desejos.
(Do livro “Desesperadamente Nua” (1987))
de trazer no corpo a marca das fêmeas,
seduzir reduzindo meus excessos
em assimetrias expressos
à flor da pele.
Quando for preciso,
enlouquecerei;
quebrarei as algemas
cedendo aos poucos
à tentação dos loucos
que injetam na veia
o sangue da liberdade que crêem.
Quero deter os alarmes
a tempo de aprender minha história
sem carícias a cicatrizar.
Quero além de tudo esse veneno
que denuncia minha maldade
castidade pra toda sedução,
pra solidão que eu decreto
dia a dia
adiando desejos.
(Do livro “Desesperadamente Nua” (1987))
quarta-feira, 15 de agosto de 2007
A QUEDA DO MITO
Nada de novo sob o sol. Se encontrasse tia Felícia, certamente ouviria essa frase hoje. Nunca vi alguém que gostasse tanto de repetir frases feitas. Para toda situação ela tinha uma para se sair ou fazer sua conclusão. Eu ficava impressionada com a sua capacidade de contextualizá-las e de sintetizar os acontecimentos em poucas palavras. Lembro-me de que ela odiava a palavra tia, dizia que era título pra velha rabugenta, que sublimava a solidão com os sobrinhos. E esse não era o seu caso, dizia jogando os cabelos.
Conversando, um dia, com o meu professor de português, sobre o seu repertório infinito de frases feitas e provérbios, fiquei sabendo que essa preferência é muito comum em pessoas incultas. Eu pensava que fosse o contrário.
Senti cair um pouco a minha admiração por aquela figura singular. Tia Felícia, de fato, pouca cultura e era uma frustrada por não ter se casado nem tido filhos. Os seus casinhos não a satisfaziam como ela dizia. Se é que ainda os tinha.
No final de semana seguinte à minha conversa com o tal professor, ela apareceu lá em casa, com uns óculos espalhafatosos, parecidos com os que a Jaqueline Kennedy usava. Certamente para cobrir as rugas ou as olheiras. Eu fiquei olhando o seu jeito de falar gesticulando, a sua pele áspera coberta de pó, o seu cabelo vermelho acaju, mastigado como uma manga recém chupada e pensei no quanto ela era infeliz. Não é fácil envelhecer sozinha, principalmente quando já se foi o centro de todas as atenções! Tive pena da Tia Felícia, lutando ainda pela aparência, e ódio por perder o meu referencial de cultura e elegância. Ela parecia meio bruxa com o rosto anguloso e o cabelo escorrido. Só faltava a vassoura. Saiu dizendo que gato escaldado tinha medo de água fria, como resposta à proposta que papai lhe fez de entregar os terrenos da praia para um corretor.
Sei que ela deve ter estranhado a minha distância, eu que me desfazia em mimos, estava ali, fingindo estudar para a prova de português e assitindo, sem querer, à queda do mito. Ela voltou da porta e beijou-me com afetação, expandindo seu aroma poison por toda a sala. Tive pena dela outra vez e a certeza de que era uma bruxa de verdade, pois, quando chegou de novo à porta, virou-se e disse que havia males que vinham para o bem. Fiquei pensando que ela havia lido meus pensamentos e que sabia que eu não mais a admirava e que isso era melhor para mim, pois não correria o risco de herdar sua sorte. Mas pode ser que ela tenha apenas se referido ao fato de eu estar estudando numa noite de sábado, em vez de sair com um namorado...
Essa foi a última vez que a vi. Ela foi encontrada morta, não muito tempo depois, toda vestida de vermelho, com os lábios pintados de carmim e uma bala no peito esquerdo. Papai falava em suícidio, mas a verdade é que ela não deixou carta nem recado. Suponho que deve ter tido os seus motivos para desistir de viver. Já perdera o bonde e as esperanças, como dizia Drummond. Fiquei olhando para o retrato que puseram no seu cartão-lembrança e percebi o quanto o tempo é cruel e implacável. Eu quase a vejo dizendo que a vida só é possível reinventada, para justificar o seu ato. Chego até a pensar que ela gostava de Cecília, me forçando a mudar de opinião a seu respeito.
Hoje, comemorando o nascimento do meu sétimo sobrinho, eu contemplo minha solidão e percebo que tia Felícia permanece em mim. Imperfeita, velha, injustiçada. Não a bela, que eu não conheci bem. Há dez anos ela se foi e, desde então, nada houve de novo sob o sol. Só eu, me descobrindo um falso brilhante.
VIRANDO O JOGO
Depois que ouviu Mestre Raimundo, Marieta baixou a cabeça e levantou da cadeira. Saiu apressada, desviando a cortina de xitão azul. Jogou umas cédulas na mesa da atendente adunca e só respirou quando perdeu o sobrado de vista. Tão católica e procurando aquelas coisas. Esconderia do marido, mas, de Deus... O que diria Padre Tobias no confessionário?
Estava dividida entre acreditar ou não nas revelações. Caminhou tropeçando em sua culpa, encompridando o caminho, para ver se chegava em casa mais aliviada. Não poderia dar crédito à leitura das cartas. Nem dos búzios. Eram revelações tolas, inventadas por um velho charlatão. Não sabia por que ficara até o fim. Além de pagar para ouvir aquelas asneiras, ainda tinha de conviver com a culpa de ferir a Deus. Deus... onde Ele estava que não via o marido escorregar-lhe pelos dedos?
Tanta missa, tanta reza e tudo inútil. Nem precisava do jogo de búzios para saber. Foi só por curiosidade e necessidade de uma confirmação. Imagine. Ter a confirmação pela boca de um velho que nunca viu. Deveria dizer aquilo a toda mulher que o procurava. Se ia lá, era porque tinha problemas dessa natureza. Quem é feliz e bem amada não procura essas coisas. Nem quem tem fé nos poderes divinos. E ela tinha. Tinha?
Resolveu subir no primeiro ônibus que parou. Sentou na cadeira da frente, agarrando sofregamente a bolsa e fixando o olhar no vidro dianteiro, que parecia devorar o asfalto. Pensou na atitude que ia tomar. É, não dava mais para não tomar uma atitude. Ninguém fazia serão daquele jeito. E ele ainda tinha a cara de pau de inventar sempre a mesma mentira. Também! Se ele falasse a verdade, com todas as letras, morreria. A certeza seria pior que a dúvida. Seria a morte. Enquanto duvidasse, tinha esperança. Que tolice. Era certa a traição. Ela é que não queria aceitar. Fingia que não era com ela.
Entrou em casa e deu de cara com ele, esparramado no sofá. De longe, já sentiu o cheiro do perfume da outra. Era seco, arrogante, denunciador. Quis dizer que sabia de tudo, mas se conteve, por medo de ouvir a verdade. Mestre Raimundo disse que seu casamento estava por um fio, por causa de uma mulher. Quem seria? Mais nova que ela? Independente? Liberada? Melhor nem saber.
Ele lançou-lhe um olhar desconfiado e reclamou da janta não estar ainda pronta. Ela correu para a cozinha, estrelou uns ovos e improvisou a comida. Depois quedaram-se mudos diante da televisão. Ele se mostrava ansioso, impaciente e decidiu desabafar. Ela ficou pálida, esperando. Ele disse saber o que passava na cabeça dela e que não se continha mais de tanta revolta. Havia se casado com uma mulher neurótica, ciumenta. Ela, atônita, ficou pensando em que momento demonstrou suas suspeitas... disfarçou tanto... Ele estava tão indignado que pediu a separação. Ela ajoelhou-se, pediu perdão e mais uma chance.
Ele prometeu ficar, desde que ela mudasse. Ela mudou. Voltou a ir à igreja e deixou de demonstrar insegurança. Estava tudo bem, não estava? Se ele tivesse uma amante, teria dito naquela hora!
Ele, sempre com ar de vítima, continuou com os serões e com o cheiro arrogante do perfume que ela, num lapso, pensou ser da outra.
A DOIDA MAURA
De longe se avistava a casinha em cima do morro. Suas formas evanescentes se desenhavam entre as nuvens e, em dias enevoados, parecia suspensa no ar, bem perto do céu. Se o tempo fechava, desaparecia do horizonte, como por encanto. No inverno, o morro ficava verdinho, realçando o contorno das paredes. Dava para pensar que era baixinha e pequena, mas eu não discernia exatamente o seu tamanho porque entendia que na distância tudo ficava menor.
