De Vila Franca do Campo "e do Mar" vão chegando as notícias mais incríveis:
«NOTÍCIA DE ÚLTIMA HORA:
A prática do surf na ilha São Miguel está a tornar-se numa autêntica loucura. Depois do record obtido na Nazaré pelo surfista Garrett McNamara, na costa norte da maior ilha açoriana várias donas-de-casa locais tentam bater o espantoso feito do surfista norte-americano, não olhando a meios para o conseguir. Não será de admirar portanto que tal venha a acontecer muito brevemente. Fonte próxima destas destemidas donas-de-casa confidenciou ao nosso jornal que no próximo fim-de-semana, irão fazer nova tentativa para bater o record alcançado, desta feita na Lagoa das Sete Cidades, onde se esperam condições favoráveis à ocorrência de fenómenos meteorológicos extremos.
O grupo-de-donas de casa tem o patrocínio exclusivo da TERRA AZUL - azores whale watching, sedeada em Vila Franca do Campo. O responsável pela empresa salienta os valores associados ao projeto, cujo objetivo principal é estabelecer uma nova ligação entre as Pessoas e a Natureza.
Siga esta fantástica aventura em www.terrazulazores.com»
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terça-feira, fevereiro 5
quarta-feira, junho 27
terça-feira, novembro 1
...Ironic
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Estava suspenso sobre a falésia, abrigado numa ruína de vigia da baleia, olhava de frente o crepúsculo solar e no refulgir iridescente do mesmo reflectia como a "comunicação" entre as pessoas era por vezes tão difícil. Ironicamente, com a Natureza essa linguagem era feita em silêncio para o qual se inventavam palavras. O Sol a todos falava numa linguagem universal de incandescência: desde o halo na fronte dos santos à auréola enrubescida de um seio pelas brasas do desejo. Saudava sempre que podia o Sol, logo pelo raiar do dia, ambicionando viver como se não houvesse amanhã, e sempre que venerava o esplendor daquela luminosidade celestial lembrava-se que, era sob o Sol, que ela poderia estar a formular uma prece por ele. Numa réstia de luminosidade, que se afogava no mar, recordava que o Sol era ainda a deificação do fogo da paixão, da chama inesquecível do amor - (aliás unforgettable fire para usar o titulo de uma única canção que gostava de uma banda irlandesa que deplorava) -, do calor da amizade e, para os crentes, do ardor das epifanias.
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Era assim também que as miúdas, e as graúdas, da aula de bodybalance eram endoutrinadas na asana iogui da Saudação ao Sol e no qual meditavam, no final de cada aula, endrominadas pelo fedor mesclado do suor com o incenso de patchouly. Ele ia ao ginásio todos os dias e era exclusivamente, em dias alternados, um corredor ou um levantador de pesos. Mas nem nas mais violentas e extenuantes malhas tivera sequer uma excrescência da mítica "runners natural high" por descarga de endorfinas. Com esse cinismo descrente irritava também a instrutora de bodybalance que era, por sinal, também monitora de aeróbica, de um fanatismo jesuítico pelo fervor da sua "religião" "new age" e, como era moda, pela sua bicicleta na qual ia para todo o lado, "porque sim", e porque era "amiguinha do ambiente". Obviamente, quando se cruzava com ela de mota provocava-a ostensivamente com o escape de rendimento da sua Kawa GPZ, que tanto amava, e fazia burn-out sempre que podia.
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Definitivamente preferia o fato de cabedal completo ao look hippie chique que a jovem personal trainer de bodybalance usava. Sentia que ela o humilhava sibilinamente quando comentava que ele "para a idade que tinha estava em boa forma-física" ! Enfim, a "psicologia" feminina seria sempre um jogo e um mistério para ele. Completava-se mais um dia e agora anoitecia mais cedo. Aproveitava o que restava do Sunset e cismava a olhar para o mar. Pela similitude homófona da palavra ocorreu-lhe que, no "caderno de leituras" de copista, tinha várias citações de Somerset. O Maugham, que não era mau "novelista", vivera também numa ilha, vasta como a Inglaterra, da qual se exilara para a devassidão francófona pois na "Old England" viver, pública e abertamente, a sua "diferente" orientação sexual era uma provação que não queria para si. Irónico como se mudam os tempos, as latitudes, e as personagens e os "preconceitos" permanecem imutáveis ? As ilhas são sempre imensos pântanos. Nada que o atormentasse pois era um conservador e um liberal. Encontrou a citação do Somerset Maugham e como se tivesse um missal nas mãos leu-a com o Oceano no horizonte : "Veja-se o Mar : uma onda segue outra onda, não é a mesma onda e, no entanto, uma é causa da outra e transmite-lhe a sua forma e movimento. Da mesma forma os seres que viajam através do Mundo não são os mesmos hoje e amanhã, nem são numa vida a mesma coisa que são noutra ; e no entanto, é o incitamento e a forma de vidas anteriores que determinam o carácter daquelas que se seguem.". Premonitória a razão de quem escrevera o clássico "Of Human Bondage". Não ! Ele não gostava de bondage e estava nos antípodas dos apetites gay do Somerset Maugham, mas tinha em comum o fetiche pelas "Letras". Sim ! Tinha razão o "determinismo" era o efeito do incitamento e da forma de vidas anteriores. Tanto assim era que herdara a Kawasaki GPZ Ninja 900 da Classe de 80 e um CD do Lou Reed com aquele apelo a "New Sensations". Amanhã era dia de finados, honraria aquele legado, e far-se-ia sozinho à estrada em romaria à campa daquele que lhe lembrava sempre, nas palavras de Tolstói, antes do tempo "um cardo esmagado no meio da lavra". Levaria flores. As que pudesse apanhar da variedade possível pois "nesta temporada há toda uma série de flores maravilhosas: os milefólios vermelhos, brancos, rosados, aromáticos, vaporosos; as margaridas descaradas; os malmequeres brancos de leite com o coração amarelo-vivo e um cheiro condimentado, pútrido; o agrião-da-terra amarelo com o seu odor meloso; as campânulas altas, de cor branca e lilás, com a flor em forma de tulipa; as ervilhacas rastejantes; as escabiosas amarelas, vermelhas, rosadas, liláceas, todas apuradas; as centáureas exibindo-se ao sol, em azul vivo na juventude e em azul claro e avermelhado na velhice; e as ternas flores do linho-de-cuco, cheirando a amêndoa e céleres no murchar." Com a sua sorte, por certo, alternaria entre cravos e rosas.
