quarta-feira, 12 de maio de 2010

Avulsos 20: Antonin Artaud





















Antonin Artaud

A figura de Artaud é, parece-nos, insuficientemente conhecida em Portugal. O vasto conjunto dos seus escritos contém aspectos que, na sua densidade de formulação e na sua sagaz intuição, antevidente dos nossos entraves político-ideológicos de hoje, marcam a sua mais candente actualidade. Era senhor de um poderosíssimo verbo e de uma consciência agudíssima dos problemas que, afectando-o a ele em particular, se alinhavam já, perante si, como problemas de uma época vindoura. Algumas das coisas que escreveu prefiguraram formulações do que hoje consideramos ainda do mais urgente a pensar.

Não é possível evitar uma extrema admiração (e uma infinita ternura, diga-se) pela figura a vários títulos absolutamente notável de Antonin Artaud. Nem deixar de lhe admirar a coragem e a lucidez - com todos os senãos, evidentemente, que uma certa declinação e recuperação de um pensamento da presença, nele também se faz sentir. Veja-se, tirada quase ao acaso, em Artaud, le Moma, como testemunho do interesse e do peso da sua aventura, por exemplo a seguinte passagem, a propósito de um retrato desenhado por Artaud, intitulado La mort et l'homme:

Il s'agit par le dessin de changer l'oeil, d'inventer ou d'ajouter un nouvel oeil ou, par la violence d'une prothèse paradoxale, de restituer l'oeil perdu. Par cette opération chirurgique, par le traumatisme ophtalmologique qu'y produit une sorte de feu ou de laser virtuel (et Artaud nomme alors la virtualité), le dessin procéderait ainsi à un décollement de la retine. Mais ce décollement permetterait d'instaler la chose représentée, le squelette de la mort, dans l'oeil même, sans support. Détachée de la page, prélevé sur un subjéctil qui figure ce dont la rétine est ainsi décollée, le corp de la chose même, la mort en sa représentation squelettique viendrait se planter dans le regard. Plus précisement, grâce au décollement de la rétine, ce corps mort viendrait trouver sa «place», là où enfin il aurait lieu, à savoir «dans mon oeil». (DERRIDA, Jacques, Artaud le Moma: interjections d'appel, Paris, Galilée, 2002, p. 27).

Eis, portanto, a função do desenho: produzir o «descolamento da retina» em relação à coisa representada, fazendo-a (re)ingressar no meu olho, enquanto forma ou representação, relação mimetológica ou alucinação do presente como presença. Ou ainda, dito de outro modo: descolar a retina daquilo a que ela adere, a que ela se cola na condição presente, sob a forma de uma sua fascinação impotente e condicionadora; ou ainda, pôr a morte no seu lugar, uma morte que é precisamente também a do sujeito. Qual é o seu lugar? É o da forma desabitada, dissociada da força, do movimento ou do devir, da temporalidade. O lugar da morte é o da FORMA como MORTE, o da imobilidade e o da inanidade da forma, o do recorte estável e perene, abstraído da sua relação dinâmica, da abertura da sua historicidade, do movimento e dos imprevistos da sua vitalidade. Eis como Artaud no-lo diz:

Je voudrais en le regardant de plus près qu'on y trouve cette espèce de décollement de la rétine, cette sensation comme virtuelle d'un décollement de la rétine qui j'ai eue en détachant le squelette d'en haut de la page, comme mis en place pour un oeil. Le squelette d'en haut sans la page avec sa mise en place dans mon oeil. (ARTAUD, Antonin, Oeuvres complètes, XXI, pp. 232-233)

A morte e o homem (re)alojam-se, assim, por virtude de um desenho cuja função é, então, a da operação paradoxal e simultaneamente protética e restitutiva (ou antes que reenvia para o suprimento), nos seus próprios olhos. Ficando eles - morte e homem - sem outro suporte exterior... A morte, enquanto forma, posto que a forma é a morte no presente, pertence a uma vista alienada da memória e da vida. O subjéctil de «o homem e a morte» é também o nosso olhar. Intervenção ou restituição, devir e apelo de um olhar novo, ou simplesmente convocação ou regresso de um antigo, tal como agora é retroprojectado, pouco importa, neste caso. Trata-se aqui de fazer comparecer o homem à «imagem» da sua própria cegueira: ela tem precisamente o seu nome. Chama-se «o homem». E chama-se «imagem».