Aquela casinha era um enigma para os meus olhos de menina. Fitava-a todos os dias e estudava um jeito de chegar lá. Quando falava em subir o morro, minha mãe cortava o assunto com rigidez. Dizia que era perigoso. Lá, morava uma doida asmática chamada Maura. Vivia sozinha e não gostava de crianças. Imaginei como deveria ser a vida de uma doida que morava numa casinha misteriosa. Deveria ser fascinante a vida de uma doida, ainda mais com a sorte de morar ali. Pena que não gostasse de crianças...
Procurei esquecê-la, mas quando vislumbrava o horizonte, ela estava lá: quieta, ainda mais nítida e sedutora. Desviava os olhos, mas os pensamentos escorregavam em fantasias e eu desejava ardentemente conhecê-las: a casa e a doida. Por algum tempo, contentei-me com a pacífica visão. Entretanto, a vontade de desobedecer às ordens recebidas crescia. Não entendia por que os adultos complicavam coisas tão simples. Um sonho tão pequeno se tornara impossível só por causa dos caprichos de minha mãe. Ela achava que éramos melhores que a maioria das pessoas daquela cidade. Não deveríamos nos misturar. Eu ficava triste, pensando como seria quando os sonhos maiores chegassem!
Numa tarde quente e tediosa, eu recortava figuras de uma revista, quando uma senhora entrou na sala, chamando mamãe pelo nome. Era quase velha. O passo cansado arrastava o corpo pesado e o cabelo grisalho escorria-lhe pelos ombros numa só ondulação. Desviei minha atenção para os recortes, mas vi quando minha mãe se dirigiu ao cofre, contou um dinheiro, tirou duas notas e lhe entregou. Ela saiu de mansinho, escondendo suas feições abatidas. Pulei na sua frente, de súbito, e ela gritou assustada, reclamando da minha inconseqüência. Então minha mãe não havia sido honesta. Se conhecia a doida Maura, falava com ela, chamava-a pelo nome e dava-lhe dinheiro, eram íntimas; então por quê?!
Fiquei vigiando a sua volta à cidade. A crise demorou a passar, mas passou e ela retornou à minha casa. Resmungona e infeliz, não via graça na vida; falava sozinha, sempre reclamando de tudo. Era incapaz de falar qualquer coisa importante diante da tela da televisão; achava que estava sendo vista como via. Ninguém conseguia fazê-la entender que era só uma imagem, transmitida por torres e satélites.
Era, de fato, doida e asmática. Também não gostava da impertinência das crianças; afetava-se ante qualquer brincadeira. Ela estava ali, bem perto. Tão perto que era melhor não acreditar. Eu imaginava as doidas de outro jeito: alegres, simpáticas, sonhadoras. Que pena! Era só imaginação...
A casinha continuava lá, no alto do morro. No entanto, eu desisti de conhecê-la. A sua magia, pensei, estava na distância, na impossibilidade. O sonho, para ser bom e duradouro, nunca deveria virar realidade. Antes o encanto nos pensamentos escorregadios do que o desencanto nas mãos postas e impotentes.
Mas a doida Maura nunca ficou sabendo que foi a minha primeira decepção. Sem se importar comigo, continuou sua saga de mau humor e amargura. Era maior do que ela. E do que eu.
VESTIDO DE NOIVA
Estou quase pronta. Não quero chegar atrasada à igreja, pois sei que Mário detesta esperar. Eu poderia estar mais feliz, se mamãe fosse menos intransigente. Tradição... fico questionando o sentido dessa palavra na minha vida. Detalhes... são importantes. São eles que fazem a diferença. Se não, tudo seria igualmente medíocre. Mas há detalhes e detalhes.
Termino de vestir a meia e calço os sapatos. Agora é a vez do vestido. Minha mãe ergue a saia para não amassar meu cabelo. Minha irmã segura a cauda com um certo sarcasmo nos olhos. Sente-se vingada. Quando foi a sua vez de vesti-lo, tive uma crise de riso. Não imaginava nunca que o meu dia fosse chegar.
Agora é o véu e a grinalda. Fico aborrecida com os prendedores espetando minha cabeça. Deveria estar tão feliz! O que parecia impossível se realizou. Serei uma senhora. Mário será eternamente meu daqui a alguns minutos. E com a bênção de Deus. Mas não estou, por causa da maldita tradição que mamãe insiste em seguir. E logo comigo. Eu que rompi com tudo...
Papai dirige o carro devagarinho por causa do calçamento. Está preocupado em não amarrotar meu vestido. Que ironia! Se pudesse correria e acabaria de vez com esse tormento.
Chegamos, enfim. Mário me espera no altar. Sinto-me no picadeiro de um circo. Deus me perdoe, não é nada contra a igreja, é contra mim. Piso o tapete vermelho. Papai enlaça seu braço no meu. A platéia está completa, à espera do palhaço. Já escuto as risadinhas e os tititis. Sucesso de bilheteria.
Vovó teve mais sorte; foi a primeira. Deveria ser pura como o vestido novo que ostentou. Com o tempo as mulheres mudam mas, segundo mamãe, os vestidos de noiva são eternos. Deve ser predestino. Mamãe quer que eu me veja como sou: encardida e sambada como o trapo que me fez vestir. Somos idênticos. Mas pode ser que não seja isso. Ela não sabe a filha que tem. Eu é que me percebo assim, por força da consciência.
Mário me estende a mão. Me diz sim diante do padre. Está seguro. É ingênuo. Não lhe importa a idade do vestido. Não conhece o que é vaidade. Nem a mim, verdadeiramente. Sinto dó de Mário. Escolheu uma mulher devastada. Quando cair em si, será tarde. O casamento religioso é para sempre; irreversível como o meu passado. Como o amarrotado do vestido que me fez a noiva mais transparente do mundo.
Tenho vontade de chorar. Não é emoção. É pressentimento.
O ÁLBUM E AS LEMBRANÇAS
Ela ficou com o álbum e as lembranças. Ele não fez questão; preferiu o prazer da liberdade que nunca perdeu de fato. A suntuosidade da cerimônia não foi garantia. O sim diante do padre, o juramento de fidelidade, a troca de alianças... encenação de um filme de curta duração e sem final feliz. Restaram as fotografias, a filha que já carregava no ventre quando subiu ao altar e um ano de péssima convivência.
Debruçada sobre o álbum, ela chorava. Quando deixou de ser amada? Não percebeu o momento nem teve a perspicácia de ignorar a indiferença dele. Agiu de forma infantil, arrumando a mala e batendo a porta sem uma lágrima nos olhos. Estava seca, nem lembrou que ainda o amava.
Quando, decidida, apertou o botão do elevador e tomou um táxi com a filha de um mês no colo, pensou ter tomado a decisão mais madura da sua vida. Era uma mulher, enfim; havia expurgado a menina mimada que ele tanto criticava. Retornou ao quarto de solteira, certa de que seria por pouco tempo. Ele iria buscá-la. Então ela iria impor as regras e, caso ele as aceitasse, seriam felizes. Se não... Estremeceu e desviou o pensamento. Estava insegura...
O terno e os olhos azuis, a barba aparada e o cabelo dourado resplandeciam no porta-retrato que retirou da bagagem. Vislumbrou aquela imagem e a moça de vestido branco, com uma cauda de metros de seda pura, o rosto iluminado. Nas mãos, um buquê de orquídeas recém-colhidas e outra mão apertando-a. Era ela. Quer dizer, fora ela, ainda cheia de sonhos e esperanças.
Agora era a mala por desfazer e a vontade repentina de chorar. Tinha segurado até ali; precisava desmoronar. Foi demais o sofrimento: grávida e abandonada em casa. Ele, nas noites, levando a vida de antes. De nada adiantou sua mãe dizer que todo homem era daquele jeito, com o tempo tudo se arrumaria.
Depois de tudo, ele ainda estendeu o olhar azul sobre ela, como se lançasse uma bandeira branca. Ela não quis ver. Não deveria. Fazia parte do jogo. Que padecesse. Só quando o visse de joelhos.
Chateado, ele deixou a barba crescer, sofreu mais uma semana e destilou a falta dela em algumas doses de uísque. Expurgou-a fácil, como o excesso de álcool, no chuveiro. Via-a escorrer pelo ralo, com a espuma. Nem pensou em se curvar.
