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segunda-feira, 18 de dezembro de 2017

Entropia

Na primeira metade do século XV, em romance meu não publicado, o sonho de reversão da entropia: 
“Prouvera ao Todo o Poderoso que as coisas corressem em sentido contrário – a vida, da velhice para a infância, os rios do mar para a nascente, as montanhas do cume para o vale que um dia foram — e todo este mundo sempre em mudança seria um lugar bem diferente e certamente bem mais tranquilo, talvez ainda intacto o Jardim do Éden onde fomos criados e nados: Adão e Eva, conhecendo antes o mal do pecado original havê-lo-iam evitado e, se o não fizeram, nós, seus descendentes, à medida que os anos passassem, corrigiríamos cada um dos erros da juventude que nos atormentam na velhice e não terminaríamos os nossos dias enfermos, rabugentos, amargos como fel, antes risonhos e felizes como crianças de peito a quem nem o Mundo nem a alma, nem o próprio corpo doem, até que, paulatinamente, desapareceríamos bem aconchegados no ventre materno. Os próprios rios, em vez de desalmadamente procurarem destino incerto resvalando por encostas, lançando-se por penhascos, embatendo furiosos contra rochedos que lhes barram o caminho, espreguiçar-se-iam tranquilos da foz para a nascente, contornando obstáculos, evitando sofrimentos, e as montanhas, livres do pecado da soberba, minguariam das alturas para o vale ou a concavidade que antes foram, sentindo-se tanto mais próximas do Céu quanto mais dele se afastavam...”
JCC, não publicado

sexta-feira, 18 de abril de 2014

Sexta-feira da Paixão

Talvez o Senhor tenha morrido de velhice
Esther assustou-se com a heresia da irmã: Não digas nunca essas coisas à frente do pai!
Porquê? Tudo morre. E o Senhor já era tão velho
Também eu protestei. E, mesmo se tivesse morrido, havia o Filho.
Pois, mas é tão bonzinho que O mataram na cruz. Como poderia pôr fim aos desmandos dos homens? Sempre pronto a perdoar o mal aos inimigos! Vede o Pai! Olho por olho, dente por dente. Cá se fazem, cá se pagam. Ou o homem se portava bem, ou o castigava. E hoje, com tanta imoralidade, tanta depravação, tanto mal, não intervém, não lança sobre nós nem as águas do Dilúvio, nem o fogo de Sodoma e Gomorra.
Concluiu tristemente: Deus está morto. Talvez até nunca tenha nascido, talvez tenha sido um sonho nosso, alguém em quem depositámos a esperança de que zelasse pela ordem do Mundo. E o Mundo nunca teve ordem. É sabudo que as coisas pioram sempre, as crianças envelhecem, as mais fortes construções humanas esboroam-se em pó, à civilização segue-se inevitavelmente a barbárieO nosso povo foi feliz no tempo do Pai Abraaão? Pois veio o cativeiro da Babilónia. Foi feliz com o rei David e seu filho Salomão? E veio o cativeiro no Egipto, a dominação romana, a diáspora. Há séculos que amargamos, que expiamos culpas que não são nossas, e o pior, tenho a certeza, está ainda para vir!
Eu queria pôr termo àquela conversa, não por me ofender, que em crianças todos dizemos inocentes disparates e blasfémias, como essa de que Deus estava morto ou talvez nunca tivesse nascido, e além disso os judeus têm a sua própria religião, os seus costumes e autoridades, mas por me desagradar ouvir aquela jovenzita franzina a discretear sobre a Divindade como se fora doutor da Igreja ou tivesse longa experiência de vida com honesto estudo misturada.
Nunca sonhas com coisas boas? e, maroto, atrevi-me: Com rapazes?


Abanou tristemente a cabeça. Vim ao Mundo para sofrer. Como o teu rabi Jeschoua Natzarieh: para expiar os pecados dos homens. Como Ele, sofro o mal que houve, o que há, mas sobretudo o que haverá.