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Uma coisa tinha por certo : sabia que o mundo não girava à sua volta mas, talvez, na próxima curva podia ser que, em vez do desencontro, houvesse lugar para um rendez-vous, pelo menos com ele próprio.
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CONTINUA
Estava suspenso sobre a falésia, abrigado numa ruína de vigia da baleia, olhava de frente o crepúsculo solar e no refulgir iridescente do mesmo reflectia como a "comunicação" entre as pessoas era por vezes tão difícil. Ironicamente, com a Natureza essa linguagem era feita em silêncio para o qual se inventavam palavras. O Sol a todos falava numa linguagem universal de incandescência: desde o halo na fronte dos santos à auréola enrubescida de um seio pelas brasas do desejo. Saudava sempre que podia o Sol, logo pelo raiar do dia, ambicionando viver como se não houvesse amanhã, e sempre que venerava o esplendor daquela luminosidade celestial lembrava-se que, era sob o Sol, que ela poderia estar a formular uma prece por ele. Numa réstia de luminosidade, que se afogava no mar, recordava que o Sol era ainda a deificação do fogo da paixão, da chama inesquecível do amor - (aliás unforgettable fire para usar o titulo de uma única canção que gostava de uma banda irlandesa que deplorava) -, do calor da amizade e, para os crentes, do ardor das epifanias.
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Era assim também que as miúdas, e as graúdas, da aula de bodybalance eram endoutrinadas na asana iogui da Saudação ao Sol e no qual meditavam, no final de cada aula, endrominadas pelo fedor mesclado do suor com o incenso de patchouly. Ele ia ao ginásio todos os dias e era exclusivamente, em dias alternados, um corredor ou um levantador de pesos. Mas nem nas mais violentas e extenuantes malhas tivera sequer uma excrescência da mítica "runners natural high" por descarga de endorfinas. Com esse cinismo descrente irritava também a instrutora de bodybalance que era, por sinal, também monitora de aeróbica, de um fanatismo jesuítico pelo fervor da sua "religião" "new age" e, como era moda, pela sua bicicleta na qual ia para todo o lado, "porque sim", e porque era "amiguinha do ambiente". Obviamente, quando se cruzava com ela de mota provocava-a ostensivamente com o escape de rendimento da sua Kawa GPZ, que tanto amava, e fazia burn-out sempre que podia.
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Definitivamente preferia o fato de cabedal completo ao look hippie chique que a jovem personal trainer de bodybalance usava. Sentia que ela o humilhava sibilinamente quando comentava que ele "para a idade que tinha estava em boa forma-física" ! Enfim, a "psicologia" feminina seria sempre um jogo e um mistério para ele. Completava-se mais um dia e agora anoitecia mais cedo. Aproveitava o que restava do Sunset e cismava a olhar para o mar. Pela similitude homófona da palavra ocorreu-lhe que, no "caderno de leituras" de copista, tinha várias citações de Somerset. O Maugham, que não era mau "novelista", vivera também numa ilha, vasta como a Inglaterra, da qual se exilara para a devassidão francófona pois na "Old England" viver, pública e abertamente, a sua "diferente" orientação sexual era uma provação que não queria para si. Irónico como se mudam os tempos, as latitudes, e as personagens e os "preconceitos" permanecem imutáveis ? As ilhas são sempre imensos pântanos. Nada que o atormentasse pois era um conservador e um liberal. Encontrou a citação do Somerset Maugham e como se tivesse um missal nas mãos leu-a com o Oceano no horizonte : "Veja-se o Mar : uma onda segue outra onda, não é a mesma onda e, no entanto, uma é causa da outra e transmite-lhe a sua forma e movimento. Da mesma forma os seres que viajam através do Mundo não são os mesmos hoje e amanhã, nem são numa vida a mesma coisa que são noutra ; e no entanto, é o incitamento e a forma de vidas anteriores que determinam o carácter daquelas que se seguem.". Premonitória a razão de quem escrevera o clássico "Of Human Bondage". Não ! Ele não gostava de bondage e estava nos antípodas dos apetites gay do Somerset Maugham, mas tinha em comum o fetiche pelas "Letras". Sim ! Tinha razão o "determinismo" era o efeito do incitamento e da forma de vidas anteriores. Tanto assim era que herdara a Kawasaki GPZ Ninja 900 da Classe de 80 e um CD do Lou Reed com aquele apelo a "New Sensations". Amanhã era dia de finados, honraria aquele legado, e far-se-ia sozinho à estrada em romaria à campa daquele que lhe lembrava sempre, nas palavras de Tolstói, antes do tempo "um cardo esmagado no meio da lavra". Levaria flores. As que pudesse apanhar da variedade possível pois "nesta temporada há toda uma série de flores maravilhosas: os milefólios vermelhos, brancos, rosados, aromáticos, vaporosos; as margaridas descaradas; os malmequeres brancos de leite com o coração amarelo-vivo e um cheiro condimentado, pútrido; o agrião-da-terra amarelo com o seu odor meloso; as campânulas altas, de cor branca e lilás, com a flor em forma de tulipa; as ervilhacas rastejantes; as escabiosas amarelas, vermelhas, rosadas, liláceas, todas apuradas; as centáureas exibindo-se ao sol, em azul vivo na juventude e em azul claro e avermelhado na velhice; e as ternas flores do linho-de-cuco, cheirando a amêndoa e céleres no murchar." Com a sua sorte, por certo, alternaria entre cravos e rosas.
