Ontem quando li no Globo a notícia sobre o tubarão bocão, de quase 6 metros de comprimento, encontrado em Arraial do Cabo, no Rio de Janeiro, lembrei de um episódio que vivi naquelas águas claras.
Aconteceu numa época em que ainda podíamos acampar na areia da praia, que então era quase deserta. Chegamos durante a noite enquanto chovia. A escuridão era quase total. Armamos as barracas na base do tato e fomos logo dormir.
O dia seguinte amanheceu maravilhoso. O céu azul sem nuvens prometia um bom dia de praia. Eu e minha amiga Gelita nos levantamos cedo e ficamos à toa na areia a observar o mar. Ainda estava cedo para entrar na água cristalina, que devia estar fria.
Logo, mais uma pessoa do grupo acordou e veio se juntar a nós duas. Era um rapaz morava em Brasília, de visita ao Rio de Janeiro, e que não estava acostumado a despertar assim tão perto do mar. Ele tinha um apelido engraçado: Marcha Lenta ou, mais simplesmente, Lento.
Eu e Gelita queríamos levar o Marcha Lenta pra passear, para que ele conhecesse melhor as praias e a cidade. De onde estávamos, olhando para a praia, víamos um morro à direita que ia diminuindo de altura até se transformar numa pontinha que desaparecia no mar. Não sei quem teve a idéia de irmos até aquela ponta, que parecia ser a entrada daquela enseada. Partimos, sem avisar a ninguém, pois todos estavam ainda dormindo.
Aquele morro, que de longe parecia fofo e verdinho, não era tão amigo visto de perto: sua vegetação consistia de cactus e outros espinhos, que só paravam de crescer quando encontravam as rochas e o mar. Por isso fomos caminhando pelas pedras. Eu e Gelita usávamos apenas biquinis, o Lento uma bermuda. Devia ser umas 8 horas da manhã e nem havíamos tomado café. Pensávamos que o passeio seria curto e logo estaríamos de volta ao acampamento.
Já um pouco afastados da praia, vimos pescadores cercando peixes enormes numa rede. Eles batiam nos peixes com os remos dos barcos e a ponto da água do mar ficar vermelha. Horrorizados com o espetáculo, em vez de voltarmos para a praia, seguimos em frente, ainda procurando alcançar a pontinha que marcava a entrada da enseada.
Observamos que dois homens também caminhavam nas pedras quase junto de nós. Pela pele bronzeada e o jeito de falar, achei que provavelmente seriam simples moradores daquele lugar. O caminho começava a ficar difícil, as pedras escorregadias e por várias vezes eles me deram a mão para ajudar a pular de uma pedra pra outra.
Já estávamos andando há um bom tempo e nada de chegar à pontinha daquele morro. Era mais longe do que imaginávamos. O sol estava queimando nossa pele e as pedras já estavam bem quentes. Começamos a sentir fome, sede e, para piorar, encontramos diante de nós um tremendo paredão, uma falha na rocha, quase impossível de passar. Resolvemos voltar ao acampamento, mas no meio do caminho descobrimos que a maré tinha começado a subir e não era mais possível passar por onde tínhamos passado antes, a menos que caminhássemos sobre os espinhos!
Decidimos dar meia volta e de novo estávamos diante daquele paredão onde as ondas batiam lá embaixo. Neste caminho observamos que um peixe muito grande nos acompanhava junto das pedras. Ele ia e vinha e só víamos aquela sombra enorme correr naquelas águas limpas. Não sei que tipo de peixe era, sabia apenas que qualquer um de nós caberia perfeitamente em sua barriga! (Tenho suspeitas de que se tratava de algum parente remoto do tubarão bocão encontrado lá essa semana!) Dava medo. Nem pensar em voltar à praia nadando! O jeito era encarar o paredão.
Com os pés virados de lado, pisando em degraus mínimos de pedra quebradiça e abraçados àquela rocha fervente conseguimos alcançar o outro lado. O Marcha Lenta teve azar. No meio do caminho ele foi atacado por um casal de maribondos que saiu dos espinhos. Ele não podia nem espantar os insetos, que picaram à vontade suas costas.
O sol estava abrasador naquela hora mais quente do dia. Procurávamos alguma praia entre aquelas rochas ou então um caminho que pudéssemos trilhar entre os espinhos. Os dois homens que inicialmente nos acompanhavam a pouca distância agora haviam se juntado a nós, em grupo. Houve um momento, que nós paramos pra descansar numa pedra mais chata e um deles encontrou uma linha de pesca. Enrolou a linha grossa de nylon em cada uma de suas mãos e testou sua resistência. Eu e Gelita olhamos uma pra cara da outra e por um instante ficamos com medo. Afinal eles eram estranhos.
