“… he resolved never again to kiss earth for any god or man. This decision, however, made a hole in him, a vacancy…” Salman Rushdie in Midnight’s Children.
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14.2.09

O Leitor

É inegável que estamos cheios de opções para ver bons filmes no cinema. Desta vez “O Leitor”- talvez o filme que vi nos últimos tempos de que mais gostei - será pretexto para um comentário e algumas reflexões. Estamos em território de adultos, não por causa da exposição anatómica ou das razoáveis cenas de sexo, mas porque entramos num mundo complexo, desarmante e cerebral.

É um filme cuja estrutura narrativa, em variados e nem sempre aparentemente sequenciais flash-back, tem planos que se sobrepõem e percebemos uma falta, ou melhor, "a" falta; a falta de matéria de união, não me refiro a uma união sequencial ou cronológica, mas sim a algo como uma argamassa que une os tijolos, um fio motivador, a identidade do filme, o que quer que seja que faz mover as personagens e faz acontecer a história, que se desenrola de uma forma fria e quase que automática. Essa matéria nem sempre é evidente e a riqueza do filme é que nós enquanto espectadores vamo-nos questionando e tentando perceber do que é que ele (filme) trata. Será o amor? O erotismo? Será o interesse? O destino? Será a verdade? Será o cumprimento do dever? A frieza de nunca o questionar? Será a vergonha (do analfabetismo)? A honestidade? Será a culpa ou a falta dela? Será o sentido do sofrimento? A justiça? Há de tudo um pouco, e no fim, para além da desarmante honestidade de Hanna, que é sempre um desafio às outras personagens e a nós espectadores, e de um sempre desconcertado (e porquê, tentamos nós perceber até ao fim do filme) Michael Berg, vemos e lemos o que queremos ou o que somos levados a ver e a ler.

A realização é metódica e os actores são tão bons quanto esperávamos. Kate Winslet mais uma vez prova a grande actriz que é despojada de si e entregue totalmente a uma Hanna misteriosa, desarmante, mas digna. O jovem David Cross (Michael Berg na juventude) e Ralph Fienes são competentíssimos parceiros de Winslett.

Da culpa.
O jovem Michael estudou direito e um professor seu explica-lhe que não é a moral que rege o mundo, mas sim a lei, mas Michael parece não ter nunca absorvido esta noção. As aulas de Direito coincidem com o julgamento de Hanna e com o turbilhão de sentimentos conflituosos de Michael. Ele quer perceber culpa (a dita Moral que não rege o mundo) em Hanna, ele espera percebê-la mas nunca a consegue ver, o que lhe trará consequências de peso: ele faz sua a culpa que gostaria de ter visto nela e vai ser ele que a vai expiar numa vida ao longo de grande parte da sua vida. Essa inexistência de culpa en Hanna é talvez o elo que os liga ao longo dos anos de uma forma que só eles entendem, pois o segredo dela só ele o conhece. Para Hanna a culpa é o segredo, de tal forma que o guarda e está preparada para uma maior e “injusta” condenação por parte do tribunal; a culpa não está nos factos por que foi julgada.

Do sentido do sofrimento.
Michael quer que o sofrimento tenha sentido e gostava de ver um propósito, tirar uma lição desse sofrimento, talvez para poder entender os seus actos, o seu sofrimento. Mas as voltas estão trocadas. Por duas vezes ele se depara com o vazio, o nada do sofrimento. Depois de tudo o que se passou Michael pergunta a Hanna, pouco antes dela sair da prisão o que é que ela aprendeu com a prisão. Vê-se que ele está à espera de uma resposta existencial, de crescimento individual, mas a desarmante honestidade de Hanna e a cerebralidade da sua resposta não deixam margens para dúvidas: a aprendizagem (aceitação da culpa, sentido do sofrimento) que ele procura não está lá. Do sofrimento não aprendeu nada. Do mesmo modo na conversa final entre Michael Berg e Llana Mather, ela lhe diz para não procurar a sua catarse nos campos (de concentração): não há lá nada. Não se aprende nada, não se ganha nada. Aquele sofrimento é nada. Michael está entregue a si próprio.
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