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Uma coisa tinha por certo : sabia que o mundo não girava à sua volta mas, talvez, na próxima curva podia ser que, em vez do desencontro, houvesse lugar para um rendez-vous, pelo menos com ele próprio.
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CONTINUA
quinta-feira, outubro 27
...Ironic
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(...) Passaram-se dias e horas de expediente no escritório e, como era previsível, pelo cálculo das probabilidades, perdeu a aposta que mentalmente fizera consigo próprio. Não tinha tido retorno ao dissimulado apelo do "Call Me" e a gravação em eco metálico no telemóvel informava que aquele número não tinha "voice mail" activado. Ela estava ostensivamente off. Nem resposta a sms, ou a emails, e de nada valera as três voltas que dera junto da alameda de plátanos que guarneciam o café onde ela, noutros tempos, com a pontualidade mecânica de um swatch, comparecia, sempre, às 17 horas para um capuccino e um croissant untado de manteiga com marmelada.
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(...) Passaram-se dias e horas de expediente no escritório e, como era previsível, pelo cálculo das probabilidades, perdeu a aposta que mentalmente fizera consigo próprio. Não tinha tido retorno ao dissimulado apelo do "Call Me" e a gravação em eco metálico no telemóvel informava que aquele número não tinha "voice mail" activado. Ela estava ostensivamente off. Nem resposta a sms, ou a emails, e de nada valera as três voltas que dera junto da alameda de plátanos que guarneciam o café onde ela, noutros tempos, com a pontualidade mecânica de um swatch, comparecia, sempre, às 17 horas para um capuccino e um croissant untado de manteiga com marmelada.
Era uma fantasia pois sabia-a do outro lado do rio Atlântico. Mas ainda assim percorreu aqueles caminhos mergulhado na memória persistente do seu aroma que se desprendia da transpiração da sua pele. Ela estava submersa no espelho de água do seu olhar e ele era incapaz de observar o mar sem pensar no oceano de imprevisibilidades que na vida nos desviam do rumo linear sempre em rota de colisão com as curvas do destino !
Convenceu-se que como boa dominatrice que era, ela também tinha prazer em ser uma excelsa masoquista emocional. Mas, em bom rigor, só podia auto-flagelar-se, e fazer "mea culpa", porque sabia que, ainda que involuntário, ele era um "pleasure delayer". Naquela tarde, ensopado sob o súbito dilúvio que se abatera sobre a costa Norte, abrigara-se junto de um cemitério de campas vazias com estreia, "sine die", mas fatalmente incontornável. Virado de frente para a ondulação que fustigava o Norte, trancou-se em si próprio, e procurou abrigo numa taberna alcandorada no canto da estrada nas cercanias do cemitério. Para aquele improvisado porto de abrigo carregara um saco plástico da loja de conveniência, onde abastecera de carburante, a caminho de nenhures, e onde tinha acomodado a biblioteca itinerante que o acompanhava.
Sempre presente a "Invenção de Morel" como um aguilhão a picar-lhe para partir em busca de uma ilha de evasão. Sempre aquele obsessivo livro e a permanente representação de "Faustine". Sempre a dúvida para quem lia no seu olhar: o que nele seria realidade e o que naquela névoa seria ficção? "Faustine" saberia onde começava uma e terminava a outra. Mas sob tal tempestade só lhe ocorria o poder que "Faustine" tinha de mudar o seu humor e daqueles em quem tocava.