Ela continuou debruçada sobre o álbum, acariciando as fotografias e as lembranças. Apostou e perdeu. Deixou para blefar quando o jogo já havia terminado. Não era dona da situação. Jamais fora.
Restava-lhe o consolo de que a moça do retrato, ao lado dele, era ela. Ali ficou selada para sempre a união. Ele não poderia negar. Deus havia abençoado. Tinha provas... Aquele momento congelado conservaria para sempre o frescor das orquídeas e a mão dele na sua. Preferia não ver que os sonhos e as esperanças haviam escorregado pelos seus dedos e caído em alto mar numa noite de tempestade. E que as orquídeas, como qualquer flor, perecem ainda mais rápido longe da solidez da raiz. Como o amor.
COM OS PÉS FORA DO CHÃO
Não sei por quanto tempo fiquei trancada naquela sala. A consciência era um fio de náilon oscilante. Eu a atingia por um ângulo indefinido. Ia e vinha, de modo que o tempo se repartia em pedaços de cenas que eu entrevia na escuridão. Já sabia que a consciência tinha me sobrado. Do resto, nada podia dizer; não sentia o meu sangue ferver nem gelar. Eu era só um corpo sujeito a reparos inevitáveis, centro de urgentes atenções.
Eu tinha um mundo e aquelas pessoas, outro. Elas não conheciam o meu, mas eu tinha noção do delas. A ligação estava naquele ser derramado ali, sem pudor e creio que, na concepção delas, sem um mundo imediato.
Eu não sabia até que ponto a minha vida dependia delas. Ao mesmo tempo em que eu sentia medo de que desistissem de salvar-me e mergulhava num desespero mudo, criava subsídios de luta. Eu tinha um filho de apenas três anos; àquela hora ele deveria estar sentindo a minha falta. Eu tinha a obrigação de voltar.
Tive ímpetos de atribuir à Rosa a responsabilidade por eu estar ali. Aqueles vinte minutos de conversa modificaram a minha vida, detiveram todos os relógios e a minha pressa. As obrigações da rotina, sempre tão marcadas, de repente, estavam forçadas a esperar por mim. Até aquele instante eu precisava conduzir um corpo a um destino sempre previsível. Depois, vi aquele corpo ser conduzido, à minha revelia, sem que eu pudesse responder por ele.
Os ruídos fugiam lentamente e eu mergulhava em nuvens brancas, esparsas, onde só a inexistência fazia sentido. Aos poucos, frágeis sensações retornavam e eu me sentia desacordada dentro de um trem veloz, perdido de sua direção. Eu tentava deter a máquina, fazê-la retornar aos trilhos, mas o maquinista não escutava os meus apelos.
Foi tudo tão rápido. Nenhum cronômetro poderia marcar o instante exato da minha tragédia. Eu vi aquele monstro de ferro enfurecido avançar sobre mim, sem que eu pudesse reagir. Vi todas as luzes do mundo se apagarem, todos os sinos do céu tocarem e todas as mãos se erguerem numa prece. A multidão, compadecida, assistia àquele espetáculo sangrento com gritos pendurados na boca, querendo avisar-me da minha morte.
Dei por mim viva e incomunicável, extraviada numa cama fria de hospital, atravessada pelo desejo de provar que ainda existia.
Depois de muitos dias abri os olhos e vi mais do que o simples invólucro que reveste todas as coisas. Apossei-me da nova condição e aprendi rapidamente a viver com os pés fora do chão. O meu filho pergunta porque só ando de carrinho e eu invento respostas lúdicas, improvisadas: os trens são muito barulhentos e os carros grandes, muitas vezes, tiram as pernas das pessoas...
Eu tinha um mundo e aquelas pessoas, outro. Elas não conheciam o meu, mas eu tinha noção do delas. A ligação estava naquele ser derramado ali, sem pudor e creio que, na concepção delas, sem um mundo imediato.
Eu não sabia até que ponto a minha vida dependia delas. Ao mesmo tempo em que eu sentia medo de que desistissem de salvar-me e mergulhava num desespero mudo, criava subsídios de luta. Eu tinha um filho de apenas três anos; àquela hora ele deveria estar sentindo a minha falta. Eu tinha a obrigação de voltar.
Tive ímpetos de atribuir à Rosa a responsabilidade por eu estar ali. Aqueles vinte minutos de conversa modificaram a minha vida, detiveram todos os relógios e a minha pressa. As obrigações da rotina, sempre tão marcadas, de repente, estavam forçadas a esperar por mim. Até aquele instante eu precisava conduzir um corpo a um destino sempre previsível. Depois, vi aquele corpo ser conduzido, à minha revelia, sem que eu pudesse responder por ele.
Os ruídos fugiam lentamente e eu mergulhava em nuvens brancas, esparsas, onde só a inexistência fazia sentido. Aos poucos, frágeis sensações retornavam e eu me sentia desacordada dentro de um trem veloz, perdido de sua direção. Eu tentava deter a máquina, fazê-la retornar aos trilhos, mas o maquinista não escutava os meus apelos.
Foi tudo tão rápido. Nenhum cronômetro poderia marcar o instante exato da minha tragédia. Eu vi aquele monstro de ferro enfurecido avançar sobre mim, sem que eu pudesse reagir. Vi todas as luzes do mundo se apagarem, todos os sinos do céu tocarem e todas as mãos se erguerem numa prece. A multidão, compadecida, assistia àquele espetáculo sangrento com gritos pendurados na boca, querendo avisar-me da minha morte.
Dei por mim viva e incomunicável, extraviada numa cama fria de hospital, atravessada pelo desejo de provar que ainda existia.
Depois de muitos dias abri os olhos e vi mais do que o simples invólucro que reveste todas as coisas. Apossei-me da nova condição e aprendi rapidamente a viver com os pés fora do chão. O meu filho pergunta porque só ando de carrinho e eu invento respostas lúdicas, improvisadas: os trens são muito barulhentos e os carros grandes, muitas vezes, tiram as pernas das pessoas...
ORQUÍDEAS
Fico feliz quando Arnaldo me traz orquídeas. Ele não sabe que são elas que me mantêm aqui. São tão raras; talvez, como eu tenha sido na sua vida de culto à melancolia. Eu não poderia mesmo continuar em casa. Não com o seu olhar me espreitando com uma delicadeza medrosa de quem subjuga a calma.
Eu fui agitada como Arnaldo. Tirava impaciente a poeira dos móveis, passava cada nervura da roupa, pouco faltava para lamber o chão. Não tínhamos empregados; eu fazia tudo sozinha e ainda trabalhava numa loja de brinquedos. Ele queria crescer, alcançar as estrelas e eu pegava carona nos seus delírios. A vida passava sem que eu me desse conta de sentir a delícia do seu toque. Não contemplava mais nem o meu umbigo na hora do banho. O tempo sempre queria me atropelar e, para vencê-lo, fui me transformando numa máquina programada. Não cansava, não podia errar.
Ainda no ano da nossa união, um estrangeiro passou a freqüentar a nossa casa; tinha negócios com Arnaldo. A sua expressão era tranqüila. Dizia não correr por nada; nunca valia a pena. Eu estava sempre no jardim, regando as roseiras, quando ele atravessava o portão e me cumprimentava, retirando o chapéu. Jamais me vira fazendo outra coisa, porque chegava invariavelmente à mesma hora do dia.
Numa tarde qualquer de maio, ele atravessou vagarosamente o gramado, com uma muda de orquídeas nas mãos, e presenteou-me. Eram as minhas flores prediletas, mas eu nunca sequer pensei em possuí-las no meu jardim. No dia seguinte o estrangeiro não voltou. Nem nunca mais.
A planta vingou sem dificuldades. Rapidamente começou a ostentar flores com matizes em várias tonalidades roxas e proliferou, tomando conta de todos os espaços. A minha relação com elas era de extrema reciprocidade. Elas conheciam bem a minha fisionomia e eu entendia a largura do sorriso com que me recebiam. Eu não tinha mais vontade de sair de casa para enfrentar um chefe permanentemente mal humorado. Fui sendo dominada por uma alegria avassaladora, por um amor intenso à vida; esse amor novo estava na falta de busca, nas coisas mais simples que eu nunca enxergava como essenciais. Desliguei os meus controles. Não adiantava quererem apertar qualquer botão.