Inédito meu. A acção situa-se no séc. XIV, quando os verbos terminados em -er faziam o particípio passado em -udo, e.g., saber, sabudo.

domingo, 27 de outubro de 2013

Um amor inventado (5)

Mais para a noite, já com a sala de refeições limpa e arrumada, a loiça lavada e a cozinha em ordem para a lida da madrugada seguinte, o João e a Berta poderão namorar um pouco, na sala, nada de poucas-vergonhas, chegam as que já fizeram, pensa a patroa, momentaneamente esquecida das suas enquanto jovem... Sentados em frente um ao outro, conversam em voz baixa, mas quando do hall que serve de recepção e de escritório chega o tilintar das moedas retiradas da caixa registadora, se ouve o ranger de ferrolhos que trancam portas e janelas, certos de que os donos da pensão estão ocupados e afastados, perdem compostura e atiram-se desesperadamente um ao outro, ardendo ambos no fogo do desejo, as bocas coladas, a Berta de olhos fechados, os do João arregalados, e as mãos dele, talvez por estarem desocupadas e quererem também elas participar, tacteiam em vão procurando abertura para a pele dos seios da Berta, e ela, receando ser apanhada descomposta, afasta-lhas, mas teimosas, insidiosas, porfiam por cima da roupa, talvez para confirmarem se ainda se ajustam perfeitamente, feitas umas para as outras, dissera a Berta naquela noite de Julho já tão distante... Ah, mas tendo as mãos encontrado passagem e posto a nu um seio, a boca toma a dianteira, ardorosamente, apaixonadamente, já a Berta ruge, novamente em surdina, e tem de o afastar a contragosto — uma mulher como ela não é de ferro, e certas coisas são como o vinho, se não é para fazer efeito mais vale afastar o cálice...

Ouvem porta que bate ao fechar, saltos altos martelam no corredor, advertências inequívocas de que lá vem a patroa, ruidosa para evitar surpresas, para não ver o que não quer — então teria de dizer o que é seu dever mas não seu prazer — e encontra-os decentemente sentados frente a frente, apenas as mãos enlaçadas mostram que se trata de um par de namorados, respeitável, constata com satisfação dona Noémia, que não admite poucas vergonhas em casa sua, embora no seu íntimo saiba que rapaz tão bem comportado, se existe, não servirá nunca para mulher que se preze — há que guardar as aparências, mas não as ilusões. Chega o marido, boceja, são horas de deitar, amanhã, domingo, será dia de trabalho como os outros, sete dias tem a semana, cada qual de labuta, só o Senhor, porque é Deus Todo-Poderoso, pôde descansar num deles...

quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Um amor inventado (4)

Amanhã (...) dirá das boas ao mau amigo que o atraiçoou, encher-lhe-á os ouvidos: se pensa que a Berta gosta dele é um grande parvo, está na cara que dorme com o primeiro que lhe entrar no quarto; ofenderá sentimentos e moça perguntando repetidamente quanto é que lhe pagou... O João seguirá mais adiante ou
mais atrás, desinteressado da sua companhia, que parece querer evitar --- como gato que entornou o leite,
na opinião do Jorge, porque não está para aturar as provocações do ex-amigo, pensará amiúde o João e, para fugir às suas conversas, pedalará furioso, cheio de força como se tivesse dormido regalado toda a noite, embora, como sabemos, apenas tenha caído no sono por breves instantes, após cada uma das vezes em que o sobrado rangeu. Vai enlevado no seu mutismo, a cabeça perturbada por ideias e sentimentos contraditórios --- talvez goste da Berta, e o aperto que sente na garganta seja a saudade a magoá-lo: apesar de só se ter afastado dela duas escassas horas, já os separam montes de pedra e montanhas de preconceitos; mais do que a estrada que se abre à sua frente --- rectas, curvas, subidas penosas, descidas em que folgam as pernas --- o que lhe enche os olhos é sempre o rosto da rapariga, os loiros cabelos soltos, os dentes fortes e sãos, a pele branca, as sardas, até nas mamas --- ah, as mamas! Maiores do que pareciam com ela vestida, mas como se lhe ajustavam às mãos, aveludadas e rijas! e os mamilos... Melhor pensar noutra coisa, pedala numa bicicleta e se se entusiasma lá está o selim para o reprimir dolorosamente; por isso, faz subir o olhar, passa pela boca ardente que parece querer engolir inteiro o seu ser, e afoga-se nos olhos, fundos como poço verde dos limos com que as rãs o atapetaram. Olhos que se despediram ‘‘tão tristes, tão saudosos, tão doentes da partida’‘ estavam os rapazes prestes a abalar. Ignorou o Jorge (...), que parecia esperar justificação atabalhoada capaz de lhe salvar o orgulho. Foi direita ao João, já montado na bicicleta, agarrou-lhe o braço nu e suplicou: --- Promete que não te esqueces de mim.