Estava algures, sem remédio, num posto de combustível mas de carburantes etílicos, que ostentava o nome de fantasia "Paradise", em homenagem ao paraíso perdido que a poente prometia o "american dream". Entre um café e uma macieira recordava que também naqueles tristes trópicos, para lá da ilha, no novo mundo, "o paraíso dos homens, tal como tinha sido entrevisto por Colombo, prolongava-se e deteriorava-se simultaneamente no prazer da vida exclusivamente reservada aos ricos". Quem o afirmara fora esse "comuna" do estruturalismo moderno que era Claude Lévi-Strauss. Damn ! Com vista para uma falésia de basalto, lia e concordava com esse ícone do activismo de esquerda o que não era nada bom sinal. Até delirou em comprar uma ruína de pedra ali para aqueles lados do lugar de "João Bom" e dedicar-se à vida mecanizada do campo e das alfaias agrícolas. Um disparate. Ainda maior incómodo sentiu quando no seu caderninho de citações, que folheava sob a violência ensurdecedora da chuva, vira a lápis o implacável axioma de Papini, que em tempos copiara e que com justa malevolência sentenciara : "Os anticomunistas reconhecem, com a sua linguagem e o seu comportamento, que os factos verdadeiramente importantes e dominantes na vida dos povos são os económicos". Sim, afinal o antropólogo franco-judeu tinha razão : "a humanidade está adoptando a monocultura; prepara-se para produzir a civilização em massa, como beterraba". Infelizmente era levado, pela realidade da sua experiência pessoal e dos que vegetavam nas hortas sociais por onde se movimentava, a concluir que essa massificação era uma real trituradora. Tanto era assim que naquele torrão no meio do Atlântico tomava consciência que as pessoas se relacionavam por segmentos. Por exemplo, não lhes repugnava acasalarem com um utilitário, mas casamento só mesmo com topo de gama estandardizado e produzido em série para determinada e exclusiva clientela. Na realidade ambicionavam a materialização de uma mulherzinha troféu, tudo bem plastificado num habitat que pudessem exibir nas redes sociais, arquitectando influências e contrabandeando conveniências. Qualquer desvio dessa curva ascendente resultava em downgrades sociais. Uma lástima preconceituosa aquela terra que tanto amava. Sob a capa de uma falsa tolerância a verdade é que não aceitava a "diferença". Mas quando a "diferença" entrava sem pedir licença porta adentro perceberiam como aquelas torres de marfim, de sólidas convicções sociais, mais não eram do que convenções com a resiliência de castelos de areia. Regressou à memória dos desencontros virtuais e era agora incapaz de apostar se aquele silêncio dela era um resguardo, um defeso intencional ou acidental, como se fosse uma irmã das "carmelitas"? Seria uma forma pouco ortodoxa de gritar: "Stay away" ? Pouco importava, era ele quem pagava a factura de uma aposta perdida consigo próprio. Magnetizou-se no mar que crescia e formava correntes opostas em marés turbulentas no que os "gringos" chamavam de rip tide...Lembrou-se que tinha feito o download do último livro de canções de Beirut e ali ficou a ouvir nos "headphones" “soon the waves and I found the rolling tide / Soon the waves and I found the rip tide”. Para os rapazes do calhau era apenas "mar bravo". Sim, era verdade, a tempestade encapelara-se e junto do calhau os homens, e os rapazes da freguesia, recolhiam ao abrigo mais próximo. Fez pause no mp3 do smartphone e resolveu-se a teclar novamente o número que ela lhe facultara em tempos e que era o único que constava do rol de chamadas perdidas do seu telemóvel. Coisa estranha ! Tinha vontade de a rever mas ela estava longe como o raio e no horizonte apenas pressentia a tempestade tropical que se aproximava. Com um wishful thinking deu por si a murmurar : "até já" !
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obviamente Continua
quarta-feira, outubro 26
...Ironic
(…) "Call Me" era o wishful thinking dele. Substituíra o tv dinner descartável por uma sopa de cenoura e lentilhas weight watchers da Heinz. Preso ao ecrã do computador sentia quão descartável era a sua vida. Era irónico ! Na bolina da sua juventude andara "a navegar na maionese", para usar uma feliz expressão Brasileira importada dum amigo que hedonisticamente sabia viver a dolce vita em temporadas alegres no Rio de Janeiro, e agora, no galgar das ondas da meia-idade, sentia o lastro, o chumbo, o peso da âncora dos dias que passaram, sem que fosse capaz de "Navegar" sob a flâmula lusitana. Por exemplo, na rota do estandarte de um Fernando Pessoa. Mas, ao invés, do desígnio de Pessoa claudicara no desalento da poesia de Al Berto.
Fernando Pessoa, que não sabia nada de navegação, nem consta que tivesse sequer carta patrão de costa, traçara-lhe há muito tempo as coordenadas para a viagem de circum-navegação a si mesmo : "Descobre-te todos os dias, deixa-te levar pelas tuas vontades, Procura! Procura sempre o fim de uma história, seja ela qual for." Entre a poesia galvanizadora e a realidade comezinha medeia um mar de escolhos e um cabo das tormentas que nem todos os navegantes têm a arte e o engenho para superar. Teclou no youtube "Sonata de Kreutzer" de Beethoven e fechou a janela dos Blondie no soundcloud. Chovia espessamente de nuvens densas como metal líquido e ele foi recuperar as letras da Sonata, mas pela pena de Tolstói, num livro que deveria ser de leitura obrigatória e tutorial, na educação de qualquer jovem como prevenção geral no desenlace de tanto nó-górdio que seria evitável. Releu o clássico no sublinhado que tracejara : "(…) Esta sonata é uma coisa terrível. E a música em geral. O que é isso ? Não compreendo. O que é a música? O que ela nos faz ? E por que é que faz o que faz ? Dizem que a música provoca um efeito sublime na alma…Mentira, absurdo! Provoca um efeito, um efeito terrível (estou a falar de mim), mas não sublime. Não age na alma de modo sublime nem humilhante, mas de modo excitante. A música faz-me esquecer de mim próprio, da minha verdadeira situação, transporta-me para outro espaço qualquer que não é o meu ; a música parece que me faz compreender o que não compreendo, parece que, com a música, posso fazer o que na verdade não posso." A música que o excitava era outra mas desistiu de ser ele a fazer a chamada telefónica a meio da noite. Seria inútil e ridículo ligar-lhe a desoras convocando fantasmas de um passado que estava já soterrado por camadas sucessivas de partículas do mesmo pó do qual viemos e no qual nos tornaremos. Existiriam sempre silêncios elementares que apostava poderia partilhar com ela … mesmo sem lhe falar a rogar confidência. Coçou as costas e roçou a sua tatuagem e logo se recordou que fora através do maldito Houellebecq que chegara ao sadismo existencial de Tolstói. A propósito da Sonata recordara-se que sublinhara, nas páginas das "Partículas Elementares" o axioma; "olhando para o passado, temos sempre a impressão – provavelmente falaciosa – de que havia nele uma parte de determinismo". Resolveu desligar-se das letras e de sobrecarregar os sentidos com tantas palavras desnecessárias. Perseguia-o a memória de saber que tudo o que precisava era o mundo cuja memória tinha nos seus braços. Era tarde. Resolveu desligar o PC enrolou uma daquelas páginas lascivas de Houellebecq e meteu um filtro da Sonata de Kreutzer e ali ficou, na penumbra, fumando aquele condensado de literatura. Ficou ali imóvel com a certeza de que ela amanhã telefonaria. Ali permaneceu acordado, apreciando o silêncio, apostando que ela lhe ligaria nos dias seguintes
...Continua ?