Arnaldo se espantava com a minha tranqüilidade, com o brilho intenso que escorregava dos meus olhos. Ele me culpava por não sofrer mais pelo nosso filho que nascera morto. Aquela dor que eu me obrigava a sentir já era menor do que eu, estava dissipada no êxtase de saber-me viva.
De grosseiro, Arnaldo passou a me tratar com muito tato. Poupava-me de sair só às ruas. Era como se me visse como uma criança. Uma criança crescida capaz de travessuras, uma criança doente que precisa ter a mãe ao lado. Não adiantava eu dizer que a felicidade estava no vazio, na falta de expectativas. Eu não queria mais castelos emprestados. A minha calma me distanciava dele, agredia-o, amedrontava-o.
Fui deixando de olhar nos seus olhos. Cada vez que o fazia tinha a sensação de ter matado a sua amante. Não adiantava eu dizer que o caso era de ressurreição. Depois de levar-me a vários especialistas, percebeu que eu havia enveredado por uma caminho sem volta e decidiu tomar uma providência.
Vivo hoje neste quarto de paredes brancas e janelas altas. Às vezes me deixam passear pelo jardim, mas reclamam se piso nas poças d'água. Dizem que o meu caso é sério. Tenho surtos de alegria que só são controlados quando me fazem dormir. Não reclamo nunca dos meus novos amigos; eles nada me cobram, me enxergam como um ser comum, normal. Só não me podem faltar as orquídeas que Arnaldo traz todas as semanas. Corro risco de ficar louca como ele!
INSÓLITA FAMILIARIDADE
É certo que demorei a me vestir, mas o relógio parecia mais apressado do que de costume. Não teriam mais as horas sessenta minutos? Cheguei atrasada ao vernissage já com pressa de voltar para casa. Chovia forte e eu estava cansada. Na verdade, nem sei por que fiz tanta questão... nem por que era tão importante... eu sequer conhecia os expositores!
Escalei os degraus e me instalei no primeiro salão, perto de uma parede de vidro que separava o ambiente das árvores que davam para a calçada. As minhas retinas vasculharam cada espaço e tatearam o movimento de pessoas desconhecidas, que se avolumavam ao meu redor, causando-me vertigem; depois, as telas alinhadas e suspensas por fios invisíveis.
O carro parecia estacionado há muito tempo. Aquele homem não alcançava os meus olhos nem eu os dele, mas o seu perfil transmitia-me uma insólita familiaridade. A cena parecia repetida, congelada numa imagem que eu jamais vi. Tudo era outra vez, sem ter sido nunca a primeira.
Quedei a observá-lo. Por que não entrou? Em que instante resolveu parar ali na calçada com o passo marcado? Parou contra sua vontade ou por que força? Seu olhar parecia deter a porta fechada, estava fixo nela, enxergava-a. Esperei por um movimento que o despertasse de tamanha letargia, enxerguei o candelabro junto à porta, do lado de dentro, e a escada. Já pisou ali? Quantas vezes subiu aquela escada? Para onde dava?
A decoração da sala tinha um estilo colonial. Logo abaixo de um espelho, havia um console com um vaso cheio de flores secas e, deitada numa cadeira acolchoada, uma criança adormecida esperava, talvez, por ele. Voltei os meus olhos e o homem que eu não conhecia permanecia imóvel, sem enxergar o jardim mal cuidado que se escancarava bem na sua frente, sem desconfiar do meu drama. Uma das janelas estava entreaberta e o vento puxava a cortina branca, de organza, para o lado de fora. Se não se decidia, por que não olhava através dela para saber, pelo menos, a conveniência de entrar ou não?
Seria aquela menina de cabelos encaracolados sua filha? O gatinho peludo, acomodado no chão, em vigília, parecia não respirar. Estariam mortos? Pensei em chegar mais perto, sacudi-lo. A menina poderia estar ainda viva. Mas a luz havia sido apagada há não sei quanto tempo e o dono da galeria esperava ansiosamente a saída da última personagem restante no seu cenário.
Escalei os degraus e me instalei no primeiro salão, perto de uma parede de vidro que separava o ambiente das árvores que davam para a calçada. As minhas retinas vasculharam cada espaço e tatearam o movimento de pessoas desconhecidas, que se avolumavam ao meu redor, causando-me vertigem; depois, as telas alinhadas e suspensas por fios invisíveis.
O carro parecia estacionado há muito tempo. Aquele homem não alcançava os meus olhos nem eu os dele, mas o seu perfil transmitia-me uma insólita familiaridade. A cena parecia repetida, congelada numa imagem que eu jamais vi. Tudo era outra vez, sem ter sido nunca a primeira.
Quedei a observá-lo. Por que não entrou? Em que instante resolveu parar ali na calçada com o passo marcado? Parou contra sua vontade ou por que força? Seu olhar parecia deter a porta fechada, estava fixo nela, enxergava-a. Esperei por um movimento que o despertasse de tamanha letargia, enxerguei o candelabro junto à porta, do lado de dentro, e a escada. Já pisou ali? Quantas vezes subiu aquela escada? Para onde dava?
A decoração da sala tinha um estilo colonial. Logo abaixo de um espelho, havia um console com um vaso cheio de flores secas e, deitada numa cadeira acolchoada, uma criança adormecida esperava, talvez, por ele. Voltei os meus olhos e o homem que eu não conhecia permanecia imóvel, sem enxergar o jardim mal cuidado que se escancarava bem na sua frente, sem desconfiar do meu drama. Uma das janelas estava entreaberta e o vento puxava a cortina branca, de organza, para o lado de fora. Se não se decidia, por que não olhava através dela para saber, pelo menos, a conveniência de entrar ou não?
Seria aquela menina de cabelos encaracolados sua filha? O gatinho peludo, acomodado no chão, em vigília, parecia não respirar. Estariam mortos? Pensei em chegar mais perto, sacudi-lo. A menina poderia estar ainda viva. Mas a luz havia sido apagada há não sei quanto tempo e o dono da galeria esperava ansiosamente a saída da última personagem restante no seu cenário.
A CASA
O telegrama não dizia muito. Seria possível voltar a perder algo já perdido? Havia me acostumado a não colocar os meus mortos na bagagem. Abandonava-os a um compartimento qualquer do corpo, para que não lesassem o que de mim restara entre os escombros.
O taxi corria veloz pelo asfalto. Os pneus derrapavam com violência. Faltava pouco. Antes, o percalço de três dias de estrada escorregadia e a chuva impossibilitando a rapidez do percurso. Da estação até a casa não era tão longe. Mais longe estava o meu coração letárgico, congelado na necessidade e no medo de chegar. Quanto mais me aproximava, mais me sentia muda, seca, incapaz de qualquer raciocínio antes de saber por que voltava. Só as notícias determinariam o meu estado.
O muro desbotado denunciava o envelhecimento da minha ausência. Não tinha me dado conta. O tempo sempre obedeceu à cronologia da rotina sufocada e o meu passado foi, circunstancialmente, se transformando num papel amassado em branco. Agora, ressurgia como um vulcão imerso em lavas de fogo. A noite se debruçava sonolentamente sobre mim e a solidão que me instalou na vida, desde menina, reacendia a desnecessidade da dor.
Meu pai recebeu-me sem perguntas. Era o mesmo de vinte e cinco anos atrás; trazia a mesma expressão de ternura no olhar. Abandonou a cadeira na varanda, abriu sem dificuldade o portão enferrujado, abençoou-me e tateou o meu rosto como se quisesse me reconhecer.
__ Então é esse o rosto da minha bonequinha...
Quantos silêncios entre nós! A minha vontade de abraçá-lo havia perdurado entre os meus desejos desde a partida. Mas não o toquei.
Percorri cada cômodo da casa. Interroguei-me pelas janelas. E o pé de cajá? Sobreviveu sozinho à fome das minhas peraltices. Estava velho, estéril; recebeu-me sem euforia. Não fez sorrir nenhum dos seus parcos galhos, embora o vento se fizesse aliado. Nas paredes, rugas que o tempo não esqueceu de cavar anunciavam-se como veias onde o sangue, há muito, parou de correr. O retrato de minha mãe não recuperava o seu nariz afilado, a sua boca carnuda, a sua sobrancelha grossa; os seus traços se perdiam amarelados como se tivessem sempre pertencido a outro mundo. A sua máquina de costura, abandonada a um canto, presentificava sua ausência. E Menininha, Jardineira, M. Rocha, em que terras pastavam agora? E Leão, o cão fiel do meu avô?