Ao lado, o Jorge, despudoradamente, ofendia a moça e ridicularizava o João: --- Isto é só amor! E para se apaixonar, basta entrar-lhe no quarto, que a Berta deixa sempre a porta aberta! Tás aqui tás casado coa tipa! ‘Bora, que o fotógrafo já está à nossa espera, na estrada de Coimbra!

Envergonhado, apenas conseguiu responder que jamais a esqueceria. Então, sem timidez nem discrição, a Berta puxou-lhe a cabeça e beijou-o na boca, profundamente, demoradamente, como se procurasse aprisionar-lhe a alma, ou então apenas impregná-la com lembrança que o acompanhasse na viagem de regresso à aldeia natal e não mais lhe permitisse olvidar a criadita da Pensão Estrela. Partiu, deixando atrás de si palavras de circunstância que se misturavam com as lágrimas que jorravam do poço fundo que eram os olhos da Berta fundidos num só, tão perto de si e tão profundamente o olhava, lágrimas que rolavam pelo avental, tantas, tão abundantes, que algumas tombavam na terra batida do caminho, desaparecendo no pó como as palavras na aragem matinal.

quinta-feira, 10 de outubro de 2013

In illo tempore

Começa a nossa narrativa já não naquele tempo em que Jesus andava pelo Mundo, mas noutro igualmente saudoso, em que a missa era ainda em Latim para gáudio da miudagem que, ao fundo da igreja, o mais afastada possível de beatas, pouco compreendendo e menos ainda querendo entender, adulterava as respostas, mantendo a música: se, do alto do altar, o padre abria os braços e lançava cantado Dominus vobiscum, haveria malandro que substituiria o Contigo também entoado em coro por Merda pra ti também, com ar tão inocente que se, acaso, olhares indignados se viravam para trás era por causa da risota e não do dito... Orate frates, dizia o vigário e o povo respondia em vernáculo Oremos, enquanto ajoelhava no cimento da capela — mas o que se ouvia, se estivéssemos perto e atentos, era moço sussurrar, ao baixar-se como faria em vinha para arrear o calhau: Caguemos!

Pregado no crucifixo, Jesus refulgia quando a passagem da sotaina do padre espevitava as velas, como se também ele animasse com os disparates da mocidade naquele ritual chato e repetitivo e então eu pensava que se Ele saísse da cruz onde o aprisionaram para todo o sempre, também Ele quereria escafeder-se do cheiro a cera e a incenso, sem mágoa abandonaria beatas e templo mal iluminado e, atraído pelo Sol que resplandecia nos vitrais, voaria aliviado para os céus, sem esperar pelo final daquele santo suplício semanal que torturava a nossa juventude e O castigava há quase dois milénios...
Corria assim a vida, lenta, chata, sonhando com os vinte anos, distantes, tão distantes como a eternidade — então eu deixaria a aldeia, embarcaria, correria mundo sofrendo tempestades, evitando icebergues, sim, conhecia já a palavra, que já lera e relera Pedro, Pescador de Baleias, e também eu as caçaria, ou enfrentaria os piratas na Ilha do Tesouro, ou então chamar-me-ia Zé Crusoé e sobreviveria com arte e manha, sozinho numa ilha deserta do Pacífico...
O Sr. Prior prosseguia com o ritual e eu alheava-me novamente, e conversava agora com o próprio Jesus, persuadindo-O a deixar-me ajudá-lO a endireitar o Mundo, que tão mal andava; já então a Morte, como fim de tudo, me apavorava, sem que, por isso, me convencesse a retórica do padre apregoando o Céu, assustando com os padecimentos infinitos do Inferno. Não, aquele Céu de devoção beata, água benta e hóstias desenxabidas, tresandando a cera e a incenso, feito à imagem e semelhança de uma qualquer capela mal iluminada, onde o prazer adviria exclusivamente da eterna adoração a Deus, não me convencia, como me não seduzia viver a Eternidade na companhia dos velhos e velhas que assistiam ao Santo Sacrifício dominical.