terça-feira, outubro 25
...Ironic
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No glittering da brilhantina e dos debochados casacos de cabedal, justos como uma segunda pele de látex, enquanto Olivia Newton se fundia nos quadris de John Travolta ele, pelo canto do olho, e no escurinho do cinema, tinha uma involuntária aula prática de iniciação à luxúria. Exagero óbvio ! Mas isso apenas o saberia muitos anos mais tarde quando ligasse os pontos ao passado. Mas à data, naquela matinée que lhe tinha caído em repeat, sob uma trunfa platinada e punk antevia a fogosidade do olhar dela e o desdém com que o observava. Um homem também em tempos foi um "puto" e as suas circunstâncias, e naquelas, ele mais não era do que o "empata" que refreava o ímpeto dos amantes com os seus olhares curiosos e inquisitivos. Tudo isto numa matinée inocente sem suspeitar que, à mesma hora, era possível que a geração dos seus pais se preparava para fazer turno na fila para outra fita...mas "rigorosamente interdita a menores de 18 anos" !
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No glittering da brilhantina e dos debochados casacos de cabedal, justos como uma segunda pele de látex, enquanto Olivia Newton se fundia nos quadris de John Travolta ele, pelo canto do olho, e no escurinho do cinema, tinha uma involuntária aula prática de iniciação à luxúria. Exagero óbvio ! Mas isso apenas o saberia muitos anos mais tarde quando ligasse os pontos ao passado. Mas à data, naquela matinée que lhe tinha caído em repeat, sob uma trunfa platinada e punk antevia a fogosidade do olhar dela e o desdém com que o observava. Um homem também em tempos foi um "puto" e as suas circunstâncias, e naquelas, ele mais não era do que o "empata" que refreava o ímpeto dos amantes com os seus olhares curiosos e inquisitivos. Tudo isto numa matinée inocente sem suspeitar que, à mesma hora, era possível que a geração dos seus pais se preparava para fazer turno na fila para outra fita...mas "rigorosamente interdita a menores de 18 anos" !
Numa terra de "santos" – (e outros tantos "pecadores") - ali ao lado no Cine São Pedro, depois dos "Canhões de São Sebastião", com Anthony Quinn, em matinée não aconselhável a menores de 13 anos, outras peças de artilharia ficariam em sentido, com sessão dupla, do "Garganta Funda" na soirée a dois passos daqueles preliminares tão pueris. Sim só o podiam ser quando por comparação, - e tudo na vida se mede por comparação -, quando a página do pasquim local, no cartaz das sessões de cinema, sob o título do clássico da malograda Linda Lovelace "advertia" : "avisamos o exmo público que este filme é imoral e pornográfico. Com este aviso não pretendemos fazer publicidade, pelo contrário, aconselhamos o público a não ver este filme. No entanto dentro dum conceito de liberdade, para aquele espectador mais exigente, apresentamos o filme com o objectivo de o levar a saber meditar naquilo que deve ou não deve ver". À escala da puberdade não lhe fora dado "saber meditar" sobre o que "devia ou não ver" !? Só se lamentava de não ver mais detalhes dos rendilhados dela quando
a tela do ecrã escurecia com uma passagem menos luminosa. Esse momento era a senha para que o par do lado, "dando-lhe sempre em quente", engrenasse a respectiva caixa de velocidades manual, dando prego a fundo até à curva mais próxima a cada segundo de escuridão que o túnel do cinema consentia. A anos-luz dessa penumbra tinha agora consciência do ridículo daquele teenager daydreaming, e não havia nada mais mainstream, como uma pastilha elástica, do que o "Grease" e o sonho de uma noite de verão americana. Entre discos perdidos encontrara a banda sonora do filme em duplo-vinil. Entalado entre outros discos de época, mais concretamente o "American Prayer", desse intemporal pregador dionisíaco que sempre seria Jim Morrison, e o "Parallel Lines", dessa diva da pop que sempre seria Debbie Harry, ambos de 1978, lá estava a banda sonora do "Grease". Morrison imortalizara-se aos 27 numa morte misteriosa, Debbie Harry desmazelara-se com a idade e fez um obsceno comeback com uma cançoneta em que, entre inanidades, repetia o mesmo refrão : "Maria...you got to see her" ! Patético e deprimente. Tão inútil quanto a banda sonora do "Grease". Porém, não era de todo inútil pois por um acaso, no invólucro de um dos discos, encontrou um recorte da Debbie Harry contemplando o esplendor da sua melhor juventude.