Finalmente chegamos naquela pontinha do morro. Na nossa frente, mar aberto. Pensávamos que seríamos capazes de ver a cidade depois daquela curva, mas estávamos enganados. Só haviam mais pedras, espinhos, cactus e o mar. Já não podíamos mais ver a praia onde nossos amigos acampados deviam estar nos procurando. Estávamos numa enrascada.
De longe vimos um barco grande de pescadores. Eles também nos viram, mas não podiam chegar perto por causa das pedras. Acenamos e eles responderam abanando os braços. Acho que perceberam o problema em que estávamos metidos e pudemos ver que eles apontavam para um determinado lugar no meio daquelas pedras. Sem entender direito o recado, continuamos a andar. Acho que cada um de nós estava se segurando pra não passar mal. O sol estava queimando muito e não tínhamos comido ou bebido nada. Devia ser umas 3 da tarde àquela altura.
Depois de muito andar naquelas pedras, já estávamos começando a ficar desesperados quando encontramos um obstáculo ainda maior. Diante de nós havia uma enorme falha na pedra, que formava uma gruta escura. As ondas vinham e entravam com força por aquele enorme buraco feito na rocha. Não havia lugar para passar. Acima de nós, ainda os espinhos.
Paramos pra pensar o que devíamos fazer. Quando as ondas recuavam, deixavam de fora algumas pedras negras de limo, que logo eram cobertas com o chegar de uma nova massa de água. Resolvemos dar as mãos, formando uma corrente humana, e pisar nestas pedras escorregadias no recuo, entre uma onda e outra. E lá fomos nós.
Mas não deu tempo! Eu, Gelita e Marcha Lenta recebemos o impacto de uma onda enquanto ainda estávamos pisando nas rochas negras dentro da gruta. A onda passou por cima de nós e encheu aquele buraco até o teto com a gente dentro. Foi assustador. Com a força da água, meus pés não conseguiram se firmar sobre a rocha e por alguns instantes eu me vi flutuando naquele azul sem fim. Mas cada um dos meus pulsos estava seguro com força pelas mãos daqueles dois homens, que provaram estar ali para nos ajudar. Quando a água recuou mais uma vez, eu pensei que não fosse aguentar. Era muito forte! A pressão nos meus pulsos aumentou e assim não fui levada pela força do mar.
Ao sairmos dali, estávamos mais assustados do que tudo. Ainda andamos bastante até que chegamos a uma ponta onde havia uma relva macia e um caminhozinho feito por gente, em vez dos espinhos. O caminho sumia no meio de árvores, arbustos - sombra finalmente! - e um milharal! Corremos pra pegar algumas espigas ainda verdes, mas não conseguimos nem provar: o som do latido de vários cães fez com que saíssemos correndo pela mata!
Nos separamos. Eu e Gelita corremos para um lado, Marcha Lenta e os dois homens para o outro. Ofegantes, minha amiga e eu nos escondemos atrás de um pedregulho. Além de muito queimadas pelo sol, estávamos agora sujas de terra e cheias de arranhões. E agora? Eu pensei que minha amiga ia desmaiar. Havíamos perdido as espigas de milho na corrida e não tínhamos a menor idéia de onde estávamos e o que fazer para sair dali.
Ainda andamos sem rumo pela mata até que ouvimos vozes nos chamando. Era o Marcha Lenta e os dois homens que nos ajudaram. Eles foram ter com o dono daquela roça e explicaram o que havia acontecido conosco. O proprietário do lugar mostrou o caminho que deveríamos tomar para voltar à cidade e ainda nos deu uma bolsa cheia de espigas.
Chegamos ao acampamento ao anoitecer. Todos estavam aflitos nos procurando desde cedo. Quando nos despedimos daqueles homens, agradecendo a ajuda, um deles falou: "Quando vimos vocês seguindo aquele caminho das pedras, nós resolvemos ir atrás. A gente sabe que é perigoso, mas não queríamos incomodar. A gente só achava que vocês iam acabar precisando de ajuda!" E não é que eles acertaram? Foi uma surpresa descobrir que eles estavam lá só para nos ajudar e proteger. Não sei o que teria acontecido conosco se não fossem aqueles dois!
É interessante que a gente cria um elo especial com as pessoas com quem compartilhamos estes momentos. Nunca mais vi ou encontrei aqueles dois homens, mas jamais os esquecerei. Encontrei uma vez o Marcha Lenta num show de rock e anos depois, caminhando pelo centro do Rio de Janeiro, vi a Gelita através da vidraça de um banco onde ela era uma das gerentes. Entrei para falar com ela, que me recebeu com um abraço. Duvido que algum dos clientes pudesse sequer imaginar os assuntos que nós duas estaríamos a conversar.