Sobrevivíamos; hoje, meio século depois, creio que éramos felizes; naquele tempo, a palavra não tinha significado. Sabíamos o que era doença e saúde, fartura e miséria, frio e calor, mas felicidade não pertencia ao nosso vocabulário.

Um amor inventado. À venda na Leya Online

domingo, 6 de outubro de 2013

Um amor inventado (2)

"É tempo de nova pausa na narração, não para virarmos envergonhados a cara para o lado, mas apenas porque os jovens precisam novamente de intimidade, já outra vez o sobrado range, força ele para baixo, responde ela para cima, até parece que estão em desacordo, eles que rugem em uníssono. Deviam ter apagado a luz, para que, mesmo que quiséssemos, não víssemos nada; assim, não há como evitar, diga-se apenas que fazem um belo par, enlaçados, momentaneamente apaixonados, novamente alquebrados, outra vez o João a adormecer — sempre a mesma coisa, só para eles a cena não é monótona."

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

A peste em Lisboa (1385)


Lisboa estava caótica, fétida, os excrementos amontoavam-se nas ruas e vielas, cobertos de moscas, o ar irrespirável da fumaça do alcatrão e azeite de purgueira que, talvez influenciados pelo nome, queimavam constantemente num esforço vão de purgar a cidade dos miasmas, de manhã à noite ecoava o dobre plangente dos sinos a finados cortado pela gritaria atroz das carpideiras, acompanhada de imprecações e ameaças contra os judeus, causadores daquele castigo de Deus por termos entre nós semelhante canalha ímpia. Eu via-me então a enfrentar a turba para defender minha mulher, minha filha, a sua família, perseguido como anos atrás — parecia-me a uma vida de distância, o que não surpreende, que as vidas então soíam ser breves — quando me acusaram vilmente de haver abusado de um rapazinho. Talvez, pensava então, os desígnios divinos sejam realmente insondáveis e Ele tivesse poupado Esther e nosso filho aos desmandos e horrores do nosso tempo: como era possível, depois de séculos a viver lado a lado, é certo que com desconfianças constantes e brigas frequentes, que não tivéssemos aprendido a tolerar os judeus e as suas diferenças? Como era possível que, em nome de um rabi que nos ensinou a amar o próximo, os perseguíssemos cruamente e os matássemos barbaramente? Sim, também eu matei. Porém, a salteadores, e na guerra a outros quiçá melhores do que eu, que igual me haveriam feito se, por sorte ou por ser mais novo, me não houvera antecipado. 
Porém, nas ruas de Lisboa apedrejava-se a mulher ou a criança judia, queimava-se gente igual a nós apenas por ter religião diferente e porque, não podendo fazê-lo à peste, se virava a cólera contra os mais fracos; queimava-se bruxa, porque alguma vizinha denunciara pobre mulher por supostos feitiços com que lhe haveria roubado o homem, como se para tal não abastasse a juventude, o maior ardor entre lençóis, o melhor feitio, ou um palmo de cara menos estragado pelas bexigas…
Todos os meus conhecidos haviam sumido da cidade. Um dos últimos foi meu primo, outra vez acusado de sodomia — fugira apressadamente antes que o meirinho lhe deitasse mão; colocara-se, constava, ao serviço do Duque de Nápoles, aí exercendo o seu mester de homem de armas; D. Soeiro fugira à peste e refugiara-se com a família na sua quinta de Cascais, onde tentava conseguir maridos para as filhas, todas elas prenhes em fim de tempo, como querendo contrariar a mortandade que tomara conta da capital; Hermengarda morrera da maleita que consigo levou também o fiel preto que nem espada nem navalha atemorizavam. Vendo-me só, resolvi também eu abandonar a capital, não na esperança de que longe dela, sem ter presentes lembranças de felicidade anterior, meu mal esmorecesse, antes para me enterrar em Lamego como num túmulo, enquanto não chega a hora de para um de pedra ser carregado.
Gheke Pepe (inédito)

terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Gheke Pepe: explicação do título

