9/28/2010

Cabeça de vento
Sangue de ar, vapor
Barato na veia.

Sinta
O cheiro
De flores carbonizadas no ar.
O céu baixou
E envolveu os carros.

A chuva,
Longe, é miragem –
O azul do céu
Ligando neurônios e sinais
De trânsito
Produz um clima de sonho
E fantasmas.

Pense
Que sou, seja,
Miragem, vagar.

9/25/2010

r.a.m.

caminhando pelo estacionamento,
vamos para o desconhecido fingindo que o destino
é o restaurante, conversas
furtivas, risos, esta tarde e sua beleza
impressa de passagem nos espelhos parece
lembrar que o desconhecido pode ser
o nada, você
ainda acredita na felicidade e não percebe
o resto da tarde indo em direção
ao nunca, nem
os espelhos onde sua beleza enlouquece
átomos em movimento aleatório, nem
os anúncios breves do fim
em cada gesto no catálogo das horas
enquanto o mundo todo sorri
para a beleza, e dentro de nós
um cápsula impermeável, sem
orifícios, tenta atravessar a pele
com sua violência muda, cega,
surda, desesperada - por mais
que as peles se toquem
até o limite
e a carne atravesse a carne
o destino não negocia o incêndio
à sua passagem, as pontes
caídas, o silêncio.

9/24/2010

O que iam querer estas páginas
Ressecadas? Livros-carcaças
Discutindo crime e loucura
Insanidade coletiva & toda sorte
De fanatismo –
Livros anormais, em códigos de barras
Inoperantes?

E essa moça linda que não tem a menor cara
De bibliotecária.

O ipê roxo cada vez mais
Anêmico:
O sol se carcomeu em sanguessugas
E som crepitante de folhas secas se partindo
Quando caminhamos no estacionamento,
Depois das piadinhas burocráticas.

Amor à última vista,
Casanova de balcão de atendimento.

Como é fácil fazer a beleza sorrir,
Simpatia é parte do serviço.

A única beleza espontânea desse dia
Foi aquela que aumentou sua solidão.

9/22/2010

No chão acima do meu teto
Uma criança faz soar o hokku
Jogando bolas de gude.

Assim, cada um em seu jogo
Duas solidões não se encontram
Nada dizem e dizem nada

E tecem uma amizade simples
E passageira: não importando quem
E quem não percebeu.

9/18/2010

touch pad




(a partir da leitura de poema de Daniel Faria)

a dor, dispersa como a luz,
o amarelo secreto
por baixo da evidência
do amarelo (a variedade
interminável de formas
com que destroçamos
a nós mesmos), você se olha
no espelho quando tira a máscara
e vê o rosto igual
àquilo que o escondia
sem saber quem
deformou quem, dois
lados da moeda cunhados
na mesma forma banal, neste jogo
de azar você é o dado
viciado.

9/16/2010

Samba de raiz!

Samba de raiz

Koan

Num bar todos devem saber e não saber do que se trata.Todos devem saber que todos sabem do que se trata.Todos devem saber não saber em excesso do que se trata. Os movimentos devem ser suficientemente claros deixando à mostra o obscuro do interdito que é, por sua vez, o maior dos lugares-comuns.Somente o interdito pode vir a ser.Eis o sentido do que disse o bêbado xarope:nesta noite ninguém vai foder.

9/13/2010

Como se a luz vermelha
Dessa tarde
Uma dor secreta

Um substantivo-verbo ilógico
Como chove:

- Dor!

Uma invisível dor secreta
Na luz vermelha
Dessa tarde.

Ou pequenas dores, caladas
Incomunicáveis:

A luz vai caindo
Atravessa janelas
Entra numa sala vazia
Bate no chão de um ônibus
Um calor imperceptível nas calçadas

A luz, como a dor,
Dispersa, o amarelo secreto
Por baixo da evidência do vermelho.

Não chore, menina,
Ou chore –

Tudo é banal.

9/11/2010

Deimos (verbete)


Lua (quase) invisível, cravejada de crateras de gelo, está onde não deveria estar, sob a luz violenta de mil luas. Na hora das refeições seus minúsculos habitantes apreciam, sobretudo, a carne tenra das crianças tratadas com os rigores da puericultura estética. Todos têm um sangue azedo e espesso, que os torna loucos de mil maneiras diferentes. Sua principal demência se manifesta na fúria de derramar o sangue de seus irmãos e devastar terras férteis, para reinarem sobre um cemitério: o grande cemitério que é a lua de Deimos.

9/08/2010

Ah, traíras! (Um verbete)



Vestidas de civilização, com suas grandes nadadeiras adiposas, da família das piranhas, clã dos caracídeas!
Aos sussurros, aos telefones, aos bilhetes, aos comentários. Em todo o território nacional! Peixes comedores de peixes, citando a wikipedia: “Deve-se ter cuidado ao manipulá-las, pois costumam dar, em troca, mordidas muito dolorosas e que sangram abundantemente. São indesejáveis em piscicultura, pois se alimentam, insaciáveis, de alevinos e peixes jovens de outras espécies. Têm marcada predileção por sombras e escuridão.”
São particularmente sensíveis à noção de honra, sentem-se ofendidas quando flagradas em suas práticas de trairagem, porque estas, ora, são apenas expressão de sua natureza. Embora descendam de uma família de peixes meramente ornamentais, as traíras se sentem profundamente desrespeitadas. Que pode uma traíra se não trairar, destrairar, retrairar, maltrairar, trairar, enfim, com as inúmeras formas permitidas pela inumerável variedade de sua dentição. Bilhetes são seus dentes afiados, cochichos são seus dentes afiados, telefonemas são seus dentes afiados, emails são seus dentes afiados. Sussurrantes seres das sombras, o brilho opaco de seus olhos, os dentões que mal cabem na boca, como traços brancos e sutis ocultos no meio do musgo e da escuridão líquida. Bicho da surdina, bote certeiro, da grande espécie dos “puxa-sacos da Mater Natura”, como são chamados pelos cientistas todos os animais que agem sinuosamente por movimentos de adulação e contramovimentos de ataque, como a raposa, o abutre, cachorro-do-mato e a arara azul.

9/05/2010

rede

siga pelas galerias, boca
que lhe devora, sede
contínua da esfinge
cocaicômana suportando o peso
da pureza
em suas narinas brancas enquanto
você olha de frente a crise
das metáforas, o rol
dos vilipêndios
, a carne
do ato e a carne do sentido, os lugares
que agora são
restos da sua melhor
parte, enquanto você
está prestes
a se perder
de vez seguindo aquelas galerias
de fibras subterrâneas, não
sob a pele, “se você quer
enlouquecer vou
lhe contar toda a verdade que está por baixo
da verdade que está por baixo”, ela disse
sem saber que sua cabeça já estava
a prêmio, rolando como um dado
sobre os lençóis, se contorcendo
em espasmos e murmurando
eu já sei,
eu já sei,
eu já sei

9/02/2010

mário de andrade
quando sonhava
se via numa cidade
de ruas líquidas

moças e rapazes
eram uiaras
na cidade molhada
de mário de andrade

em sua última lira
o poeta elogiaria
a garoa de São Paulo

“nostalgia ultra-ulterina”
diria um terapeuta
mal-humorado.