Sem nenhuma resposta vi o sol acender os meus olhos insones. Dois homens fardados entraram no largo corredor, chamando-me pelo nome do registro. Alcançaram-me no sótão, conferindo os silos vazios.
Dona Julieta Lessa?!
Então era esse o meu nome. Sabiam. Acordei de um sono que não dormi. Aqueles estranhos, ali. Como sabiam do sótão? Que intimidade os fazia me identificarem?
Somos engenheiros da Prefeitura. Muito prazer!
Estenderam a mão como se tivessem ansiado por aquele encontro. Um deles ensaiou um olhar pelas telhas e, por fim, expressou os pensamentos:
A senhora deve ir para um hotel. Vai ficar melhor acomodada.
Hotel? Como poderia haver um hotel em Missal? E como eu sairia da minha casa, reconhecendo a condição de intrusa? Eu era uma estranha na minha própria terra! Estava, agora, impedida de reconhecer qualquer ligação com aquelas paredes, com aquele mundo já quase soterrado.
O outro, quase compreensivo, estendeu-me o braço, ajudando-me a descer, enquanto falava:
"A senhora sabe, a cidade cresceu, se desenvolveu. Verá como está. Não fará feio para nenhum turista que venha visitar o Lago das Flores".
Lago das Flores. . . murmurei surpresa, distante.
A avenida ficará perfeita, dará acesso direto ao Lago. Posso lhe mostrar o projeto.
Havia chegado à cidade errada. Eu não era eu. Ou eles se enganavam.
Projeto?
Eu não tinha o que argumentar. Eu era eu. Eles não se enganavam.
Fiquei para presenciar o espetáculo. Primeiro, o muro, a sacada onde meu pai fumava o seu cachimbo da índia. Depois, as salas, os quartos, o sótão, o pé de cajá e eu, que guardava em cada tijolo mutilado, em cada folha que voava, uma história esquecida. A minha infância ruía como há vinte e cinco anos. Quando os meus pais morreram. E eu também.
O taxi corria veloz pelo asfalto. Os pneus derrapavam com violência. Faltava pouco. Antes, o percalço de três dias de estrada escorregadia e a chuva impossibilitando a rapidez do percurso. Da estação até a casa não era tão longe. Mais longe estava o meu coração letárgico, congelado na necessidade e no medo de chegar. Quanto mais me aproximava, mais me sentia muda, seca, incapaz de qualquer raciocínio antes de saber por que voltava. Só as notícias determinariam o meu estado.
O muro desbotado denunciava o envelhecimento da minha ausência. Não tinha me dado conta. O tempo sempre obedeceu à cronologia da rotina sufocada e o meu passado foi, circunstancialmente, se transformando num papel amassado em branco. Agora, ressurgia como um vulcão imerso em lavas de fogo. A noite se debruçava sonolentamente sobre mim e a solidão que me instalou na vida, desde menina, reacendia a desnecessidade da dor.
Meu pai recebeu-me sem perguntas. Era o mesmo de vinte e cinco anos atrás; trazia a mesma expressão de ternura no olhar. Abandonou a cadeira na varanda, abriu sem dificuldade o portão enferrujado, abençoou-me e tateou o meu rosto como se quisesse me reconhecer.
__ Então é esse o rosto da minha bonequinha...
Quantos silêncios entre nós! A minha vontade de abraçá-lo havia perdurado entre os meus desejos desde a partida. Mas não o toquei.
Percorri cada cômodo da casa. Interroguei-me pelas janelas. E o pé de cajá? Sobreviveu sozinho à fome das minhas peraltices. Estava velho, estéril; recebeu-me sem euforia. Não fez sorrir nenhum dos seus parcos galhos, embora o vento se fizesse aliado. Nas paredes, rugas que o tempo não esqueceu de cavar anunciavam-se como veias onde o sangue, há muito, parou de correr. O retrato de minha mãe não recuperava o seu nariz afilado, a sua boca carnuda, a sua sobrancelha grossa; os seus traços se perdiam amarelados como se tivessem sempre pertencido a outro mundo. A sua máquina de costura, abandonada a um canto, presentificava sua ausência. E Menininha, Jardineira, M. Rocha, em que terras pastavam agora? E Leão, o cão fiel do meu avô?
Sem nenhuma resposta vi o sol acender os meus olhos insones. Dois homens fardados entraram no largo corredor, chamando-me pelo nome do registro. Alcançaram-me no sótão, conferindo os silos vazios.
Dona Julieta Lessa?!
Então era esse o meu nome. Sabiam. Acordei de um sono que não dormi. Aqueles estranhos, ali. Como sabiam do sótão? Que intimidade os fazia me identificarem?
Somos engenheiros da Prefeitura. Muito prazer!
Estenderam a mão como se tivessem ansiado por aquele encontro. Um deles ensaiou um olhar pelas telhas e, por fim, expressou os pensamentos:
A senhora deve ir para um hotel. Vai ficar melhor acomodada.
Hotel? Como poderia haver um hotel em Missal? E como eu sairia da minha casa, reconhecendo a condição de intrusa? Eu era uma estranha na minha própria terra! Estava, agora, impedida de reconhecer qualquer ligação com aquelas paredes, com aquele mundo já quase soterrado.
O outro, quase compreensivo, estendeu-me o braço, ajudando-me a descer, enquanto falava:
"A senhora sabe, a cidade cresceu, se desenvolveu. Verá como está. Não fará feio para nenhum turista que venha visitar o Lago das Flores".
Lago das Flores. . . murmurei surpresa, distante.
A avenida ficará perfeita, dará acesso direto ao Lago. Posso lhe mostrar o projeto.
Havia chegado à cidade errada. Eu não era eu. Ou eles se enganavam.
Projeto?
Eu não tinha o que argumentar. Eu era eu. Eles não se enganavam.
Fiquei para presenciar o espetáculo. Primeiro, o muro, a sacada onde meu pai fumava o seu cachimbo da índia. Depois, as salas, os quartos, o sótão, o pé de cajá e eu, que guardava em cada tijolo mutilado, em cada folha que voava, uma história esquecida. A minha infância ruía como há vinte e cinco anos. Quando os meus pais morreram. E eu também.
REDEMOINHO
Já me incomodou mais esse ininterrupto barulho do mar, remexendo minha memória. Esse silêncio intempestivo da clausura, sim, continua me impedindo de descansar em paz, interrompendo qualquer possibilidade de desaprisionar minha alma.
Tudo em volta é feito desse silêncio perturbador. Desde que os turistas e os pescadores tiveram certeza da fúria do redemoinho, a praia foi se tornando cada vez mais deserta, facilitando a imperecível vida dos fantasmas. Só eles ficaram e alguns nativos que não puderam abandonar suas taperas.
Passo a maior parte do tempo acompanhando o movimento das águas. As gaivotas aparecem em bando para beijá-las, mas não se demoram. Logo alçam vôo, como se não se importassem com a solidão que deixam para trás. Perco-as de vista e retorno às ondas enfurecidas a quebrarem na areia. Reagem contra o abandono. Depois se cansam da inutilidade da revolta e se acalmam; passam a correr brandas, como quem é submisso ao cumprir uma obrigação.
Quando havia turistas, pelo menos, eu restaurava a idéia da forma humana. Achava-os ridículos em seus chapéus com abas, em seus corpos besuntados e ávidos de lazer. Mas era bom ter notícias do mundo lá fora. Ultimamente, é só o uivo do vento batendo na porta e eu desarmada... absolutamente só no meu mundo.
Durante a madrugada ele se torna mais violento e eu tenho vontade de chorar, mas as lágrimas não saem; secam por dentro, impedindo um desabafo. Espero que ele se vá para poder sair, como faço todas as noites. Quem sabe Artur me aguarda na orla...
Vejo o redemoinho armando o laço e lembro aquela noite. Esperamos a ventania parar e saímos abraçados. Estávamos felizes, felizes demais para prever a separação. Nem pensamos em entrar no mar; só em contemplá-lo. Foi quando veio o desespero da sua mão a procura da minha. Ninguém viu o mergulho solitário de cada um de nós, tentando salvar o outro. Devo ter apagado primeiro, porque perdi de vista o seu balé angustiado no torvelinho louco das águas.