O título de um romance é sempre uma escolha difícil e arriscada. É a primeira possibilidade de perder leitores. Eu deixo-me levar pelo instinto, o que, por vezes, implica longa e laboriosa procura.
Por exemplo, Do Lacrau e da sua Picada vai buscar o título ao capítulo final, em que surge curandeiro que promete curar o cancro com a picada do escorpião, o que suscita no narrador uma  analogia entre a verdade daquele homem, honesto mas ignorante, e a verdade da sua mocidade maoista. 
Entre Cós e Alpedriz teve vários títulos provisórios: A Joaquina, De Um Verão Até ao Outro... O título final decorre do anexim repetido na obra: "Entre Cós e Alpedriz, qualquer burro é juiz!" 
Um Amor Inventado  -- porque o escrevi motivado por poema que marcou a minha juventude:  A Invenção do Amor, de Daniel Filipe.
Gheke Pepe: o título surgiu-me num sonho, após noite em que tinha estado a ler Borges. Por superstição, guardei-o. Eis como ocorre ficcionado na obra:

Ouviam-se desvairadas linguagens de estranhos povos a que chamamos ingleses, sendo embora muitos deles galeses, bretões, escoceses — em comum, a destreza no manejo do arco e do punhal e o amor à guerra e às matanças. E nesta Babel até me parecia já familiar o falajar moçárabe dos numerosos alentejanos e algarvios que engrossavam a nossa hoste. Havia de tudo: fidalgos e vilãos, patriotas, matadores, ladrões. D. Nuno, para disciplinar a hoste, havia proibido mulheres e jogo no arraial, embora os ingleses tivessem as suas próprias práticas no recato de suas tendas, de onde, por vezes, jorrou sangue: como me dissera tempos atrás meu primo, matavam a homem com uma frieza desconcertante, sem uma palavra ameaçadora, sem um gesto de aviso, sequer sem um olhar, menos ainda com breve oração pela alma que despachavam sem confissão para Satanás, e continuavam o jogo ou a bebida como se nada de anormal ali se passara. Bebiam continuamente da sua cerveja, horrível bebida acre, de uma aguardente fortíssima a que chamam uísque, do nosso vinho e bagaço…
Na noite anterior, certamente devido à mistura de tão desvairados linguajares, ao variegado de estandartes e ao abuso da bebida, tive sonho assaz estranho: nele, o meu escudeiro erguia alto o pendão da minha hoste, um leão garboso com os dizeres Gheke Pepe. Não se me afiguravam palavras de nenhuma das linguagens do nosso exército, pelo que lhe perguntei o que significavam. E ele, rindo, respondeu-me:
 — Bebiam mais do que falavam.
 — Improvável, retorqui.
Tão forte fora a impressão causada pelo sonho que logo de madrugada acordei o meu valido e o incumbi de nos fazer tal pendão, cosendo no pano o leão do brasão que capturei nos Atoleiros, tendo depois conseguido a troco de meia canada de aguardente que um galês pintasse nele a vermelho em lindas letras góticas a estranha inscrição, que por algum motivo lhe deve ter parecido familiar. Por gestos, quis saber o que significava.
 — Bebiam mais do que falavam, expliquei-lhe no meu inglês macarrónico, acompanhado por gestos elucidativos.
Riu perdidamente ao ponto lhe faltar o fôlego e, quando o recobrou, só me repetia, apontando para mim primeiro, para ele depois: — You no, us, us! Portuguese falar so much!
Quando o meu escudeiro alevantou a lança em cuja ponta drapejava o pendão, logo a curiosidade atraiu os moços, cavaleiros e peonagem da nossa Ala do Namorados, e o próprio Rei, intrigado, se me dirigiu, fazendo-me corar como donzela ao tratar-me por dom:
 — D. Rodrigo Semedo, que dizeres bizarros são esses que haveis escritos no vosso estandarte?
Risonho, D. João aprovou. Agradava-lhe a ousadia de hastear pendão, a bizarria dos dizeres, antecipando o mundo novo que ali começaríamos, livres das peias da vassalagem aos grandes senhores de outrora.
Cavaleiros moços, invejosos da atenção que o Rei me dera e do sucesso do meu estandarte, apoucavam-me: que só fizera um novo por não o haver velho e nele faltavam símbolos de Nosso Senhor e de Sua mãe…
— O meu linhagem remonta pelo menos ao tempo da senhora rainha dona Tareja e meu avô Rodrigues pelejou no Salado e lá foi armado cavaleiro pelo próprio rei de Portugal, que então o alcunhou de Sem Medo. E o meu outro avô, Lançarote Pessanho, meu parente por via materna, foi almirante do senhor D. Pedro. Qual de vós se me iguala? E a Jesus e à Virgem, havemo-los no estandarte do Condestável e no do Rei, que a todos os demais se sobrepõem e que nós haveremos de defender do inimigo com as nossas forças e vidas.
A eles, quase todos filhos de infanções, calou-os a réplica, mas a inveja persistia: D. João tratara-me por dom e em público, a mim que sendo embora fidalgo de quatro gerações a tal título nem eu nem ninguém de meu linhagem ganhara até então direito, nem sequer meu avô Semedo no Salado, nem o meu avô Pessanho, quando almirante e nas boas graças de el-rei — e o pendão era lindo, atraía as atenções de todo o arraial:
 — É convosco que os Castelãos primeiro virão brigar, vendo que vos haveis apropriado de estandarte leonês, ou intrigados pela vossa algaraviada. E porfiavam: os dizeres deviam falar de S. Jorge e de Portugal, não de bêbados.
Meu primo, alferes da nossa ala, chegado também ele a admirar o estandarte, exortou-os: — Leixá-los vir, não é o que todos nós queremos, que o inimigo primeiro que a qualquer outro nos acometa? Enchei os vossos corações de brio e de orgulho, leixai de parte a inveja de D. Rodrigo Semedo, que guerreou bravamente nos Atoleiros, onde o próprio Condestável o armou cavaleiro sobre o sangue de fero inimigo que ali derribara, ajudou na conquista do Alentejo, defendeu com el-rei Lisboa, sempre leal e valente. Quereis também vós alçar pendões? Pois ganhai hoje esse direito, que aqueles de vós que cavaleiros já sois aqui honrareis vosso título e linhagem e aqueles que ainda o não são neste campo de Aljubarrota virão a ser armados por seus feitos e proezas. Se inveja deve haver, que seja da ferocidade, da valentia, do sangue inimigo derramado. E levantando a espada faiscante exortou-nos:
— Irmãos, é hoje o nosso dia. Triunfar ou perecer!, bradou.
E toda a Ala dos Namorados gritava altas vozes com ele: Triunfar ou perecer! — sob a mofa dos ingleses, duvidosos do valor daqueles moços imberbes, nunca antes provado em batalha feroz como a que se avizinhava. Pobres inocentes, que imaginavam a guerra a partir das novelas de cavalaria, torneios honestos e elegantes, cavaleiro contra cavaleiro, quase amigos que apenas se digladiavam por amor de suas damas. Tinham-me perguntado qual a minha. Não percebi. E eles, como se conhecedores fossem da guerra e de suas leis, quase com sobranceria: — Qual o nome da dama pela qual vos bateis? Que todo o cavaleiro deve ter uma a quem honrar com seus feitos.