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Houve um tempo em que trabalhei durante vários meses numa área de risco na cidade do Rio de Janeiro. Entende-se aqui como "área de risco" um lugar geralmente dentro ou perto de uma comunidade carente onde há frequentes confrontos entre a polícia e bandidos, como também entre grupos rivais. Um lugar perigoso.
Nos primeiros dias, confesso que me senti bastante desconfortável. Esta sensação devia ser facilmente percebida, porque só de olhar as pessoas do lugar já sabiam que eu não era dali. Pareciam me olhar com desconfiança, o que me deixava ainda mais sem jeito. Era um outro mundo, uma outra realidade. E eu andava sem saber o que iria acontecer a cada passo.
Mas a gente se acostuma com tudo. Em poucas semanas, eu já sabia andar rapidamente pelos corredores, becos e ruelas. Por onde entrar para desaparecer instantaneamente da rua principal. Já me acostumara com a falta de privacidade dos moradores e não me inibia em cortar caminho pela casa dos outros, passando por baixo de roupas penduradas na corda, me esquivando de porcos que se regalavam em poças de lama, espantando nuvens de moscas e assustando os cachorros que apareciam no caminho.
Pela minha natureza comunicativa, fiz logo amizade sobretudo com adolescentes e crianças. Mas também aprendi novos reflexos e outras formas de comunicação próprias daquele lugar. Para que lado e a que distância deveria olhar com atenção. Um código que eu nem sabia que existia.
Costumava ficar de papo furado com a garotada, fazia brincadeiras. Pegava lápis e papel e desenhava seus rostos. Depois pedia que me desenhassem também. Caía todo mundo na gargalhada com os resultados. Me ofereciam doces e biscoitos, uma flauta pra tocar. A cada dia a gurizada aumentava em volta de mim.
Mas com a violência aumentando assustadoramente, decidi parar de trabalhar naquele lugar. Saí dali com lágrimas nos olhos ao me despedir dos garotos. Muitas vezes quando passava pela avenida principal e olhava em direção daquela comunidade, eu constatava que mesmo de longe eu ainda reconhecia muitas das casas humildes e vielas. Eu ainda sabia o que dava aonde.
E tudo passou. Então, já trabalhando em outro lugar da cidade, uma vez eu estava voltando para casa num ônibus, às 11 da noite. Devia haver uns 15 ou 20 passageiros no ônibus. Todos cansados, em silêncio. Ao passar por uma região perigosíssima, uma das muitas apelidadas de "Faixas de Gaza" da cidade, todo mundo ficava meio apreensivo dentro do coletivo. Tudo o que queriamos era que o ônibus passasse rápido por ali. Era óbvio que, no fundo, todo mundo estava com medo. Rezávamos para que nada fizesse o ônibus parar. Não-para não-para não-para!!!
Só que nesta noite o ônibus parou. Um olhou pra cara do outro e aguardou o que poderia acontecer em seguida. Naquele horário era tudo possível. Ouvimos as vozes, os passos, as gírias de um grupo de uns 10 entrando no ônibus e tomando o corredor central. Ninguém tinha coragem de olhar de frente. De rabo de olho, eu vi as pernas magras, os chinelos de dedo, os pés esparramados. Todo mundo esperando pra saber o que ia acontecer. Atrevida, olhei pra cara deles -- bem na hora que olharam pra minha cara também!
2 segundos se passaram até que um deles, o que usava um gorro que cobria as sobrancelhas com um brasão do Flamengo, se abriu num sorrisão: "AEEEEÊ QUEM TAÍ!!!!" Eu os reconheci imediatamente! Eram os garotos que eu conheci naquela "área de risco" onde trabalhei!!! Eles, que eram uns guris, já estavam uns homens! Que surpresa! Me reconheceram! Afinal era ótimo! Já não estava mais com medo!
Todos sentaram em volta de mim fazendo arruaça. Era o jeito deles. Uns botavam meio corpo pra fora da janela do ônibus gritando "UHUUU!!!" Começaram a batucar na lataria do veículo. "E AÊ?! NUM PARECEU MAR LÁ NAS PARADA?" (Só falavam gritando.) "PARECE LÁ! TÁ MANERO!!!". Começamos a lembrar das brincadeiras e caímos na risada. Um deles me falou que ainda guardava meus desenhos.
Eles foram embora dois pontos depois e o ônibus seguiu viagem tranquilo. A zona de perigo ficara para trás. Então eu percebi que os outros passageiros estavam me olhando de forma esquisita. Estavam todos ainda paranóicos. Continuavam desconfortáveis, evitavam meu olhar. Uma coisa estranha que eu não sei nem explicar. Até que entendi. Eu, euzinha, passei a ser a “suspeita”!!! E foi assim que por meia hora eu me senti como se eu fosse um dos garotos da faixa de Gaza.
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