Quando caí em mim, dei com uma multidão compadecida, maldizendo a fúria da maré noturna, que devorava quem estivesse por perto. Eu restei na areia, como uma comida indigesta. Artur, nunca mais... Virou alga, sargaço, estrela do mar... Nunca apareceu. Desde então, fiquei aqui, esperando para partirmos juntos.
Não sei há quanto tempo colocaram essa laje sobre mim. Quando saio, sempre procuro uma data na lápide. Só encontro abandono na invasão dos ciprestes e o medo de nunca conseguir morrer.
terça-feira, 14 de agosto de 2007
Da rua
Ele me batia e me queria violentamente. E me dizia coisas horríveis de que eu gostava. Todo dia de quinta, às 8 ele passava e era certo eu estar esperando por seus dedos melífluos, sua boca sem céu nas palavras... Eu me doía toda se ele demorasse. Só de pensar ir com outro no dia dele, só de pensar ficava mal. Mas ele vinha nem que fosse atrasado para puxar meus cabelos e me mandar ficar de quatro como uma égua. Ele vinha e me queria violentamente, me dizendo coisas horríveis de que eu gostava. Nunca nada me prometeu nem deu. Nunca. Mas sabia que eu era da rua e gostava de fazer comigo o que seus instintos mandavam. Fui cadela, vaca, égua, cabrita, só não mulher para não me parecer com a dele... Fui feliz até o dia em que ele nunca mais apareceu. Só vi no jornal o convite para a missa.
Parto
Um cheiro branco de margaridas voava até sua janela branca de venezianas abertas. Acordar sempre foi seu desespero. Invadida pelo vento frio, alcançava com esforço o chuveiro e recebia paciente o jato da água. Sempre já passava da hora e era quando ela odiava ser só. Tivesse um homem e sairia plena, penetrada pelo dia antes mesmo que ele amanhecesse. Há quando tempo só o prazer frio e solitário da ducha. Há quanto tempo só o cheiro branco das margaridas e o dia nascendo nela como num parto a fórceps...
Quem mandou?
Devia ser domingo e ela estava engordando. Mas fez a pergunta fatal e ele saiu sem dar resposta. Tão só, sem filhos, sem amor, ela ficou à espera, tão sem que o doce arredondava todas as vontades. Ele ia voltar, ela pensou no começo e o tempo foi passando. Esperança parou de voar por perto e ela foi se acostumando a não esperar, a viver porque não poderia ser de outro jeito. Chorava mais quando ouvia “quanto sinto em dizer-te...” o mais importante não era o verdadeiro amor, era viver cada dia e mastigar o silêncio da casa, olhar a chave na porta no final do dia sem enganchar na outra. Quem mandou pedir que ele decidisse? Quem? Ela se arrependeu, ligou pra ele, pior não ficaria.
Ele quase passando com a outra na sua calçada. Ela quis fingir que não via porque se visse tinha que agir. Viu, agiu, se arrependeu. Não devia ter ouvido conversa de vizinho. Nenhum sabe a hora do travesseiro como é, a falta daquele pé roçando. Ligou, disse pra ele buscar o resto da roupa, falou do gás vazando, do chuveiro esfriando. Que tinha se ele não saía mais com ela, não dormia lá? Pra que ouvir conversa de vizinho? Ligou, pediu que ele fosse dar a extrema unção, era a hora final. Nem assim. No dia seguinte uma coroa de rosas com laços violeta. Ele nem soube que ela não morreu. Nem a viu mais gorda, só, tão sem como a deixara. Quem mandou pedir que ele decidisse? Devia ser domingo quando a solidão tornou-se eterna e irremediável. Sem mais nem coroa nem laços violeta ela parou de sofrer, redonda de tanto doce. Ele nem soube...
Viagem
Mais um gole de tequila e ela desabou. Com os olhos de quem esperava, ele a suspendeu nos braços, vagorasamente caminhou para o quarto e a depositou na cama de lençóis alvíssimos, certamente preparada para a festa. Há quanto tempo esperava vê-la ali sob seu domínio; ela tão poderosa em suas defesas, ali a seu dispor, as pernas quase nuas espalhadas sobre o cetim branco, a boca entreaberta quase pedindo um beijo. Ele escorregou a mão por suas coxas, suspendendo o vestido devagar. E se ela acordasse... consentiria que lhe retirassem as meias? Para deixar-te mais à vontade, estava preparado pra dizer. Não eram ruínas, destroços dela, era ela dormindo como as virgens de Azevedo. Recuou, doeu-lhe o peito. As mãos, sempre elas, advogando seu desejo e reprimindo-o. Parou antes de tocar seu sexo. Procurou o peito apertado, o coração o traía. Ela não se mexia. Viu que sonhava. Ela quer mais tequila, fez que ia buscar. Não voltou. Nem ela.
Pacote pesado
Terminava não em silêncio. Ela recostada na poltrona com os olhos úmidos de culpa sentenciava: acabou. Ele vitimado sempre num silêncio ensurdecedor não queria entender. As crianças. As dívidas. As dádivas. Um pacote pesado sobre ela irredutível. Seca, áspera, esponjava por dentro de nojo. Tudo menos pedir amor. Isso ele não fizesse. Ele fez. Implorou lucidez, amor.
Noites intermináveis fingindo dormir. Pesadelo nos olhos cerrados evitando conversa. Nem há mais o que dizer. Repetir tudo todo dia cansa, confunde. Ela não queria correr o risco de reconsiderar, de tê-lo sobre o seu corpo, de... Ela não conseguiria mais simular tolerância. Impacientava-se dilacerada pelos olhos molhados de acusação. Fria calculista egoísta. Não importavam os adjetivos. As farpas batiam e voltavam em seu corpo petrificado de recusa.
Noites intermináveis. Dias intransponíveis. Lugar comum. Ele acordava feliz como se não fosse com ele. Fazia planos. Difícil prolongar tanta coragem. Teve pressa de morrer. O outro nem sabia que era o outro. Alimentava os desejos dela como a um bicho alheio que não oferece risco de pertencer. Dizia "voa" e ela inflava, abria as asas. Já ganhava o céu e o outro disse medroso de responsabilidade ou de amor: "fica". E se foi. Ela ficou. Mastigando dolorida o alpiste que sobrou. Engasgada. Exaurida no silêncio de quem apenas consente a vida.
Tarde demais
Mordi o lábio contrafeita. Odiava-o naquele dia até sempre. Peguei a mala e sai atropelando a mágoa em uma tentativa de superioridade que não me era possível. Meu corpo doía como se uma tempestade o vergasse para direções impossíveis. Ele não haveria de saber da lágrima que embargava minha garganta. Não haveria.
Ainda lembro: “supostamente” ele disse “não tenho certeza” quando o interpelei sobre não saber ser feliz. Ele nunca tinha certeza das coisas e eu sempre voltava a Joyce recostada na poltrona. Ulisses, difícil e fragmentado como eu, recortava o silêncio e me fazia padecer.
Até que sai com o instante atravessado no peito, o nó, a lágrima paralisada. Eu, a mala e Ulisses escada abaixo com o barulho da porta batendo para sempre e a culpa de ter esperado o ódio arrombar as janelas e secar nossos lençóis. Ele não haveria de saber que pensei em ficar. Não haveria de morder o lábio contrafeito nem de me pedir para voltar. Era tarde demais para algum sofrimento.
Ainda lembro: “supostamente” ele disse “não tenho certeza” quando o interpelei sobre não saber ser feliz. Ele nunca tinha certeza das coisas e eu sempre voltava a Joyce recostada na poltrona. Ulisses, difícil e fragmentado como eu, recortava o silêncio e me fazia padecer.
Até que sai com o instante atravessado no peito, o nó, a lágrima paralisada. Eu, a mala e Ulisses escada abaixo com o barulho da porta batendo para sempre e a culpa de ter esperado o ódio arrombar as janelas e secar nossos lençóis. Ele não haveria de saber que pensei em ficar. Não haveria de morder o lábio contrafeito nem de me pedir para voltar. Era tarde demais para algum sofrimento.