domingo, 26 de agosto de 2007

Do lacrau e da sua picada

Título do meu primeiro romance concluído e objecto de tentativa de publicação. Deduz-se desta afirmação:
  • Que houve tentativas anteriores;
  • Que os esforços conducentes à publicação da obra por meios convencionais não tiveram êxito.

Com efeito, não acordei um dia decidido a escrever um romance. Desde miúdo que sabia que havia de ser escritor (embora muito haja a dizer sobre a matéria e sobre o termo “escritor”, isso fica para outra ocasião). Durante décadas, tentei estruturar algo merecedor desse nome, primeiro rabiscado em papel, depois batido à máquina… O computador facilitou-me a vida, não tanto por permitir escrever mais lixo mais depressa – o que, efectivamente, permite – mas por possibilitar manter escondidas as tentativas de escrita: é que, ao contrário de muito boa gente, mas cada um é como qual, diz-se, não tolero que me leiam o que quer que seja até que eu próprio o dê a ler – o que só acontece quando sinto que está terminado. Terminado não significa bom; significa que pode ser lido, visto que eu, ao contrário do que ouço frequentemente contar, raramente produzo algo satisfatório apenas por inspiração e só à força de transpiração redijo algo que considere aceitável.

Os textos que dão corpo ao Do lacrau e da sua picada foram, assim, escritos ao longo de muitos anos; a finalização da obra, que demorou mais de um ano, consistiu em boa parte na reformulação desses textos, para que se integrassem tão harmoniosamente quanto possível num todo comum.

