Há pessoas que
como dizer (?)
falta-lhes qualquer coisa, que
não sabendo nós explicar
é a mais importante das coisas: aquilo a que os franceses chamam de “um eu não sei o quê”.
É capaz, pois, que seja isso. Aliás, só pode, visto não haver outro nome para lhe dar. Era isso que Lara tinha
ou não tinha.
Até há bem pouco tempo a minha cabeça confundia conceitos, de tal modo que cheguei a pôr em causa coisas até aí incontestáveis.
A Lara era dona de um corpo soberbo. Fisicamente era irrepreensível. Inteligente, simpática… No entanto, havia nela qualquer coisa
melhor dizendo
não havia
nela
qualquer coisa.
A princípio questionava-me sem encontrar um porquê. Creio que o tempo que passámos juntos foi mais pelo gosto dos meus amigos que pelo meu próprio.
- Bem, ganda canhão, ó Rui!
e eu
objector de consciência por natureza
a perguntar-me se não estaria aí o problema
- … ganda canhão…
de maneira que quando a Lara
- Saímos hoje?
numa vozinha sensualíssima
(também isso jogava a seu favor)
eu a não ter outra resposta que
- Sim. Porque não!
na convicção estúpida dos indecisos
- … Porque não!
porque
a falta-lhe qualquer coisa
aquilo a que os franceses
“um eu não sei o quê”
que Lara tinha
ou não tinha.
Até há bem pouco tempo a minha cabeça confundia conceitos, de tal modo que
- Sim. Porque não!
e a acordar no Estoril, na manhã seguinte, num open space com vista para o mar, num enjoo de quem comeu molotofe a noite toda
um enjoo que parece saciedade
mas enjoo
saciedade zero
um encher de boca com algodão doce que
mal a língua
o céu da boca
puf
feito em nada
aparência apetitosa ante o olhar guloso de criança que pouco pegou no peito da mãe
(uma infecção não sei das quantas)
vai daí que o leite
uma aguadilha só
alimento zero
um soro vazio de nutrimento e afecto
de modo que eu
se um peitinho mais avolumado
a atirar-me ao chão da minha infância
carente
(a infância e eu)
a salivar como um cão russo ao toque de uma sineta.
Por isso, da primeira vez que a Lara
(o peito da Lara)
nos meus olhos
eu a achar que a mulher da minha vida, o peito devido da minha infância. Mas ao fim da primeira noite
um open space sobre o mar do Estoril
um enjoo de marinheiro
não pelo mar do Estoril
mas pelo molotofe
pelo corpo da Lara que
sabor nenhum
um vazio que nem a magnificência do peito conseguiu encher
a perguntar para mim mesmo diante do Atlântico
do mar do Estoril
varanda aberta sobre um infinito de azul
- O que é que foi isto?
e uma vontade de sair de mansinho sem dizer nada
de lhe pedir desculpa
(melhor seria)
uma vontade de lhe dizer
(com a mão a coçar a nuca. Tenho a certeza que com a mão a coçar a nuca)
- Não sei qual é a tua ideia em relação a isto…
(a isto?!)
- … mas…
…
e a Lara a acordar, a espreguiçar-se nua, a sorrir de satisfeita com o Mar do Estoril a incendiar o quarto com o reflexo do dia
o corpo dourado
soberbo
irrepreensível
num contorcer de lençóis realizados
- Bom dia!
pés de dedos perfeitos, num esticar de gata feliz.
- Bom dia!
a levantar-se da cama
nua
pés perfeitos
os joelhos
os ossos das ancas
a púbis loura
soberbo
o corpo
irrepreensível
olhos verdes
fios de ouro pelos ombros abaixo
almofadinhas no lugar dos lábios
e um peito…
- Bom dia!
na minha direcção
varanda aberta sobre um infinito de azul
onde a brisa fresca da manhã no seu corpo inteiro
descalço até à alma
de mamilos livres a provocar o vento
a dar-me um beijo
- Bom dia!
almofadinhas no lugar dos lábios
o hálito morno do sono
e dois casulos de seda a tocar-me o peito
livres
a provocar o vento
o mar do Estoril
-Bom dia!