Espera
Quando ele a encontra rapidamente na hora do intervalo de trabalho não sabe do dia inteiro de espera que ela carrega nos olhos. Ele a olha como se a visse e se vai. Ela o vê antes de olhá-lo e, resignada, ansiosa, se mantém ávida pelo que ele nem sonha que pode lhe dar.
Crime sem castigo
Não era de ternura que ela precisava. Era pobre, pobre, muito pobre, mas tinha a dignidade do coque sobre a cabeça, preso por um grampo que ninguém desconfiaria enferrujado. E tinha dois olhos azuis encravados na pele leitosa, como duas dissonantes águas-marinhas.
Num domingo de maio conheceu Raimundo no culto. Tão limpo de alma que ela nem pensou num vestido melhor. Deu-se. Suas pobrezas entrelaçaram-se e... nem mais o coque se viu, o azul dos olhos se perdeu...
Por que se impressionara tanto com Raskolnikov? Por que o apanhara quando a patroa jogou-o no lixo? É meu, abraçou-o e nem o odiou quando assassino. Quis ser Sônia Marmielàdov. Amor de salvação. Logo depois veio Raimundo com sua alma limpa e os bolsos vazios. Ele era tão terno que ela nem o viu tão pobre. Castigo sem crime a pobreza. Redimiu-se por fim. Não quis mais ser personagem de Dostoiévski e partiu.
Monólogo a dois
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Meu desejo também era ficar assim para sempre amarfanhada nesses lençóis, enterrada nos teus braços, apertando-me ao teu corpo até atravessá-lo. Mas há um litígio lá fora e um mundo me acusando de louca porque nunca me permiti sê-la e perdi o direito.
Não é o mundo que te acusa, tu não consegues derrubar os muros que tu mesma construíste à tua volta. Fica, eu te peço. Faz por ti a doação desse direito; o preço não é mais alto do que o que pagas na reclusão. Fica até atravessar-me, até colheres a flor que eu já não tinha e me permiti brotá-la só para que pudesses tê-la.
Ainda ontem pela manhã nem tua ausência existia porque não te sabia ser sequer um rosto na multidão mutilada que me perpassa a toda hora. E agora, do nada és meu mundo inteiro, meu ar, meu Deus num altar que nem preparei.
Quando me interpelaste nervosa, vi em teus olhos qualquer coisa antiga que sempre havia sido minha e soube desde lá que chegara o momento de entregar as armas e levantar as mãos rendido como um guerrilheiro abatido pelo desperdício da luta, não pelo inimigo. Fica que é o que queres. Que é o que eu quero: despir-te a roupa que te enluva a pele e tocar-te como um escorpião que para sempre deixará a marca. Fica que te visto depois com os gritos que tens guardados à minha espera; com o meu corpo te visto da lembrança de seres a mulher que soterraste no medo da vida. Abrirei cada fenda cicatrizada e devolverei à luz tua alegria abortada em tantos gozos fingidos. Fica por ti. Concede a ti a doação desse direito.
Não duvide que aprendi no silêncio meu melhor tom de voz. É que eu estava a caminho de ti há tanto tempo que aprendi todas as lições e as guardo de cor. Vim sem saber que estavas a minha espera. Vim de esperar-te tanto sem saber que estavas em ti todo esse tempo como um desejo. Nessa trilha que percorri, foram muitos os enganos e desacreditei que pudesses passar de uma verdade só minha imaginada e vivida na vontade, apenas na vontade avassaladora de encontrar uma justificativa para ter nascido. Agora compreendi tudo. Ficar seria perder todas as incertezas e abortar o que pode para sempre ficar nas minhas entranhas. Recuso-me a ser tua para não correr o risco de um dia perder-te.
Foi
Ele à janela todos os dias àquela hora, parado como extático contemplativo... Ela passava e interrogava aquele silêncio que não lhe pertencia. Ela passava Ele ficava numa afasia que nem Baudelaire conheceu. Imenso Impoderável Inatingível. E ela todo dia à mesma hora fotografa aquele delírio com suas lentes astigmáticas, doida pra ser vista revista. A janela ela sentia desconfiava mas ele...
Num átimo o revertério. Lençóis amassados, roupas desnecessárias. Até miava atravessada por uma corrente elétrica que não desligava. Curto-circuito conserto Curto-circuito desconserto. Irremediável o amor requentado. Um dia acordou desacordou Acordou: vontade de quebrar o tempo e deter o despertador. Um dia quem suspeitaria os chinelos gastos, o toque demorado o puído da meia teriam o mesmo fim: tédio tédio tédio. Horror. Holocausto. A respiração ofegante nauseava,
E os chinelos gastos e a meia puída, o amor demorado couberam na mesma mala. Sem destino escolheu o silêncio: colérico, empertigado, intempestivo. Farpas no olhar, fuzis nos gestos. Ele sem a janela todos os dias alado perdeu o êxtase e ela fotografou suas interrogações com suas lentes míopes. Onde aquele que à janela todos os dias àquela hora lhe tirava o fôlego? Onde? Onde? Onde?
Adeus às vezes é palavra analgésica.
Foi!
Todos os sábados
Ia sozinha levar os quiabos ao padre. Saia no joelho, lenço no cabelo para parecer educada no recato. Neta de Maria, afinal. Das frestas da janelinha da porta pronunciava um “ô de casa” tímido, quase tão pálido quanto os gerânios da janela sob o sol de agosto. Alguém vinha lá de dentro enxugando as mãos, com o agradecimento ensaiado.
No confessionário, os joelhos trêmulos, não podia dizer o que a invadia nas manhãs de sábado, quando tinha que atravessar a praça, de saia no joelho e lenço na cabeça com o saco de quiabo na mão. A tela, como as frestas, impedia seu rosto de ser. Era só a moça que ia levar os quiabos à casa do padre todos os sábados e nem ele sabia. Sem pecados confessáveis, não comungava. Não sabiam dela, mas ela sempre soube de si.
No confessionário, os joelhos trêmulos, não podia dizer o que a invadia nas manhãs de sábado, quando tinha que atravessar a praça, de saia no joelho e lenço na cabeça com o saco de quiabo na mão. A tela, como as frestas, impedia seu rosto de ser. Era só a moça que ia levar os quiabos à casa do padre todos os sábados e nem ele sabia. Sem pecados confessáveis, não comungava. Não sabiam dela, mas ela sempre soube de si.
O mar...
Deu-se na Baixa Danta o acidente, já quase manhã. Carro virado e sangue. Morte não. Ainda. Correria em casa, Creuza arrumando a mala, iam para a capital. Clavícula fraturada, Creuza se angustiou, mas bem que gostou do movimento. A capital assim de repente, o hospital e uma folga para um volta na rua. Ver o mar, todo mundo recomendava. Ver o mar e seu cheiro molhado do jardim da casa da cunhada rica. Ah, viver ali com o barulho do mar... Sonho impossível. Era a Capão do Galo seu destino, com a casa cheia de negros em quem mandar: dar lavagem aos porcos, catar folhas, pegar galinha... Na capital ia ser mandada. Quero não. O mar que fique lá com suas espumas de sal. Nem andar sabia só, então melhor ser visita, ninguém se impacientava. Da Capão era senhora, cabeça de piaba... nunca rabo de tubarão... O marido ficou bom, Creuza voltou pra mandar...
Vida emprestada
O pai, ah, o pai era doente dos instintos. Não podia ver mulher que os olhos e mais o resto do corpo arregalavam-se. Ele era são; gostava, mas como todo homem nascido macho. Puxava a fama e a inteireza de sua palavra dada e levada até o fim. Nada mais.
Casou com Creuza, plana de corpo e alma. Antipática, ela contrastava com o riso fácil do marido. O marido que o pai não quis pra ela, que não merecia o sogro. Ela não seria feliz, mas foi.
Foi... até o dia em que o carro virou e ele nem mais precisou ir à capital. Tudo ficou resolvido ali mesmo. Era o mar o destino de Creuza, e a solidão, e a vida emprestada para sempre. O pai viveu mais...
Casou com Creuza, plana de corpo e alma. Antipática, ela contrastava com o riso fácil do marido. O marido que o pai não quis pra ela, que não merecia o sogro. Ela não seria feliz, mas foi.
Foi... até o dia em que o carro virou e ele nem mais precisou ir à capital. Tudo ficou resolvido ali mesmo. Era o mar o destino de Creuza, e a solidão, e a vida emprestada para sempre. O pai viveu mais...