Ingenuamente, acreditava que a crítica me dispensaria de falar sobre a minha obra, o que, confesso, me repugna, não por modéstia, que não é uma das minhas virtudes, mas porque sempre detestei explicar romances, filmes ou anedotas: ou o leitor é capaz de perceber por si só e então explicar-lhe o que quer que seja é ofender a sua inteligência, ou não gosta e não vale a pena explicar-lhe, ou é de compreensão e de cultura limitadas e então compreenderá as explicações, mas não a obra, pelo que o esforço resulta igualmente inútil. Porém, como a publicação de Do lacrau e da sua picada passou despercebida (talvez por ter saído como e-book, assunto para outra ocasião) e porque, quase dois anos após a sua conclusão, em Novembro de 2005, sinto um grande carinho por esta narrativa, que me ensinou muito sobre a técnica da escrita e mais ainda sobre a edição em Portugal, apresento as minhas mais do que suspeitas opiniões sobre este meu filho bem-amado:

  • É de leitura fácil e rápida, devido ao seu ritmo frenético;
  • É capaz, pela semelhança com a anagnorise, de surpreender o leitor;
  • Personagens, espaço e tempo não estão desactualizados;
  • Está bem contado e bem escrito;
  • Tem fragmentos muito bons, cuja simplicidade pode, no entanto, ofuscar o seu mérito, pelo menos naqueles espíritos que não sabem como é difícil escrever simples.

Posto isto, nada como oferecer ao eventual leitor fragmentos para que possa ajuizar do mérito da narrativa (e da presunção e da arrogância do autor), esclarecendo desde já que só o não disponibilizo na íntegra por motivos contratuais.

O início introduz, desde logo, a eterna problemática do Tempus fugit sem pretensiosismos nem didactismos:

Eis Setembro, que chega fresco e risonho como a Primavera, após outro Agosto infernal, de calor e de incêndios. Não nos iludamos: nada voltará a ser como dantes. Setembro jamais será Abril, mesmo que este Sol e esta luz nos queiram convencer de que a Primavera dura todo o ano e a juventude é eterna, mesmo que a cidade pareça a mesma, com o castelo indiferente à passagem dos séculos e o Lis correndo sempre ao encontro do irmão gémeo, para juntos procurarem o mar, sonho de todos os rios.

Reparou o leitor inteligente que evitei “meter-lhe Lisboa pelos olhos dentro”, uma vez que as alusões à passagem do tempo são metafóricas e o nome da cidade será descodificado a partir da sua cultura – se não sabe que cidade com castelo é banhada pelo Lis, puta que o pariu. (Se escrevesse para imbecis, teria de explicar que o regresso à Primavera da vida na meia-idade, blá, blá…).

Imediatamente são introduzidas as personagens principais e procede-se à sua descrição en passant. Notar-se-á que embora seja uma narrativa na terceira pessoa, o narrador está presente, não prescindindo de um discurso judicativo:

Repare-se naquele casal que passeia, braço dado, pelas ruas antigas. Pela maneira de olhar, vê-se bem que não são turistas vulgares, daqueles que arrumam cidades, gentes e paisagens em álbuns de fotografias. Não, eles enchem os olhos com o presente em busca de vestígios de passados já esbatidos nas suas memórias, ele atento às ruas e às casas, ela procurando sinais de reconhecimento no rosto de cada um dos transeuntes. Aqui e agora, o cavalheiro compara a cidade de hoje com a que conheceu quarenta anos atrás, quando cá chegou, vindo da aldeia natal, para fazer o Curso Industrial. Ela é uma mulher vistosa, demasiado vistosa mesmo, daquelas que nos obrigam a voltar a cabeça para nos certificarmos de que também o traseiro é digno da dona. Sim, é, é um rabo perfeito, bem apertado em calças justas e à meia-perna, corsárias, chamam-lhes, é um cu soberbo, empertigado e bamboleante por força dos saltos demasiado altos.

Seguimos em frente com uma réstia de inveja do felizardo que agora lhe dá o braço, atribuindo mentalmente essa ventura a carro e fortuna. Bem enganados estamos, neste caso não é verdade, bem pode o nosso ego sofrer, que mulheres como ela são para nós: como esta história mostrará, não é o interesse material que une a loira espampanante a um homem discreto como o António.