A manhã do mundo inteira e fresca nas minhas narinas
a cabeça confusa
numa neblina a lembrar São Pedro de Moel
a Nazaré de D. Fuas
enjoo e vertigem…
e a voz da Lara
(também isso jogava a seu favor)
qualquer coisa que não me consigo recordar
a afastar-se
para já ali
polibã transparente com vista para o quarto
para o mar do Estoril
varanda aberta sobre um infinito de azul
de dúvidas
a pôr em causa coisas até aí incontestáveis…
a puxar-me
não sei como
a puxar-me
para já ali
polibã transparente
e a ensaboar-me as dúvidas
debaixo de um aguaceiro sobre o Oceano imenso
a gerar, no silêncio de uma mão a coçar a nuca, uma inquietação que não se disse
- Não sei qual é a tua ideia em relação a isto…
E a repetir-se a noite, a madrugada e a manhã ao longo do dia
e as dúvidas todas
um mar delas maior que o do Estoril
que o Atlântico inteiro
a naufragar-me as certezas
uma trás outra
como um malmequer de espuma
serei gay?
não serei gay?
(Que estupidez tão grande!)
e a repetir-se a noite, a madrugada e a manhã, o dia todo nessa mesma noite, na noite seguinte
a esforçar-me para me manter concentrado
a parecer cumprir o papel sem a menor das repreensões
visto a Lara
sorrisos nos olhos
de manhã sobre o mar
mais reservada no passar dos dias
camisolinha de alças
mais provocadora, talvez
algodão branco cobrindo casulos de seda
((como o polibã transparente)
(cobrindo coisa nenhuma))
camisolinha de alças
a provocar o vento
- Bom dia!
dia trás dia
- Bom dia!
para o mar do Estoril
inchado de ondas
o Atlântico todo posto de pé
visto a Lara
ou os casulos de seda
- Bom dia!
dia trás dia
até que uma noite
às escuras
(nem uma fresta de estores)
o sono
como um molotofe
puf
feito em nada
a procurá-la com o faro, como os bichos, a fungar no vazio do Universo inodoro
à procura daquele corpo que
já ali
e…
puf
um molotofe
polibã transparente
nada!
Foi então que compreendi o “…não sei o quê” a que os franceses chamam àquilo que a Lara não tinha. Faltava-lhe cheiro. Era inodora como água destilada. Nem um só aroma. Nada. Suada, por suar, ao adormecer, ao acordar…
rigorosamente inodora
uma Jeanne-Baptiste Grenouille da Penthouse. Nem o cheiro da cama, do sono, do perfume que apenas na roupa que vestia, como se a pele rejeitasse artificialidades.
Curioso como o cheiro pode tanto. Quando regressámos a Lisboa disse-lhe que não me sentia bem na relação
(que não era relação nenhuma, mas…)
que andava confuso
que tinha receio de me envolver…
(as desculpas do costume)
A Lara não entendeu.
Uma mulher nunca entende que um homem
- Não me sinto bem na relação.
(que não era relação nenhuma, mas…)
- Ando confuso.
- … receio de me envolver.
(as desculpas do costume)
não entendeu
a Lara
nem os meus amigos, quando eu
- Faltava-lhe qualquer coisa.
porque impossível de explicar a um grupo de homens que deixara uma mulher daquelas por não ter cheiro. Por isso, a dizer apenas
- Faltava-lhe qualquer coisa.
- Faltava-lhe o quê, pá?!
e eu
impossível de explicar a um grupo de homens que
o cheiro
a dizer apenas
- Aquilo que os franceses chamam de Un je ne sais quoi.
Saturday, July 31, 2010
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