O Último beijo
Era noite e ela trajava vermelho. Uma noiva incomum numa cerimônia comum. A festa havia terminado, mas os lábios carmim pareciam ainda buscar um beijo que não fosse gratuito. Tudo queria lembrar que o tempo é uma traça imortal. A beleza de Felícia era uma taça de cristal quebrada, embora colada.
Não aproveitou o frescor dos anos para guardar seu amor verdadeiro... esperava, pelo menos, que a terra a acolhesse com louvor, embora soubesse que, com aquele gesto, não conquistaria piedade nem lágrimas. Só espanto. Teve a ilusão do poder, mas, no melhor da festa, puxaram o tapete.
Onde, agora, um beijo envolvido choraria sua boca? Onde um corpo sem mácula teria guardado as sobras da bela que já não era?
Aprumava a piteira entre os dedos e soprava a fumaça com força. Na efígie, via o vôo cego dos pássaros e viajava. A piteira, a fumaça já não a faziam tão só; tocavam-lhe, embora sem vigor. Pulmão... por que poupá-lo se tanto lhe feriam os espelhos?
Durante muito tempo preferiu não enxergar as rugas. Chegou até a acreditar que elas jamais viriam. Cobria-as sem enxergá-las, com pan cake. Sá abria os olhos para o retoque final. Também o cabelo se rebelava encrespado, opaco. Ela nunca viu. Ou não quis.
Num dia de raiva, Maurinho denunciou seu delito: "Te olha no espelho!". Desabou o rosto de outrora; ela via, então, que tinha murchado antes de se deixar colher. Terminou presa à solidão do caule. Mauro tinha razão quando foi embora: flores murchas só em túmulo abandonado!
Mauro tornou perceptível a irreversibilidade do tempo e a fez lembrar do revólver na gaveta da cômoda. O que lhe havia sobrado era feito de ausência: o amor que não teve, o filho que renegou nas entranhas, a beleza esvaída. Pelo menos escolheria partir de vermelho. Pintaria os lábios de carmim para o último beijo.
CARTA A ALEXIS
(Para M. Yourcenar)
Como não me deste a oportunidade de ler nos teus olhos tudo que disseste, querido Alexis, por medo de ser interrompido ou fraquejar a cada frase, também eu interponho certa distância entre a minha piedade e a tua pessoa; também eu me submeto à traição das palavras, embora, como tu, ache que só a música seja capaz de estabelecer o encadeamento entre os acordes. Foi ela o sinal mais claro. Deixaste-a como por mim e a ela voltaste por ti, quando afinal decidiste tua vida.
Antes de qualquer temor teu de eu pedir para ficares, digo-te que aceito teu adeus, porque agora vejo o rosto de todos os fantasmas anônimos que dormiram conosco durante esses anos e não os quero mais. Neste teu ato de imensa contrição, tua culpa, tua tão grande culpa, foi ter mentido e tanto sofrido por mentir, tanto teres sido infiel a ti mesmo. Já sabias, desde adolescente, que o teu sonho de um dia casar não constituía uma esperança, tu o consideravas agradável na medida em acreditavas que os sonhos eram todos irrealizáveis; tu nunca te inquietaste em vivê-lo um dia. Contaste com a minha bondade generosa e trapaceaste meu futuro e o teu. Acredito que tentaste não me trair, achando que podias comandar teus atos, te abstiveste do teu próprio corpo, deixaste que os acontecimentos se interpusessem entre ti e a tua natureza já bem definida, mas tua alma, por fim, mergulhou mais profundamente na tua carne e entendeste que viver o mistério dos corpos, não quaisquer deles, mas teus iguais, era teu destino.
Tu bem disseste que, nos primeiros tempos, eu pareci quase feliz, notaste que passei a usar roupas escuras para te agradar, dissimulando minha beleza. Sabias que eu percebia algo errado, mas não queria falar. Tentava ser amada. Tentávamos ficar juntos: saíamos demais, rezávamos, íamos à igreja, e já sabíamos, por certo, que juntos fugíamos de nós mesmos, para a rua, para a vida dos outros, esquecidos que havia um quarto à nossa espera, de passagem, frio e desguarnecido como os instantes de amor que me oferecias. Lembro o quanto eu ficava pálida, à espera da tua mão, disfarçando minha insônia e fingindo não perceber que tu também estavas acordado. Eu notava que ouvias o meu choro silencioso e fingias dormir porque nada podias fazer. Mas eu não sabia que nada podias fazer e me sentia desprotegida. Éramos dois doentes nos apoiando um no outro, aproximados pelo medo. Tentamos. Viajamos, Viena, Voroíno, Viena, verão, outono, as estações determinando nosso estado de espírito. Tudo pretexto para a mornidão do nosso leito. Não era mesmo o lugar o problema, nem a estação.
Depois da tua parca alegria com a notícia do filho que eu carregava no ventre, quis ainda crer que, ao trazer-lhe à luz, em tua terra, em casa dos teus pais, como querias, seríamos uma família. Tua frieza se acentuava com minha gravidez, meu corpo deformado, mas, depois seríamos uma família e não me negarias outro rebento, cheguei a pensar. Enganei-me mais uma vez. Os olhos azuis de Daniel foram a única coisa tua, ele parecia ter vindo só para mim. Sua existência não nos reaproximou, passaste definitivamente a dormir em outro quarto, no teu quarto de adolescente.
Sem saber o motivo, eu imaginava respeito, depois vi o fim de tudo o que pensei ter sido amor e procurei seu começo na residência alemã dos Mainaus. Lembro que quando cheguei, naqueles últimos dias do mês de agosto, logo me disseste que sabia tudo a meu respeito: que eu era linda, rica e perfeita. Ri dos adjetivos, deves recordar. A princesa Catarina estava decidida a nos unir e antecipou meu retrato, demasiado belo, para que me admirasses pelas qualidades que julgava maiores. Não fez por mal. Vi que tentaste resistir, pretextando tua pobreza e a minha destoante fortuna, somente. Hoje dizes que não te me revelaste por medo de perder-me e que chegaste a pensar que eu seria tua única chance de salvação... quanto egoísmo Alexis! Eu toda embevecida por tua fragilidade, tua indecisão e tua delicadeza, tua pobreza até, sonhava-me dona dos teus 22 anos para sempre. Eu, uma mulher; tu, um homem... A princesa e o príncipe de Mainaus quiseram tudo para nós dois, e noivamos em Wand, casamo-nos logo depois na igrejinha da aldeia. Eu não me deixei desconfiar que era a primeira mulher a entrar na tua vida, e atribuí aquela primeira noite desajeitada à tua postura austera de homem conservador. Como as outras.
Entendi só agora porque te refugiaste, depois que Daniel nasceu, no teu quarto de adolescente; foi lá que, aos dezesseis anos, te trancaste para avaliar o teu encontro aprazado com a beleza, querendo sentir remorso e vergonha de teres te dado ao primeiro igual. De volta ao mesmo quarto, encontraste naquele mesmo leito o passado e as reentrâncias do teu corpo marcadas no colchão, reunindo-te contigo mesmo. Não posso dizer que ali te perdi, porque não se pode perder aquilo que nunca se teve verdadeiramente.
Finalmente teu corpo te redime de ter uma alma, deixas de ser prisioneiro de instintos que não escolheste, mas aos quais decidiste te entregar. Quando vi que voltaste a tocar, logo que retornamos a Viena, compreendi que a música era uma confissão e um esclarecimento. Desadormeceste o som dos teclados e tua vida junto. Eu vi tudo ali, tudo o que eu já havia visto, mas não queria ver.
Que posso eu fazer agora: correr, rasgar-me, odiar-me, pedir-te perdão por ser mulher? Não, querido Alexis, não lamento tua partida, lamento teres ficado por tanto tempo... Teus dois anos de virtude comigo te desencantaram, tiraram tua cor. Não importa se te compreendo ou perdôo, aceitaste afinal não amar o diferente, preferiste, e não é tarde, o erro (se é erro) à negação de ti mesmo, que seria o início da demência. Finalmente entendeste que a moral em que fundaste teus princípios falsificou-te, esmagou-te. Não sou generosa nem boa como dizes, apenas nada posso fazer contra tua natureza. Bem que eu quis, mas sabes que foi inútil: Quod a natura inest, semper inest!.
Mônica
Viena, 19....
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