Resolveu acompanhar aquela imagem da "Blondie" com um bourbon...sem gelo como é de Homem. Arrumou o duplo LP com a pastelona banda sonora do "Grease" e meteu-a num envelope do correio que, no dia seguinte, endossaria para ela como um teaser para a memória daquela matinée. Subliminarmente atiçado pela "Blondie" viçosa, e não pela matrona rançosa que regressara "à vida" para compor as royalties da sua reforma, recordou-se daquele single catchy como um canto de sereia lançado na classe de 80. "Call Me" ! "Call me on the line/ Call me, call me anytime/ Call me my love you can call me any day or night/ Call me/ Cover me with kisses, baby/ Cover me with love...I’ll never get enough." Ummm ! O aguilhão da nostalgia picava-o e sentiu a crescer nele o desejo de lhe ligar. Atenuou o mesmo e fustigou-se com uma plangente "Sonata de Kreutzer" de Beethoven. Quando acabasse o bourbon, com ou sem "sonata", fecharia o envelope que lhe remeteria no dia seguinte por correio azul e selado, não com brilhantina, mas com a viscosidade da saliva agridoce aquecida pelo shot de Jack Daniels em saúde e memória à Debbiezinha. "Oi Debbiezinha...lembra do animal ?" Damn ! Essa era outra canção, dum tal Gabriel o Pensador, rodopiando no carrossel da sua memória, mas em fundo, num mashup inconsciente, ficara no arquivo do soundcloud a pancada dos Blondie a provocar-lhe : "Call Me" !
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Continua ?
segunda-feira, outubro 24
...Ironic
(...)Num requebro de fraqueza registou-se no facebook e fez-se "amigo" dela. Postou uma inanidade do youtube com um vídeo da classe de 80. Regressou a uma pátria sentimental de terylene e melenas oxigenadas. Retornou a uma estrada de origem, sem regresso possível, ao ritmo dos Blondie num cartucho magnético do tamanho de um tijolo.
Na era do mp3 apenas os "dinossauros" se lembravam do áudio em formato de cartucho magnético! Mas nesse cemitério de decibéis e carcaças de Citroëns, Amis e Dyanes, que agora enferrujavam na sombra de bólides teutónicos, daqueles que passam a abrir na circular, refulgia um retrovisor para um passado em kodachrome. Uma reminiscência para um cândido imaginário desses dias em que tudo estava bem arrumado. Cada necessidade tinha a sua prateleira e, numa simplicidade garrida, recolhia-se instantaneamente a dose requerida à joie de vivre. Mas, na estrada das nossas vidas, sabia que seguimos destinos divergentes e não há fio de ariadne que nos leve de volta ao tempo que ficou suspenso numa ilusão de óptica reflectida num espelho em que os imaginários Citroën Dyane, e outros ícones, cintilam sob o sol da nossa infância. Reflectia sobre isso e colocou na net um postal com um link para o vídeo que talvez a reportasse àquela matinée que recordara num Domingo pardacento e sem história. Mas ela apenas clicou "Gosto" e escreveu "LOL". Ele que não conhecia o acrónimo googlou o mesmo e obteve uma desconcertante resposta. Resolveu "skipar" a mesma e "deletar" a sua existência no facebook. Após várias tentativas falhadas, percebeu que esse era um calvário virtual e sabendo do fetiche conventual dela logo a imaginou a ter fantasias eróticas profanando o confessionário e temeu pelas suas carnes. Damn ! E não conseguia mesmo eliminar a sua id. do facebook.
Na cabine do tempo, numa mélange de desejo e nostalgia, foi transportado para a tal matinée efervescente em que lhe pagaram o bilhete para a função de "pau-de-cabeleira". O filme era viril e destilava óleos ao rugir de rpm´s acima da "red-line". Era fita máscula e embrulhada em cabedal. Untada com graxa q.b. e cromados reluzentes que reflectiam ondas da paixão, consumadas no capô da corruptela de uma mulholland drive, ou difusas no "backseat" de uma estate station wagon "Americana".
A fita era o mais "American Dream" possível, com carburantes afrodisíacos, e voluptuosos pistons em esforço máximo no limite de griparem o motor . Ironicamente, quem estava totalmente desembraiada era ela ! Nem no intervalo desgrudou do piloto que a guiava pelas estradas no limite do precipício, onde poderia se estatelar manchando o calhau negro com o sangue encarnado do vulcão que a alimentava. Como se ele fosse um boy adestrado, e ela uma dominatrice, ordenou-lhe que fosse comprar um pack de amendoins que levou a segunda parte do filme a descascar. O musical era banal mas ela, e o parceiro de ocasião, meneavam-se como se estivessem num italo-porno vintage. Ele, o boy das encomendas e ainda infante, percebeu afinal o que era o "french kissing"...apesar da bobine debitar imagens dançantes de uma América que, na verdade, nunca existiu fora do celulóide...
(Continua ?)
sábado, outubro 22
...Ironic
...
(...)
Continuação
(...)
Continuação
Desde essa sessão de cinema que a perdera de vista. Não totalmente!
Na verdade, frequentemente, com a devoção de um voyeur via-a virtualmente esculpida, como um ícone bizantino, num mosaico de megapixels no monitor do flatscreen. Ela era agora uma celebridade nacional e "comentadeira" regular em talkshows que ele via em zapping.