Deixemo-los então passeando pela formosa Leiria neste Setembro fresco e risonho, deixemo-los sonhar com a Primavera, acreditar na ternura e nos prazeres da cama, talvez mesmo no amor, e prossigamos, invejosos, o nosso caminho e a nossa história.

Neste momento, o leitor experiente julga que conhece a estrutura e, talvez, a temática, não precisando de ler mais. Desiluda-se. Não sou assim tão previsível. Se quer acompanhar a história, terá de a ler.

E o fim? Fecha o círculo e justifica o título da obra:

Ao fundo, de costas para o Lis, atrás de uma mesa tosca, sem funil nem megafone, estava de pé um homem de boina, aspecto de cavador. Sobre a mesa, em duas caixas de sapatos, escorpiões agitavam caudas e tenazes em tentativas frenéticas para fugir do cativeiro. Sempre que algum o conseguia, caindo sobre a mesa, as mãos encortiçadas do curandeiro seguravam-no, pegando-o entre o polegar e o indicador. Então levantava-o à altura dos olhos, deixava o medo e a repugnância crescerem entre a assistência, e voltava a colocá-lo na caixa de onde se evadira.

As pessoas aproximaram-se, mas não demasiado, e observavam, curiosas e horrorizadas, os homens tecendo comentários sobre o que sucede à pessoa que tem a desdita de ser picada pelo ferrão de semelhante bicho, as mulheres apertando os filhos pequenos ao peito ou, se mais crescidos, agarrando-os firmemente pela mão para que a curiosidade juvenil os não fizesse aproximar demasiado, advertindo-os firmemente sobre os perigos deste inimigo da humanidade, eles e elas recordando o velho aforismo: Se o lacrau voasse e a víbora visse, não havia ninguém que no mundo existisse.

Quando a multidão se adensou, o curandeiro falou. Segurou um lacrau à altura dos olhos, para que todos o vissem bem, das tenazes que se agitavam convulsivamente ansiando por presa até ao ferrão que procurava em vão vítima, e disse:

— Este bicho é mau e nojento, mas bem pior é o que alguns de vocês têm dentro do próprio corpo, talvez sem ainda o saberem.

O silêncio arrepiou a multidão, espraiando-se como água agitada por pedrada até às últimas filas e retrocedeu outra vez até ao centro. Então o curandeiro falou de novo:

— Uma picada mata, uma picada cura. A picada do lacrau mata a pessoa... ou o escorpião que a devora. É preciso saber escolher. Lacrau macho para cancro fêmea, lacrau fêmea para cancro macho. Quem quer experimentar?

(Tantos anos se passaram já! Contudo, fecho os olhos e continuo a ver, fascinado, os escorpiões passeando pelas mãos calejadas do curandeiro, ressequidas e tostadas por uma vida de trabalho de sol a sol, o olhar honesto de quem recusa usar o seu dom para fugir à enxada, com o brilho de quem está disposto a sofrer e a morrer pela sua verdade, mesmo que ela resida no ferrão peçonhento de um lacrau, macho ou fêmea, tanto faz. Ah, como o compreendo, eu que também tive uma verdade, venenosa como aqueles escorpiões, e a perdi algures no tempo, juntamente com a minha mocidade!)

A Ritinha, Lúcia de seu nome artístico, que parecia mais atenta aos transeuntes do que às memórias do António, trouxe-o de volta ao tempo presente, dizendo a despropósito:

— A Nela, a minha cunhada que se enforcou, já te falei dela, sim, a que deixou como últimas palavras "A vida é uma merda", não tinha razão. Acho que a vida pode ser, mas não precisa de ser uma merda. Como dizia o teu curandeiro, uma picada mata, uma picada cura. Depende da escolha.

Sorriu-lhe: — O difícil é atinar com os lacraus certos.”

Em breve, seguir-se-ão outros escritos sobre narrador, personagens, espaço, tempo, linguagem, estilo, etc., tudo no mesmo tom, que o povo tão bem descreve no dito “gaba-te, cesta, que amanhã vais para a vindima”.

Do lacrau e da sua picada foi publicado como e-book em finais de Maio de 2007 pela Edito n Web (http://www.editonweb.com/); custa 4,5 euros e, como calculam, não espero enriquecer com os direitos de autor – o que não aumenta as qualidades nem diminui as imperfeições do romance.