Mas, na Primavera passada, sem hora ou data marcada, num lugar-comum, cruzaram-se em Lisboa. Na rota de tantas gerações, em trânsito ou exilados, encontraram-se na escala geo-estratégica da esplanada da Pastelaria Suíça. Ele sóbrio e conservador. Ela exuberante e intimidatória no seu cosmopolitismo. Aos cartões-de-visita responderam o costume. Mas depois de aceitar o desafio para um Campari, cortado com Água de Castello, sob a sombra das muralhas de outras conquistas, reconstruíram parte das suas biografias. Respondera-lhe ela, rejuvenescida, que ao fim da terceira fertilização in vitro, com o seu consorte Italiano, tinha sido, finalmente, duplamente agraciada com um par de gémeos que mimava com roupinhas da Dolce e Gabbana Kids.
- "E tu? Como estás?".
Enquanto artilhava uma resposta ele recordava que a primeira criança concebida por F.I.V. nascera em 1978...precisamente no mesmo ano em que estreara o filme! Aquele filme que ela libidinosamente partilhara a seu lado naquela longínqua matinée que recuperava na arqueologia da sua memória. Sorriu com a futilidade da ironia e com mundanidade respondera-lhe que estava "óptimo". Numa mentira de convenção omitira o embaraço de uma derrota: era infeliz a sós em vez de uma solidão a dois, partilhada, com ou sem um par de gémeos !
Falaram de velhas glórias e de um tempo perdido para sempre. Trocaram endereços e contactos, pessoais e profissionais, e ele automaticamente montou a sua máscara de defesa pessoal, com o possível fácies inexpressivo, quando no cartão dela leu a aziaga apresentação: "psicóloga clínica". Apre ! Aquilo era tão alarmante como uma doença venérea e dessa "tribo" freudiana ele preservava-se sempre com cuidado, evitando o contágio de ser scannerizado como objecto de inspiração para divertissement clínico. Mas ela estava distraída. Sob o Sol de Lisboa mostrava-lhe fotos dos gémeos F.I.V., em passarela no IPad, arreados com o dernier cri da moda de Milão. Ele sem prestar atenção aos petizes temeu que o Italian stallion daquelas crianças fosse Siciliano...o que era muito pouco "dolce" acaso tivesse um delírio de ciúmes em plena baixa Pombalina com uma cena de faca e alguidar.
Olhou para o relógio a sugerir que o prazo de validade daquele Campari expirava à medida que o gelo derretia. Entretanto, tranquilizou-se, quando ela deixou cair um suspiro de saudade pelo dito progenitor, Stefano di Rocco de seu nome, algures em Ibiza onde se deslocara para produzir mais um dos seus "documentários temáticos", que ela nunca vira, mas asseverava serem tão alternativos que nem na FNAC os encontraria! Com o IPad na sua mão esquerda ela abriu o browser e com um toque suave do indicador direito abriu uma página azul e branca e falou-lhe nessa coisa "gira" que era o facebook. Ele só conhecia books de papel mas reteve a sugestão. Ela deixou-lhe o endereço nas costas de um cartão antecipando que assim mais facilmente ele navegaria até à sua página.
Na verdade, frequentemente, com a devoção de um voyeur via-a virtualmente esculpida, como um ícone bizantino, num mosaico de megapixels no monitor do flatscreen. Ela era agora uma celebridade nacional e "comentadeira" regular em talkshows que ele via em zapping.
Mas, na Primavera passada, sem hora ou data marcada, num lugar-comum, cruzaram-se em Lisboa. Na rota de tantas gerações, em trânsito ou exilados, encontraram-se na escala geo-estratégica da esplanada da Pastelaria Suíça. Ele sóbrio e conservador. Ela exuberante e intimidatória no seu cosmopolitismo. Aos cartões-de-visita responderam o costume. Mas depois de aceitar o desafio para um Campari, cortado com Água de Castello, sob a sombra das muralhas de outras conquistas, reconstruíram parte das suas biografias. Respondera-lhe ela, rejuvenescida, que ao fim da terceira fertilização in vitro, com o seu consorte Italiano, tinha sido, finalmente, duplamente agraciada com um par de gémeos que mimava com roupinhas da Dolce e Gabbana Kids.
- "E tu? Como estás?".
Enquanto artilhava uma resposta ele recordava que a primeira criança concebida por F.I.V. nascera em 1978...precisamente no mesmo ano em que estreara o filme! Aquele filme que ela libidinosamente partilhara a seu lado naquela longínqua matinée que recuperava na arqueologia da sua memória. Sorriu com a futilidade da ironia e com mundanidade respondera-lhe que estava "óptimo". Numa mentira de convenção omitira o embaraço de uma derrota: era infeliz a sós em vez de uma solidão a dois, partilhada, com ou sem um par de gémeos !
Falaram de velhas glórias e de um tempo perdido para sempre. Trocaram endereços e contactos, pessoais e profissionais, e ele automaticamente montou a sua máscara de defesa pessoal, com o possível fácies inexpressivo, quando no cartão dela leu a aziaga apresentação: "psicóloga clínica". Apre ! Aquilo era tão alarmante como uma doença venérea e dessa "tribo" freudiana ele preservava-se sempre com cuidado, evitando o contágio de ser scannerizado como objecto de inspiração para divertissement clínico. Mas ela estava distraída. Sob o Sol de Lisboa mostrava-lhe fotos dos gémeos F.I.V., em passarela no IPad, arreados com o dernier cri da moda de Milão. Ele sem prestar atenção aos petizes temeu que o Italian stallion daquelas crianças fosse Siciliano...o que era muito pouco "dolce" acaso tivesse um delírio de ciúmes em plena baixa Pombalina com uma cena de faca e alguidar.
Olhou para o relógio a sugerir que o prazo de validade daquele Campari expirava à medida que o gelo derretia. Entretanto, tranquilizou-se, quando ela deixou cair um suspiro de saudade pelo dito progenitor, Stefano di Rocco de seu nome, algures em Ibiza onde se deslocara para produzir mais um dos seus "documentários temáticos", que ela nunca vira, mas asseverava serem tão alternativos que nem na FNAC os encontraria! Com o IPad na sua mão esquerda ela abriu o browser e com um toque suave do indicador direito abriu uma página azul e branca e falou-lhe nessa coisa "gira" que era o facebook. Ele só conhecia books de papel mas reteve a sugestão. Ela deixou-lhe o endereço nas costas de um cartão antecipando que assim mais facilmente ele navegaria até à sua página.
Passaram-se dias e estações. O tempo quinara e o barómetro prenunciava tempestade no meio do Atlântico. Entretanto imaginava-a colada ao ecrã à espera do próximo episódio. Contemplando cerimoniosamente a chuva e interrogando-se : "What the Water Gave Me" ? Enquanto afagava o pêlo da sua gata Florence. Mas essa era apenas uma fantasia e fatalmente o mais certo é que ela estivesse sob a guarda de um mastim napolitano.
(...) continua
sexta-feira, outubro 21
Ironic
...
Tinha entre mãos o duplo álbum já carcomido pela patine do tempo e décadas de falta de uso. Entrara Outubro. Procurava nos escombros da existência um disco perdido com uma versão de "Autumn Leaves", pelo imortal Chet Baker, mas colidira com aquela fantasia de vinil. A verdade é que no final do Verão, e no início do Outono, da vida e da meteorologia, ficara sintonizado noutra estação. Em repeat, na sua jukebox caíra a ficha de uma canção pop e aí ficara engatado: "Isn´t that ironic...don’t you think?".
Claro que era! Mas também como poderia adivinhar que assim seria?
Noutros tempos, brilhantes e lustrosos, como aqueles que o duplo LP, em "trilha sonora original", evocava, como o poderia saber? Como poderia compreender as erupções do desencontro e da Saudade que do fundo do oceano da vida, subitamente, se transformam em tsunamis aos quais se sobrevive? Ignorante, e plácido, não conhecia ainda Lisboa, - onde a reencontraria -, muito menos o esquecido poeta homónimo, António Maria de seu primeiro nome, que agora lhe resumia o suspiro: "Se eu o soubesse diria / o quê? / Que vida seria um dia / Para quê?".
Sim para quê? Vivera sempre em delay. Desfasado e desencontrado dela, não por segundos, mas por décadas. Sim! Era irónico, para um náufrago num oceano nada pacífico, que este tivesse sido meteorologicamente o melhor Verão de sempre nos calhaus do meio do Atlântico.
De novo o disco, e o booklet do mesmo, com um rol esquecido de canções. Subliminarmente, naquelas armadilhas que a memória tem engatilhada para as horas menos próprias, na mão, o Lado A de um dos discos de vinil do duplo álbum, na sua mão direita, descansou afinal, e ele desceu, a passo e passo, o labirinto com que se enfeita o passado. Com este, na sua mão direita, regressou a uma alameda esquecida, e nunca revisitada, como um Lado B que sobrou daquilo que em tempos foi uma grande canção. Em flashback involuntário regressou a uma matinée banal, numa tarde sem glória, no já enterrado Cine Victória. Não lera ainda no niilismo de Michel Houellebecq as palavras que literalmente trazia às costas: "a eternidade da infância é breve, mas ele ainda não o sabe!". Mais tarde gravaria a negro aquelas palavras, em caracteres góticos, sobre a espádua direita, numa tatuagem de ocasião feita numa noite de solidão no Bairro Alto, como se fossem um fardo.
...
Claro que era! Mas também como poderia adivinhar que assim seria?
Noutros tempos, brilhantes e lustrosos, como aqueles que o duplo LP, em "trilha sonora original", evocava, como o poderia saber? Como poderia compreender as erupções do desencontro e da Saudade que do fundo do oceano da vida, subitamente, se transformam em tsunamis aos quais se sobrevive? Ignorante, e plácido, não conhecia ainda Lisboa, - onde a reencontraria -, muito menos o esquecido poeta homónimo, António Maria de seu primeiro nome, que agora lhe resumia o suspiro: "Se eu o soubesse diria / o quê? / Que vida seria um dia / Para quê?".
Sim para quê? Vivera sempre em delay. Desfasado e desencontrado dela, não por segundos, mas por décadas. Sim! Era irónico, para um náufrago num oceano nada pacífico, que este tivesse sido meteorologicamente o melhor Verão de sempre nos calhaus do meio do Atlântico.
De novo o disco, e o booklet do mesmo, com um rol esquecido de canções. Subliminarmente, naquelas armadilhas que a memória tem engatilhada para as horas menos próprias, na mão, o Lado A de um dos discos de vinil do duplo álbum, na sua mão direita, descansou afinal, e ele desceu, a passo e passo, o labirinto com que se enfeita o passado. Com este, na sua mão direita, regressou a uma alameda esquecida, e nunca revisitada, como um Lado B que sobrou daquilo que em tempos foi uma grande canção. Em flashback involuntário regressou a uma matinée banal, numa tarde sem glória, no já enterrado Cine Victória. Não lera ainda no niilismo de Michel Houellebecq as palavras que literalmente trazia às costas: "a eternidade da infância é breve, mas ele ainda não o sabe!". Mais tarde gravaria a negro aquelas palavras, em caracteres góticos, sobre a espádua direita, numa tatuagem de ocasião feita numa noite de solidão no Bairro Alto, como se fossem um fardo.
...
continua
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